Por Inaê Diana Lieksa
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A realidade encontra-se contaminada. A cabeça encontra-se na mira de um drone. Um vírus traz a anunciação da morte, e, por sua vez, a experimentação de um viver doente. Torna-se ambíguo, imoral e encantador. Um espasmo faz recordar que se está vivo, como quem luta para não se afogar.
Nascido em meio a arranha-céus que redesignam o abismo com mutilações espaciais, sob algum tipo de signo lunar emaranhado nas pautas geográficas de uma partitura cuja melodia arranja-se em Fá, e torna-se dissonante no olhar nômade. O perfil de uma nota esvoaça no estalar de dedos já por algum movimento de escritança marcados. Nas microtonalidades foliculares arranjam-se versos que transbordam um alto teor embriagante. Mantenha-se de instante. Movimentam-se os dedos pela folha como se dançassem registrando um abalo sísmico sobre a sua superfície.
Vontade!
Vão tarde as reticências que contornam espectralmente a cadaveridade de uma lembrança com desejos de eterno retorno almiscarada. Não mais ver-se-á de tal forma figurar disforme conforme as dramaticidades nada comoventes de uma envergadura assimétrica de Möebius superciliante.
A incandescente doçura de mais de 4.700 substâncias tóxicas, cujo consumo não possui seguridade alguma quanto a níveis de introdução na textualidade do corpo – máquina esta criadora de poliédricos contos que reverberam na citacionalidade do silêncio insuportável, de todos desejo se faz a placidez que se pressupõe acompanhar o mesmo, de John Cage. Vê-se que a guerra é produto da paz, e a paz, financiadora transnacional e imperialista de trajes alternativos-, se emenda em circuitos escrobiculados de palavras impugnantes quanto à perda de sinal propriamente dita na transmissão versicular. Um parlamento em chamas, e todo o equilíbrio se desmorona com o peso do próprio corpo. Um humor aquoso percorre como uma víbora atrás de sua presa, a topografia arenosa de um rosto mascarado pela particularidade de um sorriso lançado como carta coringa no momento de introspecção. Esvazia-se o fundo sem fundo. Espalha-se o vírus.
Para cada sentimento que se subtrai, um aprimoramento de sua resolução em pixels se funde à teatralidade pitoresca de uma ideia de interioridade, cujo propósito, se não o de nos encher com seja lá o que for como sacos de areia para as pancadas violentas dos acontecimentos – dos quais não possuímos previsão alguma-, se trata de uma medida desesperada de se auto-afirmar, de se substanciar (como, com o quê, não se apresenta, pois pensar dói, desassola, perturba), diante do Nada, um espelho plano e maculado por historicidade, incrustado na face de outrem. O ursinho de pelúcia não passa de um tapete, se não preenchido com algodão.
Iniciam-se os procedimentos para a cirurgia. Expostos à mesa os instrumentos que serão utilizados, um frio na barriga antes da aplicação de (tetra)fármacos que bloquearão a sensibilidade tátil e dolorosa. Dispensam-se os comprimidos do fascismo platônico (“pátria”, “família”, “espiritualidade”, as instituições e seus departamentos que regulamentam, burocratizam), que higienizam e previnem os corpos da possibilidade de infecção (não mais muitos lobos, senão um cão apenas, domesticado e castrado, pressupõe o fascismo platônico), de dispersão, de intercâmbio de fluxos. Realiza-se então a cirurgia, órgão por órgão a ser retirado. Nada mais pulsa. Não há mais impulso.
Diante das instituições e seus territórios que se assemelham a campos de concentração, sistemas fechados, que ensinam despedidas atrás de despedidas, percebo que me encontro à margem, a mão sangrando enquanto encosta nos arames farpados. Eu possuo um corpo, e todo espaço por onde caminho me possui. O sangue pinga na terra. Ela o absorve. Quem, afinal de contas, seria eu?
As coisas, assim como eu, transicionam. Onde possivelmente eu inicio, e onde termino, só me é apreensível a partir de uma mutilação disso que considero como realidade, ainda que a própria realidade se dá à medida que a construo como tal. Nada é dado, tudo é produzido. Haveria diferenças entre um “mim” e a cidade, e os animais, e incluso outros sujeitos e objetos, que não fossem confeccionadas por ‘’mim’’ mesma, sendo também este “mim” produto e processo de um certo número de tecnologias sociais ou aparatos biomédicos?
O corpo, camuflado o seu aspecto maquínico com “humanidade”, se torna algo manipulável à luz dos holofotes das emissoras de tv. Conforme recebe corda, enforca-se. A morte, acontecimento do qual se deseja uma distância – sem se considerar que a distância figura na fábula da metafísica-, a maior possível, torna-se corriqueira em demasia, e o suicida, detestado e filmado por todos, apenas o reflexo emancipado de quem o observa. Desligue da tomada qualquer aparelho de verificação social, e o que se tem é a eutanásia da “humanidade”, sem que flamulem os joelhos diante da possibilidade – ainda humana- de uma ortotanásia. O pior de todos os cárceres chama-se “humanidade”, e o seu sistema de punição, “humanismo”.
Uma resistência fóbica consola o último dos homens diante do eclipse que devorará tal como previsto por povos denominados originários. Uma realidade pós-apocalíptica indígena desvelará do céu a sua fragilidade diante da finitude do Sol, espalhando as suas vísceras sobre a seda bíblica da qual se entorpeceram por séculos os seres humanos. Aqui encontra a “humanidade” a ressaca de sua embriaguez forjada sob gozo regulamentado, a qual, dada a sua brevidade, logo das areias do imenso litoral da existência eliminará os resquícios desta toxina que, mudando apenas os predicados, se registra “homo”.É o fogo prometéico como um produto e processo de um desejo maquínico intenso que transborda rasgando as páginas de inscrição do livro-corpo regulamentado na burocracia dos cartórios, o que possibilitará o desglaciamento, acarretando num dilúvio que, não tão somente devorará o “homem” desenhado nas areias da praia, como também a própria praia, e quaisquer possibilidades de um novo desenho de um novo ‘’homem”.
Ecce homo! Ecce homo!
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