UniNômade

Hamlets tropicais sem motivações edipianas

Por Nicolás F. Muriano | Trad. UniNômade

GLAUBER

Se isto não é um povo, onde está o povo

Apontamentos sobre La multitud se fue al desierto (Bruno Cava, trad. Ariel Pennisi, Agustín Valle e Santiago Arcos / eds. Quadrata e Pie de los Hechos, Buenos Aires: 2016) [ed. brasileira, A multidão foi ao deserto, AnnaBlume: nov. 2013].

Somos amigos dos platônicos, dizia Aristóteles, mas somos mais amigos da verdade. Essa é quase uma definição da filosofia política com que já não podemos mais concordar. Uma comunidade de amigos da verdade enquanto solo nativo para as rivalidades amistosas. A nossa prática moderna do pensamento político, se exercitada em comunidade, já não comunica mais por analogia os afetos amorosos dos rivais com a verdade, a qual tanto mais amam quanto mais comum a intensidade amorosa nela compartilhada: a philia, a filiação comum dos rivais, solo nativo dos amigos da verdade que, no fundo, não podem odiar-se entre si mais do que podem amar-se, quer dizer, não podem amar-se menos do que amam a verdade, se aceitarmos a premissa popular que inverte amor e ódio segundo uma escala de intensidades correlatas, equivalentes, biunívocas, dito de outro modo, não há inimigo a ser odiado filosoficamente a não ser o inimigo da verdade, sofista ou tirano, que odeia e torna odiosa a verdade, isso na medida em que os amantes podem vir a odiar (mas não tornar odiosa) a potência do falso, o efeito de verdade: o inimigo público número um do pensamento, aquilo contra o que é preciso pensar, e em comum, na comunidade agonística ou agônica formada pelas rivalidades amistosas.

Daí os inimigos de Platão são também os de Aristóteles e, quanto à verdade, o desdobramento conceitual de suas diferenças constitui, exemplar e geneticamente, a operação fundamental dos intelectuais tradicionais europeus na organização da cultura ou, segundo Gramsci, na composição efetiva ou do “espírito do corpo”, cito: “de uma continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais mudanças das formas sociais e políticas” [1]. Assim é a história da filosofia enquanto assunto dos filósofos, quando ela é definida materialmente, ou seja, como articulação social de sua práxis inserida nos processos de produção que a compreendem estruturalmente através das relações do sistema capitalista, em vez de definida por si própria e em si própria. A astúcia da razão é a fábrica dos agenciamentos históricos de rivais que alternam as suas posições até atingir a síntese final que compõe o duelo, não importando quem ganhe: a filiação comum, a natividade ininterrupta do pensamento e do ser, o mútuo pertencimento que está na origem da identidade como princípio de filiação comum do ser e do pensamento, noutras palavras, a verdade.

Por isso, diz Deleuze, a história da filosofia é o complexo de Édipo do pensamento. Espírito de corpo, na metáfora militarista de Gramsci, no romance familiar do neurótico, na metáfora freudiana de Deleuze, em todo caso, nós, latino-americanos, somos os corpos sem espírito de corpo, os filhos naturais de todas as violações havidas e por haver, ou como diz Glauber Rocha: “Hamlets tropicais sem motivações edipianas”, no fundo, porque não conhecemos os nossos pais a não ser como aparições fantasmáticas de mestres que nos visitam reencarnados na rigidez cadavérica de eruditos, que amam a verdade com maneiras impotentes, maoístas ressentidos e enfezados pelas potências do falso, estrelas sonsas academicamente tituladas pela insistência (temática) ou persistência (com obra social), em última instância, como diz Rocha mais uma vez, “neste condicionamento econômico e político que nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência”.

Sem antropofagia, sem os agenciamentos de Glauber ou Borges, nós não temos nada que ver com a continuidade histórica que estudamos nas universidades. Se existe alguma filiação nativa é pela violação ou então por ondas de imigração em relação aos desfeitos da Europa.  Nós não podemos entrar na história da filosofia. Podemos inspirar a sua posta em cena, como reconhece Deleuze no prefácio de Diferença e repetição: “Seria preciso expor um livro real da Filosofia passada como se se tratasse de um livro imaginário e fingido. Sabe-se que Borges se sobressai na resenha de livros imaginários. Mas ele vai mais longe quando considera um livro real, o Dom Quixote, por exemplo, como se fosse um livro imaginário, ele próprio reproduzido por um autor imaginário, Pierre Ménard, que ele, por sua vez, considera como real” [2]. Ou ainda podemos provocar o seu delírio imanente, como reconhece Foucault no famoso começo de As palavras e as coisas. A Foucault pouco agrega o prolongamento resignado de Agamben, quando comparado aos regimes discursivos dos ensaios-ficção de Borges, e nada rende a Gilles Deleuze o rigoroso Badiou, quando comparado não apenas com Borges, como também com o nômade drogado Glauber Rocha. Os dois autores nos mostraram o que fazer com a philia descontinuada dos amigos da verdade e a filiação insuficiente de nosso folklore nativo.

1 – Inventar precursores. 2 – Fabular genealogias. 3 – Bifurcar as sendas do tempo presente, sobrepor aos fatos, às possibilidades, como diz Rocha: “de maneira que este pobre se converta num animal de duas cabeças, uma, fatalista e submissa, a razão que o explora como escravo, a outra… é naturalmente mística”. Ele próprio inventa o seu precursor ao fabular a genealogia do cinema novo, pela enésima vez, em 1971: “A  arte revolucionária deve ser mágica, deve ser capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda. Borges, superando esta realidade, escreveu as mais liberadores irrealidades de nosso tempo. ‘Sua estética é a do sonho’. Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais da minha raça. Esta raça, pobre e aparentemente sem destino, elabora na mística o seu momento de liberdade” [3].

Somos amigos de Bruno Cava, mas somos mais amigos em Glauber Rocha. O nosso amor também é comum. A analogia funciona, no pior dos casos, apaziguando a diferença. É preciso inventar os precursores do livro de Bruno Cava. Em primeiro lugar, para preveni-los da contracapa. O nome de Caetano Veloso ali é pesado demais para ser enfrentado. Quando Caetano acusa a aplicação literária dos textos de Deleuze ou Toni Negri na interpretação da atualidade brasileira, ele nos faz lembrar as acusações que sofreu o tropicalismo do próprio Caetano Veloso ao introduzir as guitarras dos Beatles para instrumentar a realidade brasileira. Caetano então reconhece a filiação do tropicalismo num precursor comum de Bruno Cava: Glauber Rocha. A multidão se foi ao deserto não deve tanto a Deleuze ou a Toni Negri, para além do princípio de invenção de precursores que introduz a fábula genealógica latino-americana, que produz a auto-afecção do tempo presente, isto é, o que permite pensar no sopé dos fatos suas possibilidades de direito.

Apesar de tudo, Glauber Rocha ainda é o pensador nativo que melhor apresenta o dispositivo filosófico do registro afetivo para a realidade contemporânea. Uma câmara na mão e uma ideia na cabeça. Um caderno na mão e uma ideia na cabeça. A ideia não se reduz à nomenclatura conceitual que remete a Deleuze, Toni Negri, Foucault, enfim, ao que há de mais eficaz no pensamento político contemporâneo. No entanto, por que privar-se disso? Somente pela evidente descontinuidade entre filia carioca e filosofia europeia: por acaso um francês teria mais direito a Glauber Rocha do que um brasileiro tem a Deleuze? Ademais, esse uso não é o essencial. Nem Deleuze nem Negri nem Foucault transitaram, corpo a corpo, por esta revolta, além disso, pensando, não somente o que acontecia como também o que poderia acontecer, o que se tornava possível na revolta, então mesmo a pertinência de seus conceitos depende mais disso do que de Bruno. Bruno esteve lá, os pensou, e não o fez para eles, nem sob a emoção de encontrar um contexto ideal para aplicá-los. Os conceitos não se aplicam, tchê Caetano. Somente os positivistas seriam tão tronchos. Quiçá a ciência natural deva pensar as suas noções à semelhança dos fatos. Mas a ideia política não se aplica à representação do que acontece.

Rousseau pensou a liberdade dos homens que em todos os casos se encontravam ligados entre si e a partir dessas ligações, isto é, compelido pelo intolerável de um estado de coisas que torna odiosa a verdade mimética e invencível do rival, do inimigo (que é) Hobbes: “não é tanto o que há de horrível e falso em sua política, como o que há de justo e verdadeiro, que a tomou odiosa” [4]. Para nós, rousseaunianos, a verdade de um conceito, a sua justeza ou precisão representativa, é o de menos.

Somos amigos de Bruno Cava, mas não somos mais amigos da verdade. Não aceito a verdade se isto implica aceitar este mundo. As coisas são como são. Sou amigo de Bruno Cava mas sou, muitas vezes, mais inimigo da verdade de meus inimigos, do que de meus próprios inimigos. Tenho ódio pela verdade impotente que consagra teoricamente a realidade de um povo submetido. O povo é o mito da burguesia, diz Rocha. A multidão se foi ao deserto, diz Cava. Já não nascem povos, diz Rousseau. O mesmo teria dito Rocha e Cava. Há um precursor  sombrio de nosso pensamento. Esta é a diferença amistosa com o meu amigo carioca. Numa época em que todo mundo se reivindica espinozista, eu quero inventar-lhe um precursor infame: Jean Jacques Rousseau.  Esta fábula de nossa genealogia comum não começa pelo amor à verdade que une os rivais, mas sim, como diz Cava, “por certa paixão do real”, paixão experimental, vital, da terra em transe. Termino com uma bonita citação: “Caminhando entre os black blocs se vê de tudo (…) estamos unidos antes por uma ética do que por uma causa ou bandeira. É a ética da recusa radical. Por que se indignam? Como não se indignar todos os dias? Mas uma ética é também uma estética. A revolução, já o dizia Glauber, é uma estética”, diz Bruno, que resume assim: “Quero outra coisa e tenho que inventá-la.”

 

Nicolás Fernández Muriano, ensaísta e professor, é autor de La Biblia Gaucha.

Notas

[1] – Antonio Gramsci, Os intelectuais e a organização da cultura.

[2] – Gilles Deleuze, Pourparlers, p. 148.

[3] – Glauber Rocha, Eztetyka do sonho, 1971.

[4] – Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, sobre Thomas Hobbes.

[5] – Bruno Cava, A multidão foi ao deserto, p. 85.

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