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Depois de Bolsonaro, o que fazer?

Por Silvio Pedrosa

Para entender a ascensão desse fenômeno de massas cuja expressão eleitoral arrebatou a cena política e social brasileira, sobretudo a partir do primeiro turno das eleições gerais de 2018 e começar a pensar em como reagir a ele, é necessário em primeiro lugar caracterizá-lo em detalhes. Assim, devemos eliminar de início o juízo segundo o qual todos aqueles que votaram em Bolsonaro em 2018 são fascistas. O núcleo duro do que podemos chamar de bolsonarismo que é, de fato, fascista, poderíamos chamar de ustrismo e é o inimigo concreto da conjuntura, corresponde a uma minoria, e ainda que está seja organizada e influente, ainda é uma minoria.

Em um segundo plano, há todo um contingente de homens, mulheres e jovens (com maioria masculina pronunciada) cuja adesão ao bolsonarismo se deve sobretudo à sua performance neoconservadora, contrária ao dito “politicamente correto”, ou seja, a ascensão dos movimentos identitários da pós-modernidade, tais como o feminismo, movimento LGBT, o movimento negro antirracista, entre outros. Nesse grupo identificamos o apoio de caráter religioso, evangélico e católico.

Nas franjas do fenômeno bolsonarista é que encontramos a adesão mais frágil, porém mais numerosa, que corresponde à massa de eleitores cujo principal motor de adesão é o antipetismo galopante existente na sociedade brasileira (cuja razão de existir se deve à três fatores principais: a frustração de expectativas históricas com o Partido dos Trabalhadores, à crise econômica e social crônica legada pelo governo Dilma ao país e ao desgaste da imagem do partido devido à sua participação no saque da riqueza social praticado durante os últimos anos e exposto pela Operação Lava-Jato). O antipetismo, além disso, se revestiu nessas eleições de um profundo desejo de renovação antissistêmica, com o petismo e o lulismo encarnado o sistema, seja porque esteve à frente dele nos últimos 15 anos, seja porque houve um bem sucedido trabalho de mobilização dessa percepção (incluindo-se aí a difusão massiva das chamadas fake news).

Discernir essas três camadas do fenômeno é imprescindível pois permite reconhecer com realismo o desafio que está por vir. O balanço da experiência dos últimos anos (principalmente desde 2013) deve ser também a tentativa de entender a ascensão do bolsonarismo como maioria eleitoral consistente, cuja formação é, sem dúvida, trágica, mas não homogênea e monolítica. Determinar corretamente o fenômeno é começar a pensar o que fazer da conjuntura que receberemos a partir de novembro de 2018. As franjas desse fenômeno e mesmo seu contingente conservador não estão perdidos para uma futura maioria social de sentido contrário (não é de todo inútil lembrar que, em 2010, Lula tinha aprovação popular superior a notáveis 80% dos brasileiros).

Noutro sentido, é preciso apontar, discutir e reorientar completamente a abordagem comunicativa de um progressismo por vir. Se queremos derrotar não Bolsonaro, mas as próprias condições sociais de existência do bolsonarismo, será necessário realizar um reexame das posturas ensimesmadas do militantismo partidário e movimentista, além de colocar em questão os métodos e a própria grupo dirigente que nos levou até essa situação.

Assim, em primeiro lugar, é necessário abandonar todo o palavrório militantista saudoso do “trabalho de base” como chave mágica ao mesmo tempo em que precisaremos ampliar consideravelmente a escuta daquilo que os homens e mulheres comuns desejam. Sem abandonar a percepção etnográfica, qualitativa, do trabalho militante, que é importante, será necessário desenvolver um extenso “trabalho de redes”, utilizando intensivamente ciência de dados para monitorar os movimentos gerais de rápida oscilação nas redes. As batalhas pela “opinião pública” dependeram de rápida, eficiente e massiva capacidade de resposta.

Dessa copesquisa massiva retiraremos os insumos para dotar o novo progressismo de um programa à altura dos novos tempos, abandonando a defensiva histórica na qual estamos, ainda entrincheirados no trabalhismo nacional-estatista. Sintonizado com as demandas populares, esse programa terá que acertar contas com três questõe inegociáveis: uma defesa contundente do meio ambiente, preparando o Brasil para as mudanças climáticas catastróficas que virão; a reconfiguração progressiva da economia brasileira capaz de nos preparar para a automação massiva que está no horizonte e ameaça algo em torno da metade dos empregos existentes hoje; por fim, será necessário promover políticas capazes de amortecer os impactos das transformações anteriores e, com sorte, diminuir nossos indícios números em matéria de miséria, pobreza e desigualdade. De início, será necessário viabilizar um programa de renda mínima universal capaz de se tornar a proteção social de uma nova era do capitalismo contemporâneo remunerado o cidadão por seu incessante trabalho nas redes e garantindo um horizonte mínimo de consumo e dignidade.

Esse trabalho de reinvenção do progressismo não será feito pelo atual establishment político-partidário existente e exigirá a deposição daqueles que continuarem a destruir qualquer construção alternativa no nascedouro. Será necessário, então, reunir uma ampla frente desejosa de superar o horizonte do petismo e do lulismo sem qualquer concessão. Construir um progressismo pós-PT não significa a aniquilação do partido, mas a capacidade de reconhecê-lo como parte importante do problema e de submetê-lo, se for o caso, a uma nova hegemonia. Desnecessário dizer que essa frente dificilmente contará com o esquerdismo que só sabe dizer o próprio nome e que as contradições existirão, mas deverão ser sempre submetidas à amplitude da agenda posta em movimento por esse novo progressismo.

No curto prazo, a necessidade de construir esse novo progressismo enquanto alternativa terá que ser dividida com os esforços de conter a violência concreta do bolsonarismo, seja enquanto agente macropolítico como governo, seja na sua expressão molecular enquanto reforço e autorização para que minorias e opositores sejam agredidos, atacados e mortos. É preciso mobilizar todas as instituições (imprensa, judiciário, partidos, igrejas, etc.) a repudiar, condenar e, quando for o caso, punir essas ações. Essa mobilização depende da organização de iniciativas locais capazes de dar conta da tarefa de promover assistência jurídica e contatos institucionais, pressionando para que o repúdio majoritário da sociedade dissolva paulatinamente a autorização das violência gerada pelo majoritarismo bolsonarista. O trabalho, portanto, terá que ser feito a um só tempo e de forma combinada na linha das instituições e na linha de multidão, onde novos arranjos organizativos terão que ser disparados.

O custo de não passar a limpo a experiência das últimas duas décadas e iniciar a reinvenção de um novo campo progressista democrático (que rejeite amplamente qualquer autoritarismo e se afaste das experiências ditatoriais latino-americanas com as quais a velha esquerda sempre flertou) pode ser assistir a emergência de um movimento de extrema direita massivo que pode durar décadas.

 

Texto publicado no Medium:

https://medium.com/@silviopedrosa/depois-de-bolsonaro-o-que-fazer-1977c2417c48

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