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Mobilizar a legalização da maconha, entrevista com André Barros

marcha maconha

Entrevista com André Barros, por Bruno Cava.

Uninômade – Você tem atuado sistematicamente nos movimentos pela legalização da maconha, em especial, na organização e defesa jurídica da Marcha da Maconha. Quais foram os avanços conquistados pela Marcha e, em termos de expansão do movimento, quais suas perspectivas?

André Barros (AB): A Marcha da Maconha foi o primeiro movimento social de rua da nova geração que tomou o país nas jornadas de junho de 2013. Convocada horizontalmente, sem líderes, sempre foi fortemente reprimida pelo sistema penal punitivo. Mesmo claramente garantida pelo artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal, policiais, promotores, juízes, desembargadores utilizavam as mesmas práticas da ditadura militar/empresarial de raízes escravocratas. Em 2008 e 2009, marchas da maconha foram proibidas por meio de decisões tomadas na calada da noite por plantões judiciais, claramente orquestradas em conjunto com ações inominadas propostas pelo Ministério Público. Assim, em 2009, nós, da Marcha da Maconha do Rio de Janeiro, protocolamos uma representação, com todas as ações e decisões judiciais que proibiram os eventos, na Procuradoria-Geral da República. Baseado em nossa representação, o órgão máximo do Ministério Público propôs assim uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 187 e outra Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4274. Ambas ações ficaram paradas no Supremo Tribunal Federal. Em 15 de junho de 2011, quinze dias depois da violenta repressão sofrida pela Marcha da Maconha de São Paulo, o STF julgou nossa causa e só então declarou que o nosso evento estava garantido pela Carta Política da República Federativa do Brasil, a nossa Constituição Federal, por 9 votos a zero. Toda essa resistência foi fundamental para que a maconha fosse debatida livremente no Brasil , pois, antes, qualquer evento sobre o assunto, criminalizado como apologia, era fortemente reprimido. Nossa perspectiva é de que as marchas se fortaleçam e se multipliquem nesse imenso país para acelerar o processo de legalização da maconha. Depois, vamos rir de toda essa farsa e ridícula criminalização da planta da paz. E outras lutas virão, pois a multidão nunca vai parar.

Uninômade – Segundo Michel Foucault, a questão de certas substâncias, as ditas drogas ilícitas, não se resume à proibição moral ou a uma irracionalidade sistêmica, considerando que existem drogas mais nocivas que são lícitas e mais socialmente aceitas. Para o filósofo, existe toda uma economia de ilegalidades, uma nuvem de práticas e formas de exploração e poder ao redor da proibição, um mercado capitalista com a agravante de a concorrência se dar pela via armada e da imposição do terror. No Brasil, quem seriam os maiores beneficiários dessa economia subjacente à proibição de certas substâncias? Como o sistema político, em seus financiamentos e territórios eleitorais, convivem com essa economia?

AB: A resposta está na própria pergunta. Essa guerra às drogas é uma farsa. Trata-se de um mercado de toneladas de maconha e cocaína distribuídas em caminhões de carga, aviões, helicópteros e navios, que proporcionam acumulações de bilhões de capital. São os ricos que produzem essa guerra racista entre os pobres, pois são policiais jovens, negros e pobres associados a facções de vendedores também jovens, negros e pobres trocando tiros entre si. A repressão existe apenas no varejo das comunidades pobres. Nem mesmo o comércio do varejo realizado pela classe média branca é reprimido. Utiliza-se a ilegalidade para manter o pobre preso na miséria da favela, mandando bala e torturando vidas antes açoitadas. Nossas raízes monarquistas e escravocratas têm origem numa polícia de costumes, que ainda reprime a cultura afro-brasileira, de onde veio o hábito de fumar maconha. Foi esse sistema penal que construiu a brutal desigualdade social e regional, ainda mantida com toda acumulação histórica do poder punitivo. No Brasil, não ocorreu qualquer substituição das formas de punir. Aqui, temos hoje a pena de prisão, a tortura, a pena de morte e o desaparecimento, tudo institucionalizado pelo aparelho estatal, que acumulou práticas punitivas da monarquia escravocrata combinada com a ditadura militar/empresarial instaurada com o golpe militar de 1964. Agentes da ditadura e toda essa mentalidade ditatorial e suas práticas continuam muito vivas em nossa recente democracia.

Uninômade – A maconha tem características especiais em relação a outras substâncias atingidas pelo proibicionismo. Em seus artigos e participações em eventos, você sempre realça pelo menos duas. Uma é a genealogia racista da proibição da maconha no Brasil. Outra é a qualidade socializante da maconha, além de determinar ritmos cognitivos mais lentos do que a velocidade exigida pelo capitalismo tardio. Gostaria se possível que você comentasse esses aspectos, enquanto potencialidades políticas.

AB: O preconceito deita raízes na civilização muçulmana, já que o alcorão amaldiçoa expressamente o álcool, sem citar a planta, gerando interpretações da permissão do uso da maconha. O próprio significado da palavra haxixe é preconceituoso, vindo das cruzadas, associando a palavra a assassino. A palavra haschisch significa “erva” em árabe. Os haschischins eram membros de uma associação secreta do oriente médio que combatiam as invasões ocidentais das cruzadas. Matavam seus invasores em legítima defesa, e assim foram chamados de assassinos. O Brasil foi o primeiro país a criminalizar a maconha. Em 1830, o § 7º da lei de posturas municipais do Rio de Janeiro estabeleceu três dias de cadeia para quem consumisse “o pito do pango”, uma das denominações da maconha. A pena demonstrava suas raízes racistas, pois na sanção dizia que seriam punidos “os escravos e outras pessoas” que usassem a erva. Maconha é, inclusive, um anagrama de cânhamo, criado para despistar dos senhores o consumo da planta. Desde a exploração da cana de açúcar, o consumo da maconha era reprimido, pois afetaria a capacidade de produção dos escravos. A maconha não tem relação com todo esse mundo da acumulação primitiva e atual de capital, arrancando o couro do escravo trabalhador. Essa sociedade apressada, que só fala em crescimento econômico e produtividade, não tem qualquer relação com a maconha, planta que acalma e é consumida de forma coletiva e distributiva, em rodas. O que a maconha tem a ver com essa sociedade apressada de altas velocidades? A maconha aumenta o prazer de comer, descansar, fazer amor, relaxar e dormir. Essa sociedade capitalista, que escraviza a humanidade por horas dentro de um transporte ruim e caro e em trabalhos repetitivos, estressantes e mal remunerados, não combina com a erva da paz. A maconha não só é boa para pacientes com câncer, AIDS e tantos outras doenças, ela é boa mesmo para essa sociedade doente, violenta e apressada. A maconha é remédio mesmo para toda a nossa sociedade, muita gente precisa de maconha para se acalmar e parar de querer acumular tanta riqueza para tão poucos. Maconha tem relação com distribuição.

Uninômade – Existe uma crítica usualmente elaborada por movimentos antiproibicionistas, de que o foco na maconha relegaria para segundo plano a questão mais ampla da legalização geral de todas as drogas ilícitas. Existe alguma razão estratégica para esse foco? Por que acontece?

AB: No Brasil, a Marcha da Maconha é o primeiro evento que surgiu dessas novas redes sociais, que começou a tirar a nova geração, a juventude, do imobilismo em que se encontrava. Da sua forma de mobilização vieram outros movimentos antiproibicionistas até as grandes manifestações de junho de 2013, que marcaram a história do Brasil. Da mesma forma que as manifestações de junho, a Marcha sempre foi acusada de ser um movimento de classe média. Primeiro, isto não é verdade, maconheiras e maconheiros de todas as regiões da cidade e do estado vão à Marcha da Maconha. Segundo, se a juventude de classe média está na luta contra a repressão policial à maconha e às manifestações, demonstra que ela está disposta a se arriscar para mudar essas desigualdades sociais e regionais e resistir ao poder punitivo. Isto aconteceu nos anos sessenta com a juventude de classe média que participou da luta armada contra a ditadura militar. A crítica à Marcha da Maconha não tem lógica. Pois, se a classe média não é reprimida por fumar maconha, como dizem, então menos ainda razão ela teria, do ponto de vista individualista, de participar da Marcha da Maconha. Portanto, a participação da classe média seria mais louvável ainda, porque seria a menos interessada na legalização, já que a repressão do sistema penal está voltada só contra os pobres. A Marcha da Maconha é atravessada por várias subjetividades, desde aqueles que perderam a paciência com essa ridícula proibição até o jovem que não aguenta mais ser esculachado pela polícia por estar fumando maconha na rua. Mas todas essas singularidades se juntam coletivamente em torno do cachimbo da paz, da planta, é a maconha que é o comum, que une a multidão nas marchas por todo o mundo. Os movimentos sociais são criados nas lutas. Foi a luta pela legalização da maconha que construiu a Marcha da Maconha. Isto não quer dizer que o movimento não seja a favor da legalização de todas as drogas tornadas ilícitas e da destruição total desse sistema penal, que só existe para punir jovens, negro e pobres! Foi a luta pela legalização da maconha que mobilizou milhares de pessoas pelo mundo inteiro, não foi outra substância. Brincamos sempre que vamos fazer a corrida da cocaína depois de legalizar a maconha com a marcha. Por que criticar um movimento que está dando certo, crescendo e que vem abrindo as portas das lutas antiproibicionistas? Compreendo que muitas pessoas gostariam de participar da marcha da maconha, mas têm vergonha, receio. Mas daí a criticar o evento por isso, acho a maior caretice. Como gritamos “ não tenha vergonha, vem participar da Marcha da Maconha”.

 

André Barros é advogado, atua há pelo menos dez anos como advogado da Marcha da Maconha – RJ, membro da comissão de direitos humanos da OAB – RJ e mestre em ciências criminais pela UCAM.

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