UniNômade

Um olhar sobre os cem anos da revolução russa

Por Salvador Schavelzon, em Urucum, 7/11/2017

Hoje, 7/11/2017, há cem anos da Revolução russa, alguns nos perguntamos por uma leitura desse acontecimento mais do que comemorativa, interessada na atualidade que essa revolução possa ter num momento em que custa encontrar caminhos eficazes de contestação do poder constituído e de construção de um mundo novo. Para os que se mobilizaram e organizaram em 1917 essas duas coisas pareciam possíveis. Eles estavam melhor que nós e não contavam com os fracassos das experiencias socialistas do século XX nem com o esgotamento da própria proposta política da esquerda. Era só questão de avançar pelo caminho que estava dado.

O projeto de esquerda construído nos cem anos anteriores a 1917, enquanto o mundo liberal burguês se consolidava na Europa, entusiasmava espíritos sensíveis e críticos da sociedade. Hoje esses espíritos preferem fazer outra coisa, ou não fazer nada. Se esse projeto fracassou, no entanto, junto com a ideia de ciência e de sociedade que carregava, estamos também melhor que os bolcheviques. Imaginem se fôssemos capazes de voltar ao momento da revolução russa, mas dessa vez com um século de experiencia política nas costas. Possivelmente pensaríamos antes em ação do que em comemoração, em mudar a vida antes do que em mudar o mundo. Tentaríamos ficar abertos e sensíveis ao que acontece ao nosso redor, mais do que em tentar transformar os outros, leva-los como base ou objeto da nossa revolução.

Mesmo que tomemos distancia de tudo o que foi feito pelos revolucionários russos naquela ocasião, e especialmente pela esquerda que trouxe até hoje essa referência do “quê” e do “como” fazer luta política, há algo desse acontecimento que sobrevive a todo revisionismo e tentativa de explicação redutora. Algo muito forte acontecia pela força da organização autônoma que se opôs à ordem conservadora-burguesa então dominante, deixando o comando na classe trabalhadora que havia feito possível a revolução. Os que não tinham nada conseguiram virar o jogo e desarmar o sistema de dominação do modo como estava estabelecido pelo império e sua continuidade liberal progressista.

Comecemos com assumir que Kronstadt e o gulag fazem sempre parte da discussão aberta pela revolução. Até porque tem revolucionários que foram massacrados e que merecem ser lembrados. Não se acomodaram ao regime, que sempre oferece a possibilidade de se deixar assimilar. Podemos fazer uma evocação romântica que silencie todo desvio para ficar com a imagem gloriosa de 1917, sem manchas. O Lenin cristificado, o Trotsky fundamental injustiçado ou ainda os sovietes anarquistas que foram reprimidos ou aniquilados. A esquerda ocidental já tentou atribuir os erros da revolução à tradição despótica asiática, ou às características da psicologia pessoal do Stalin. Não é suficiente. Apreender a densidade da revolução exige assumir a experiencia política completa, com tragédia, farsa e toda uma problemática, como dificuldades que não se resolvem num racha que proponha começar de um novo lugar, separando o bem do mal e se colocando a salvo do conflito. Assim nos conectamos com o acontecimento e não com ela como ideia. E assim fazemos dela um problema político que se conecta com os de qualquer época: o problema de quando a ruptura com a ordem se torna uma ordem nova, a revolução se burocratiza, seus precursores são excluídos enquanto autoridades se impõem de forma parecida ao que motivou a revolução. O problema pode levar ao fatalismo. Mas o desafio é entender como a luta política deve sempre encontrar novas formas e caminhos.

Se os bolcheviques expressavam rasgos asiáticos, sejam eles bem-vindos, porque precisamos de diferença quando é o excesso de aridez ocidental hoje aqui nosso problema. Tragam xamãs da estepe russa, nômades afegãos ou os métodos comunitários dos camponeses eslavos que sem dúvida enriqueceram as estruturas de poder dual dos sovietes em Outubro. Os problemas da esquerda e da direita do poder, são hoje bem ocidentais. Como foram também para a União Soviética. O stalinismo é a exacerbação da repressão política da dissidência, opositores políticos purgados e enviados a fazer trabalho forçado como no tempo do Czar. E isso aconteceu na revolução francesa, com o macarthismo nos Estados Unidos, e nas ditaduras latino-americanas. Hoje nos Estados Unidos, na Rússia ou no Brasil, um regime prisional perverso se constitui como forma de governo dos pobres e marginais. Mas o stalinismo é mais do que isso. Sem socialismo soviético, a Rússia se encontra com Europa e Estados Unidos em mais coisas do que se separa. Não é por acaso. Foi construído lá, em nome da revolução, um sistema de trabalho e produção que caminhou em paralelo aos de ocidente. Um sistema social, com populações enquadradas e socializadas no consumo e sonhos de bem-estar familiar, que passaria também pela flexibilização do burocratismo fordista para hoje se integrar no neoliberalismo global sem nação nem Estado, como devia ter sido o poder proletário. Controle policial interno e geopolítica da guerra de nações militarizadas no âmbito externo, já no caminho empreendido pelos bolcheviques depois da revolução, como novo poder estatal dos sovietes incorporados como órgãos de gestão desse mesmo sistema de trabalho.

Liberais gostam de apresentar a União Soviética de Stalin como regime oposto à democracia liberal do livre mercado. Não é incorreto dizer que a Rússia soviética era um regime anti-marxista ou anti-comunista, e que incorporou muito dos dois regimes com os quais rivalizava: o ocidental liberal capitalista e o do Império autocrático que o antecedera. Já com Lênin, e nas propostas econômicas dos trotskistas, é adoptado o caminho modernizador da industrialização e crescimento econômico com produção rural de grande escala, modo escolhido de gerar riqueza e gerenciar a vida social, implantado sem evitar a violência e destruição de mundos que esses processos tiveram no ocidente e em todo lugar. Difícil pensar como poderia ter sido distinto, e as consequências de outra escolha em relação ao papel crucial da União Soviética na derrota do nazismo na segunda guerra mundial e o atendimento da nova população urbana proletarizada. A URSS foi um grande Estado de Bem-Estar. Mas hoje é importante sim uma crítica que vem ganhando corpo a partir da década de ‘60, embora tivesse expressões minoritárias já na época da Revolução (com Bukharim, e outros), sobre a necessidade de pensar alternativas a um modelo que é ao mesmo tempo horizonte do desenvolvimento capitalista e, aqui entre nós, o programa da esquerda estatal e partidária latino-americana. O crescimento e a aliança com os industriais, e os empresários do agronegócio de expansão etnocida foi para vários economistas do PT no governo da Dilma, a alternativa para sair do modelo neoliberal mais ortodoxo. A retórica da industrialização, não realizada, foi também o que se constituiu como projeto político do Evo Morales depois de romper com os movimentos indígenas. Uma evocação da Revolução Russa hoje deve abordar o problema do modelo econômico, e também da democracia, aspecto inseparável e que também dirigentes como Trotsky e Luxemburgo alertaram (por exemplo a respeito da Assembléia Constituinte e necessidade de aprovação da tomada do poder pelos proletários).

A revolução russa, de fato, continua entre nós com suas tragédias, linguagens e possibilidades de ruptura. E se faz necessária de ser pensada para encontrar lugares políticos onde tudo parece fechado, nos debates da esquerda, ou quando mesmo fora do governo, vemos os projetos deste campo apoiados no soberanismo welfarista, no lugar em que depois da revolução internacionalista o processo revolucionário se encontra falando da pátria mãe, com aquela imagem do Stalin pilotando o barco que seria a URSS, e isso quando não é apresentada como inexorável a agenda liberal dos bancos, como em Brasil de 2015, a capitulização do Syriza e as tentativas de Podemos, na Espanha, para encontrar um atalho para o poder fazendo um acordo de governo com o PSOE, aceitando preservar os consensos de ‘78 contra os que nasceram em 2014. 1917 e a posição bolchevique no contexto da Europa é ruptura com respeito aos nacionalismos e as socialdemocracias acordistas, numa esteira internacionalista e proletária, que desconfia dos acordos com a burguesia nacional.

Não é suficiente nos conformar com o mantra de “outro tempo, outra realidade”. Se resgatamos a Revolução Russa, é preciso nos conectar com sua potência que era derivada de situações políticas bem concretas. O poder dos sovietes e, ai sim, a abertura para o indeterminado e selvagem que dificilmente possamos traduzir. O poder para os sovietes, em 1917, não significava necessariamente coletivização forçada, industrialismo acelerado com metas alienantes, e carreira militarista com ocidente. Significava não apoiar o governo provisional formado por liberais e progressistas, a pesar de este ser um avanço a respeito das posições “fascistas” do czarismo mas como bloqueio do que Lênin e Trotsky, como jacobinos sensíveis, viram como tradução política do comunismo possível: o poder para os trabalhadores, para os de baixo, reorganizando o sistema e direcionamento social . A revolução mostrou assim um caminho que possivelmente hoje possa ser imaginado sem jacobinos, e sem proletários, como corpos e sociedades que se constituem como único poder político sem mediações e com autonomia. Mas era também a concreção do que antes apenas havia sido ensaiado sem sucesso ou imaginado.

Se tivéssemos que ficar apenas com um gesto, um movimento para entender a essência da revolução de outubro, talvez possamos ir para uma situação política clara, onde o governo provisório se recusava a interromper a participação de Rússia na guerra, e atrasava as reformas e medidas sociais às que se havia comprometido. Os bolcheviques sabiam que os moderados nunca fariam as reformas prometidas, porque isso implicaria para eles perder o poder. A sacada, que era minoritária e contrária inclusive à posição adoptada pelo partido bolchevique, era não colaborar com esse governo e defender a posição que apostava nos soldados, operários e camponeses mobilizados. Num telegrama de março de 1917, Lênin era claro: “Nossa tática: absoluta desconfiança, nenhum apoio ao novo governo, suspeitemos sobretudo de Kerenski, armamento proletariado única garantia, eleição imediata Duma de Petrogrado, nenhuma aproximação de outros partidos…”. E a estratégia? Não importa, porque são as táticas certas as que conseguem as coisas.

Trazendo para nossa realidade essa ruptura que abre para o imponderável, ainda com o risco de que todos os que defendem essa posição sejam fuzilados, lembramos dos debates brasileiros de 2016 em que tendências marxistas do PT raciocinavam como se Dilma Rousseff tivesse que se defendida porque fazia as vezes de Kerenski, sem quem uma posterior revolução não seria possível. Lembrando os raciocínios mecanicistas da ortodoxia marxista, a ideia é que a revolução se estuda passo a passo e sem Kerenski (Dilma) não poderia haver o avanço posterior necessário. No entanto a revolução é justamente se jogar num vácuo de insurreição que possa abrir o que está fechado, como golpe ao governo provisional, para os bolcheviques, mas também como junho de 2013 para a juventude do Brasil que sabia que o PT era um limite que não poderia deixar de agir de forma coordenada com a classe dominante, e os partidos conservadores com os que tinha aceito governar. A interrupção do governo com mecanismos ilegais, assim, entendidos como parte normal do funcionamento de um sistema de governança ao qual esquerda e direita se entregaram.

Para além da idea PT, que ainda alguns seguram, mesmo fora do partido, o momento de ir além do governo provisional no Brasil foi não apenas desouvido, mas também reprimido pela esquerda no poder. A partir daí o consignismo apelativo “golpe”, “fora temer”, “diretas já”, “Lula 2018” aparece como um letargo discursivo, sem corpo, nem povo mobilizado que se proponha fazé-lo efetivo. Independentemente de poder ser assumido ou não como uma posição correta, em determinado momento, as consignas levadas pela esquerda e aparelhos da órbita lulista, se mostram como avesso do “Pão, Paz e Terra”, como lema que nomeava o que pouco antes era impossível (sair da guerra, resolver a fome), mas no entanto se realizava enquanto o mundo em que era impossível desababa, a partir de conectar, ao contrário dos slogans no Brasil, com as energias entorno da feitura de um “nós” coletivo que ao mesmo tempo nasceu de, e fez possível a revolução. Essas energias vitais faltam à esquerda que se projeta contra junho de 2013, na eleição de 2014, na Copa e hoje novamente em pactos eleitorais com a direita, reivindicando como lugar de poder o apelo a um direito adquirido de ser o Estado e a legalidade, no controle das narrativas da esquerda, mesmo que desse lugar não seja possível mudar os condicionantes do real.

Essa leitura, que busca pontos de apoio nas lutas e comuns possíveis, era de consenso em 2013 e hoje divide a esquerda, com boa parte dela dependente das agendas eleitorais, com poucos homens falando de cima e longe, no teatro das instituições que transformam eles mais do que permitem ser transformadas. O ciclo progressista sul-americano gerou uma mística que ainda cativa, com a imagem positiva, especialmente na distância, de Mujica, Chávez, Evo Morales, ou do governo Lula, no Brasil, que reunifica a esquerda do governo inclusive com seus críticos e dissidentes anteriores, na frente do avanço e vitória eleitoral de oposições de direita. Não analisaremos aqui essas experiencias de governo. Mas cabe notar que a ideia de revolução é apropriada pela experiencia progressista para descrever um ciclo de bonança económica que favoreceu bancos, grupos empresários e liberou um processo de intensificação da exploração de recursos minerais, da agricultura e do petróleo, com amplo impacto sobre populações e territórios, mas como base necessária para garantir estabilidade econômica para os negócios, que se traduzia em estabilidade política, e mesmo sem lugar para transformações estruturais, ou de profundidade, que por exemplo reorganizasse a educação, promovendo um sistema diferente, em lugar de ampliar a matrícula pelo caminho do suporte de universidades particulares de má qualidade; ou sem questionar a organização capitalista e segregadora da cidade; a segurança e violência policial como ferramenta de contenção social; ou um consenso de civismo que impeça a repressão e perseguição de ativistas e protestas sociais. Embora houve programas sociais amplamente expandidos, e diferentes níveis do governo puderam tender a promover um governo social, antes que neoliberal, o desafio político que uma experiencia política revolucionária de esquerda nos evoca, nos deve levar a decretar que o caminho progressista mostrou seu limite e, por tanto, dificilmente possa ser pensado hoje como solução eleitoral que deveria organizar em seu favor a toda a esquerda.

A defesa dos progressismos poderia dizer: isso é o que era possível, ser revolucionários nos anos 2000 foi fazer o que estes governos fizeram. Mas não, a revolução russa não foi apenas o aproveitamento pontual de uma conjuntura, que se alcancaria mais ou menos de acordo com a situação política ou alinhamento dos astros. O poder proletário, a revolução onde tudo se abre e passa a ser discutido foi um acontecimento único que mostrou que a história e o poder pode ser desafiado. Era possível, então, pedir mais para os governos progressistas latino-americanos. E exatamente isso foi junho de 2013 no Brasil; as marchas camponesas e de trabalhadores no Equador; as assembleias de 2002 na Argentina, depois do fracasso do governo que iria a tirar o país do neoliberalismo; ou a Bolívia da guerra da água e do desafio indígena ao poder estatal, inclusive, por alguns momentos, dentro do Estado.

O final do progressismo, no Brasil e em outros lugares, é constatado na nostalgia e fraqueza política, que uma e outra vez é exposta no movimento pessado de uma esquerda de aparelhos e grupos que gritam no microfone e se colocam de forma autoflageladora, vitimizante e ao mesmo tempo arrogante, sem ter podido dar lugar a um ciclo de mobilização que se oponha ao frágil governo Temer, nem à uma mística de resistência para além de algumas expressões estéticas, mas bem longe de imaginar uma nova sociedade, como as artes e técnicas mostraram na Rússia da revolução, a pesar da repressão e represálias que viriam para os que ousaram pensar ou criar por fora dos canais autorizados da esquerda oficial, devenida Estado. Difícil não voltar então à tradição da esquerda que se referência na revolução russa, quando o que está em pauta, no Brasil e no mundo, é uma disputa que se continua dando na linguagem do século XX, e encontra de um lado uma direita furiosa que imagina uma esquerda socialista conspiradora, prestes a implementar um programa de comunismo de guerra (posição atribuída até para keynesianos ou nacionalistas estatistas); frente a uma reação da esquerda que responde atrincheirada nas bandeiras vermelhas, como se estivesse dentro de um filme de Eisenstein, ou então o avesso, na sua variante populista, se aproximando ao adversário da pátria e a ordem implementada de cima pra baixo, como se a forma de combater o xenófobo intolerante que na Grécia, Rússia e outros lugares mostra expressões abertamente nazistas, seja disputar os baixos instintos de um povo formatado pelo Estado; em lugar de desafiar o tempo, superar as formas dadas; multiplicar as lutas e desejos ali onde as esquerdas e direitas do Estado se ocupam em domesticá-las.

No campo político ocupado pela direita social, dita liberal, e a esquerda velha e nova, em perfis identitaristas ou do Estado como resposta para tudo, vemos duas parcelas minoritárias de expressão política polarizada se reproduzindo de forma desconectada do dia a dia da população, como debate espetacular sem ancora na vida das pessoas e, no entanto, em uma ilusão de totalidade, como se estivéssemos de fato disputando a sociedade nessas discussões, numa batalha de Leningrado ou na resistência contra o nazismo, onde o tudo ou nada estaria em jogo, enquanto no campo das materialidades a esquerda que pretende salvar o Brasil do fascismo acabou de co-governar com seus inimigos. A pretensão de representar na pele o destino da nação, a esquerda não faz mais do que continuar assimilando formas de funcionar e de pensar das elites, como ficou claro na imposição de um projeto político que não foi votado e que não evitava a austeridade, o ajuste e o corte de direitos sociais, as alianças com pastores homofóbicos e a relação de proteção com a política que assassina. Em definitiva, com o que agora chamam de fascismo, que é também o que nos leva a recuperar a Revolução de Outubro.

Favorecidos pela plataforma de disputa eleitoral e a difusão dessa oposição em compartilhamentos de redes sociais e plataformas de comunicação via celular, os herdeiros da revolução e do fascismo ou catolicismo conservador não se aproximam hoje da ruptura, mas do aperfeiçoamento da ordem, nas suas variantes progressista ou conservadora, numa bolha inflacionada de retórica e desonestidade política de parte da esquerda que pede o voto novamente. Existe fascismo na mesma medida em que a esquerda encarna revolução. Isto é, como gestos, desejos íntimos, propostas e visões de mundo, mas isso não significa que esse seja o quadro que descreva a ordem social possivel. O oposto de 1917, onde a nova ordem evitava o surgimento de um fascismo, a restauração autocrática ou uma república burguesa padrão.

Quando uma formação política de esquerda se entrega à administração dos assuntos da burguesia, sem buscar alternativas políticas anti capitalistas ou anti neoliberais, apenas cabe o rompimento, caminhar no deserto ou apostar em lutas vivas, mesmo que decretadas como menores, “apenas sociais” e não políticas, ou que não seriam estratégicas porque se opõem à máquina de desenvolvimento ou ao anseio de retomar o crescimento e avanço das empresas nacionais. A chantagem do “possível”, a esquerda com possibilidades de freiar o fascismo, é o obstáculo para outra política que supere o fascismo políticamente, na construção de um mundo onde ele não faça sentido.

Em conseguencia, e honrando a vigência do corte no tempo aberto pela revolução de outubro, a esquerda demostra poder entrar novamente num modo de funcionamento stalinista, neutralizador das energias revolucionárias, burocratizante e autoritário. Na frente do fascismo, às vezes explícito, às vezes projetado como ameaça e auto-legitimação para pedir apoio eleitoral ou chamar para uma praça que permanece vazia, a esquerda latino-americana vem mostrando reações desse tipo com vozes críticas. Assim são excluídas da imprensa progressista ou diretamente difamadas posições de ambientalistas ou organizações indígenas históricas na Bolívia e Equador, ou se reclassifica junho de 2013 no Brasil, impulso vital, transformado em responsável do ódio contra o PT, assim como já naquela época, grupos anarquistas e autônomos ou Black Blocs, foram criminalizados por referentes intelectuais de esquerda e membros do governo, como reação ao que viam corretamente como expressão política que os impugnava.

A pergunta que fica no ar é até que ponto fascismo e stalinismo se precisam e constroem mutuamente. Pensando na União Soviética e aqui, quais caminhos políticos garantem combater o fascismo de forma mais eficiente? Quando dentro da esquerda encontramos tendências que por trás da oposição retórica mostram uma afinidade (industrialismo, nacionalismo, verticalismo, repressão da dissidência) vemos não só que se tivéssemos tido um governo de esquerda revolucionário, muitas ações poderiam ter sido feitas contra um fascismo micropolítico que evidentemente reflete o pensamento conservador de boa parte da população, e a subjetividade neoliberal que não é desarmada com as políticas públicas do progressismo. Se a nossa sensibilidade de esquerda nos mobiliza contra o fascismo, não era para ter buscado caminhos diferentes do que alianças com o grande capital financeiro? Com modelos de produção que destrói florestas e vida no campo? Com a ocupação do Haiti e uma relação de potência imperial com países irmãos?

Em vista da situação, não é possível saber se é possível outra esquerda. Nem faz sentido se perguntar sobre quais posições são mais revolucionárias. Muitas revoluções foram feitas por acaso, por quem não devia ou estava preparado para assumir um papel revolucionário. A revolução muda as pessoas e o mundo, e por isso faz sentido hoje pensar a política como relacionada com outros mundos, esses que não separam natureza e sociedade e no pensamento indígena, mas também em projetos urbanos e na experimentação de laboratório mostram que a sociedade que os séculos XIX e XX imaginaram está sendo superada em vários lugares.

Como pensar hoje o sujeito da revolução. Neste século houve mudanças no capitalismo, no trabalho, na subjetividade e na visão que temos sobre o mundo, existente e desejado, ao ponto de ser necessário abrir um debate não apenas sobre as condições para a revolução, mas também sobre quem, de fato, deveria fazer uma revolução hoje, caso isso seja politicamente necessário e possível. Não se trata apenas de adequar a ideia de classe às condições de trabalho fora da fábrica, como os teóricos do trabalho imaterial e o capitalismo cognitivo já fizeram. Se trata também de entender uma realidade onde a própria ideia de homem, se encontra transfigurada, afetada por tendências post-humanistas; de incorporação dos não humanos ao entendimento do jogo político; e da percepção de muitos de que o mundo; não é mais um ambiente físico inerte onde se desenvolveria a ação do homem como sujeito histórico e predestinado a algo, numa “sociedade” ou “civilização” que o conteria. Não há teleologia que possa ser sustentada hoje sem conflito, não há sujeito nem história que possa ser entendida de forma iluminista e estável. Isso nos leva, de um lado, para as margens, as comunidades, os sujeitos excluídos da narrativa moderna, por ser híbridos, desasujeitados, misturados, invisíveis para os códigos e formas de percepção anterior, inclusive ou especialmente da esquerda. Movimentos territoriais, étnicos, etc., não organizados a partir do local de trabalho, já têm sido incorporados pela teoria e prática da esquerda. Também a esquerda os tem capturado, manipulado ou utilizado como base para os mesmos fins que antes partidos de massa ou sindicatos foram burocratizados. A ideia de sujeito histórico, no entanto, inseparável da vanguarda que se torna esse sujeito, o conduz ou orienta, continua presente nas formas de ação política. Não buscamos aqui dar conta desse debate, mas é válido registrar que depois de cem anos da revolução russa, não apenas o conceito de revolução não descreve o tipo de transformação que muitos revolucionários estão buscando, mas também que o quem, como, para quê e aonde da revolução, estão hoje abertos e tensionados. Devires antes que movimentos e sentidos dos processos, conexões antes que organizações e agenciamentos vividos em lugar de marchas históricas. Em lugar de golpes e rupturas de violência militar a revolução se coloca como impossível se não é pensada como afetos, relações, contestação da ordem, não apenas político-econômica (como se fosse pouco!) mas também dos princípios autoritários de uma sociedade capitalista que separa muito do que pode permanecer junto, privatiza, mercantiliza e bloqueia fluxos vitais de um mundo que pode ser outro, ainda hoje.

Sem clareza sobre o sujeito, o futuro, o espaço territorial da revolução, vejamos se, pelo menos, conseguimos pensar hoje esse poder social popular que foi a base da revolução de 1917. Os Sovietes, que não deixaram de encontrar internamente um esgotamento e refuncionalização, quando o poder do estado soviético os colocou para trabalhar. A falta de clareza, aqui, pode ser virtude e não diletantismo ou falta de compreensão dos devires sociais. A falta de clareza é adequada na falta de forma e caráter fluido que substitui as formas do trabalho, participação política, organização coletiva e afetiva. Esse poder de baixo, que nada consegue representar, menos ainda as formas republicanas e liberais voltadas para o indivíduo proprietário até agora. Sem uma forma de luta por caminhos previsíveis (aquele chamado eterno para uma greve geral revolucionária que quando acontece encontra fora dela à esquerda que sempre a procurou); sem chance nem vontade para um movimento que se oponha ao Estado no campo dos armamentos e dispositivos de repressão e segurança militar, o que temos é o que está acontecendo. As lutas. Comunidades quilombolas que se organizam contra agronegócio e mineradoras que invadem suas terras. Ocupações de escolas, de terrenos, de prédios, de espaços institucionais, de ruas, de propriedades ociosas, de lugares do Estado. A sexualidade vivida de uma nova maneira, ou a arte significativa fora dos circuitos comerciais. Territórios ancestrais, que são re-ocupados, ou ainda ocupados, com outras lógicas diferentes as que mandam os poderosos. Territórios que não se vendem, como a família de pastores que se recusa a entregar o último pedaço de terra no setor controlado pela empresa mineira Yanacocha, em Cajamarca, Peru. Criar poder territorial, e novas instituições, horizontais e livres, nos bairros, nas comunidades, na rede de computadores. Os sem teto ou estudantes que ocupando começam a construir a educação ou a cidade que querem. As fábricas, ainda, porque a revolução proletária ainda existe onde tem trabalho para ser reapropriado, ou interrompido por greves que certamente hoje estão muito mais abertas a virar lutas que se conectam com uma recusa do mundo da exploração do trabalho, com hortas comunitárias, lutas de periferias ou centros. Se partidos e nações fazem hoje algum sentido é para serem ocupados. Um problema dos progressismos latino-americanos é que perderam essa conotação. Não eram índios, trabalhadores, camponeses, mulheres, militantes de direitos humanos ocupando instituições. Se tornaram uma nova elite, geralmente branca, deixando a índios e sem terra bem longe das decisões, virando o Estado que muitos deles sempre foram, no pequeno poder de sindicatos, universidades, carreiras políticas. Outros deixaram de lutar aceitando a força de processos que, sem contrapoder e resistência, transforma até os melhores intencionados em peças de uma máquina de administração.

Os sovietes são trabalhadores organizados contra o patrão, ocupações libertárias e também uma plataforma online que consiga fazer confluir energias de ruptura. O desafio é sintonizar, todos com todos contra o poder, e ativando um poder multitudinário que mostrou, em vários lugares, que quando acorda pode tudo e depois permanecerá como marca. O poder dual dos bolcheviques, que se tornou um novo Estado, pode hoje estar num outro nível, porque o capitalismo está ao mesmo tempo mais distante, articulado globalmente com uma rapidez difícil de neutralizar pelos meios tradicionais, de forma imaterial e também mais perto, dentro de nós, com dispositivos de dívida, isolamento, e neoliberalismo nas relações, direitos e formas de vida. Em lugar de criar um Estado, um banco, um partido, conseguir estar além, e, no entanto, envolver nesse além nossas vidas, que possam começar a funcionar com outra lógica, do comum, das táticas que neutralizem o poder, mesmo na cidade e no centro da produção capitalista. A revolução russa teve sucesso em se impor como nova realidade para todos os que antes se acreditavam súbditos do czar. No mundo de hoje pensar para além da mercantilização da vida e o neoliberalismo dentro de nós é possível também.

Como contra poder, com instituições novas do comum e armas para disputar uma subjetividade formatada pelo capital que constrói outro mundo, enquanto decreta a obsolescência do que o precedeu. O importante dos sovietes é como se constituem como nova realidade, antes invisível ou reprimida pelo poder anterior, mas se tornando fato quando passou a ter as respostas que os trabalhadores mobilizados queriam ouvir. Os sovietes seriam também reprimidos, invisibilizados, refuncionalizados depois de que se criara um poder soviético. E esse talvez seja o problema que se coloca para os espíritos libertários de hoje. É possível sovietes sem Estado soviético? Existe possibilidade de “todo o poder para os sovietes” sem que uma instância separada, autônoma do movimento, uma nova burocracia que diga os representar, mas tome seu lugar, seja possível?

A revolução russa é criação de condições para que aconteça o impossível. Ela desafiou a história, e não era o produto de um processo que a tinha por fim. Aconteceu contra o mais esperável: o estabelecimento de uma república burguesa na Rússia, como as da Europa ocidental, ou a repressão do movimento radicalizado nas ruas, como ocorreu meses antes de Outubro, e em 1905. A revolução Russa é também a revolução que não aconteceu antes na Alemanha, e que também não foi estopim de uma revolução mundial. Ela aconteceu contra a repetição e o poder, e é isso que nenhum poder conseguirá fazer que não aconteça mais. Onde há poder há resistência, e todo poder em algum momento cai. O fascismo existe, mas nosso objetivo principal não é derrotá-lo. Nosso objetivo anterior é fazer a nossa revolução, e é isso que vai impossibilitá-lo.

 

Salvador Schavelzon, antropólogo, é professor da Unifesp, participa da rede UniNômade e é autor de El nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia e Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir, ambos em espanhol, pela ed. CLACSO.

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