UniNômade

A imagem em tempos de amor ciborgue

Por Bárbara Szaniecki, UniNômade, 14/10/2017

Chama a atenção, logo de cara, as datas: 2049. Se o filme de 1982 nos projetava num cenário de 2019, o filme de 2017 nos projeta agora numa cenário de 2049. São 37 anos de diferença no primeiro, 32 no caso do segundo mas aqui, a impressão é que aquilo nos parecia um futuro longínquo, agora está aí, na nossa cara. Um planeta completamente ferrado e, nele, jogos de gato e rato.

Muito se escreveu sobre um dos filmes que mais marcou toda uma geração, provavelmente muito se escreverá sobre essa nova edição. Como não falar da imagética narrativa sobre poder e escravidão, com todas suas camadas e modulações e, sobretudo, sobre o infinito e infindável desejo de libertação? Como não falar dos mesmos personagens que reencontramos sob a mesma carcaça (como o policial Rick Deckard, interpretado por Harrison Ford) ou dos novos personagens que surgem na história mas que nos remetem a anteriores por conta da semelhança física (como a Mariette interpretada por Mackenzie Davis remete à inesquecível Pris de Daryl Hannah). Ou ainda dos personagens que, embora só apareçam por uns instantes, como a replicante Rachel, estão de certa maneira presentes o filme inteiro?

Blade Runner 2049 é antes de mais nada, um jogo da memória após o apagamento de todas as memórias do mundo. Blackout total.

 A memória, pelo menos a de quem assistiu e viveu a emoção do Blade Runner 2019, é continuamente ativada ao longo de Blade Runner 2049 por meio de associações imagéticas: dos personagens, dos cenários e… dos detalhes. Pode-se dizer que ela, a imagem, é a verdadeira protagonista do filme. Num filme com personagens de um olho só (a rebelde Freysa) aos de mil olhos (como o cego Niander Wallace), é menos a imagem como visão e projeto, e mais a imagem como memória e imaginação a que prevalece. É ela que desencadeia uma multidão de afetos: dos que vêm do passado supostamente vivido, dos que projetamos num futuro temido e muito mais.

Contudo, com uma re-releitura de Roland Barthes na cabeça, ossos do ofício, é de uma imagem muito particular que eu gostaria de falar. Imersa em um mundo constituído por vídeos de segurança, por imagens de drones e por hologramas dentre outras formas visuais high tech, é de uma fotografia impressa, possivelmente analógica e posteriormente digitalizada, que eu gostaria de falar. Barthes diria “olha o punctum aí!”. E eu responderia, com certeza, é o que me pungiu. É o que pungiu K.

K encontra a fotografia de uma mulher carregando uma criança. Sua caça por replicantes se desdobra em uma busca por um elo perdido, um segredo guardado. Uma mãe? A sua mãe? “É ela?” Pergunta-se Barthes. “É ela!” convence-se K. Ele não a reconhece pois sequer a conheceu. É o afeto que instintivamente sente pela figura humana que o convence, tal como Rachel estava convencida anteriormente. É a fotografia de sua mãe sobre o piano que garante a Rachel que é humana, assim como é a fotografia de uma mulher carregando um bebê, descoberta sob o mesmo piano trinta anos depois, que faz K vislumbrar sua possível humanidade. A foto não é o que ela mostra como identidade e sim como ela lhe faz sentir uma inexplicável e portanto indizível saudade. A memória, implantada como imagem, confunde todos nossos sentidos e nosso senso de realidade.

K se pergunta se ao invés de ter sido fabricado, teria sido gerado. Seria ele o fruto milagroso da relação de humano com replicante, de DNA com BITs? Ora, num mundo sempre mais codificado, não deixa de ser irônico que seja uma velha fotografia impressa a que sustenta a narrativa carregando a imanência de um referente – a mãe – com seu corpo e seu calor – e, assim de certa forma, a que segue funcionando como prova. Prova de que “isto foi” nos termos Barthesianos. Prova de que um amor cyborg aconteceu.

O que a fotografia prova? Se não a verdade, prova ao menos que esse amor gerou nova vida, vida nova. O que em Rick Deckart interessa a Niander Wallace é sua capacidade de reproduzir, mais especificamente, reproduzir seres subservientes. Mas o que lhe escapa, lhe escapa continuamente, é a sua capacidade de produzir seres – humanos, não-humanos ou mixtos, pouco importa – que por serem afetados geram afetos, e livremente amorosos, superam todas as barreiras, as tais tão bem descritas pela tenente Joshi no início do filme. Policiamentos contra as misturas: eles parecem efetivos mas são em vão. As hibridações seguem acontecendo porque são, (im)precisamente, hybris. Tal como é a memória que move a imagem, é o desejo que move a vida.

 

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