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O rapto da europa: por que Europa? (parte 1)

Por Provisional University (Dublin, Irlanda), em 12/3/14, no seu site | Trad. Aukai Leisner

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Essa é a primeira de uma série de postagens sobre o evento A nova rapto da Europa, que reuniu pesquisadores e ativistas entre 27 de fevereiro e 1º de março, em Madrid. Sua linha de ação foi “romper as divisões entre o debate público e a ação coletiva”, em meio à crise da governança europeia e a efervescência de lutas e movimentos naquele continente. O evento contou com a participação da rede coligada EuroNômade.

Basicamente, os participantes do encontro ainda acreditam na dimensão europeia, para organizar os movimentos e enfrentar a crise de direitos imposta pela governança financeira da Troica. Essa Europa maldita, um pan-europeísmo das resistências — formulada desde experimentos de autonomia e, também, com uma face institucional (como o “Partido X”, ou Partido do Futuro, na Espanha), — configura um particular mapeamento, e caminhos próprios de copesquisa, num contexto de retomada do ciclo de lutas disparado em 2011 no norte da África (ver, a esse respeito, nossa recente tradução de artigo de Jerome Roos, no ROAR, sobre a mobilização pelo comum na Itália).

Parte 1

O evento A rapto da Europa foi organizado pela Fundación de los Communes, uma espécie de organização guarda-chuva, abrigando projetos como a editora Traficantes de Sueños, a Universidad Nómada (Espanha), o Observatório Metropolitano (de Madri e Barcelona), e o Movement for Democracy. Foi patrocinado pelo museu Reina Sofia de arte contemporânea. Alguns vídeos estão disponíveis aqui, e será postado mais sobre o assunto assim que possível.

O principal objetivo do encontro foi desenvolver a dimensão europeia dos movimentos sociais contemporâneos, em resposta ao contexto social e econômico dominante. Como outros que participaram do evento, nós partilhamos da urgência dos organizadores em relação à importância de construir um movimento social e político pan-europeu, capaz de transformar a agenda do dívida e da austeridade e desafiar o esvaziamento das instituições publicas e democráticas. A Europa é hoje o centro do comando capitalista, a principal escala em que a crise está sendo governada, em termos políticos e econômicos, para reforçar a acumulação de capital e poder econômico pelo sistema financeiro e a elite europeus. Mas a importância da Europa emerge não somente a partir de uma análise da política econômica, mas também a partir da reflexão dos atuais obstáculos que enfrentam os movimentos sociais e a esquerda através do nosso continente.

O caso espanhol talvez seja o mais ilustrativo. Junto com a Grécia, a Espanha sem dúvida testemunhou o maior ciclo de mobilizações dos anos recentes, na sequência do que ficou conhecido como o Movimento do 15 de Maio (15-M). Esse movimento, em muitos aspectos, se parece tanto com a Primavera Árabe quanto com o movimento Occupy, e representou uma ruptura extraordinária com as práticas políticas existentes em todos os níveis. Em particular, as formações ideológicas fortemente identitárias que dominavam o campo da política radical (anarquistas, socialistas, ou autonomistas) foram desafiadas por uma nova forma de organização coletiva, de pensar e praticar a política.

Em especial, o movimento do 15-M tornou público e visível o crescente abismo entre as instituições políticas (as eleições, a representação, o sistema político-partidário) e as pessoas, especialmente a juventude. O movimento representou um importante papel deslegitimador, (o que na Espanha é chamado “proceso destituyente”), abrindo assim espaço para alternativas.

Por outro lado, o movimento produziu novas formas de prática democrática, via assembleias democráticas diretas, a construção de esfera online peer to peer, e experimentos com muitas formas de organização, como a “democracia distribuída”. O movimento do 15-M também galvanizou algumas lutas existentes, como o movimento antidespejos, e funcionou como uma espécie de incubadora para a onda de lutas por serviços públicos (por exemplo, com a Marea Blanca, no campo da saúde).

É difícil expressar o quão significativo o movimento tem sido como um “modificador de regras” na política tradicional e de resistência. No entanto, o movimento só obteve sucesso relativo no que diz respeito a seus objetivos centrais: a reforma/transformação do processo político e, mais particularmente, derrubar o poder da Troica (o triunvirato da governança europeia: Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI), a austeridade e a dívida.

Embora um número significativo de despejos tenha sido evitado com a resistência, muitas unidades habitacionais pertencentes a bancos tenham sido redestinadas à habitação social, e também a privatização de um número de hospitais em Madrid tenha sido paralisada; o consenso dentro do movimento é que a produção de instituições do movimento — fora do estado — bem como a obtenção de uma legitimidade e participação pública maciças ainda não foram suficientes.

Os debates e discussões dentro do movimento têm focado em duas vias principais para superar a sinuca de bico. Em primeiro lugar, a questão das instituições públicas (isto é, do estado) foi reconsiderada. Mais concretamente, há um reconhecimento largamente difundido de que o movimento precisa combater e transformar as instituições do estado além de produzir instituições do movimento. As duas principais abordagens, nesse sentido, são a noção de um processo constituinte ou constitucional (a abordagem preferida pelo Movement for democracy) de um lado, e a criação de novas formas de partidos políticos (sendo o Partido X o experimento mais importante), de outro.

Em segundo lugar, há a crescente preocupação com as limitações impostas pela escala nacional. O papel das instituições europeias na implantação do neoliberalismo e da financeirização (via a estrutura do Banco Central Europeu e a disciplina fiscal incensada por vários tratados) tornou-se cada vez mais claro e, ao mesmo tempo, o jugo da Troica sobre os países europeus periféricos, na completa ausência de um mandato democrático, demonstram claramente que as instituições europeias são os principias mecanismos de comando capitalista na Europa e, portanto, de imposição da austeridade e da “dividocracia”.

Por outro lado, a geografia nacional da crise tem sido usada pelo establishment europeu para governar a crise. Isso se dá através da imposição a países menores e economicamente mais fracos de pagar as consequências da financeirização. Também se dá de forma crucial através da limitação de qualquer alternativa dentro de cada nação.

Por exemplo, a resposta imediata de qualquer proposta de mudança na Irlanda é que “o dinheiro não está lá”, uma resposta que destrói a possibilidade de alternativas pela naturalização dos mecanismos de controle do déficit e a estrutura de empréstimo governamental na Europa, que são as principais razões pela quais “o dinheiro não está lá”.

Na Grécia, essa dinâmica foi ainda mais inflexível: impor a austeridade ou deixar a UE. A estratégia de nacionalizar a crise marginalizou uma esquerda já acossada por dificuldades. Em particular, tornou muito difícil para partidos e alianças de esquerda, orientados para as eleições nacionais, articularem um alternativa clara, devido ao fato de que as escolhas de política nacional são severamente limitadas pela disciplina europeia em torno da dívida e da disciplina fiscal, a moeda única e a integração econômica real dos estados-membros.

Aqui, a importância de construir um movimento pan-europeu surge como uma tarefa política chave. É crucial, no entanto, refletir aqui sobre a relação entre os movimentos e as instituições europeias na tentativa de levar essa tarefa adiante, e dessa forma retornar a alguns dos debates sobre o estado apresentados  acima. As experiências do 15-M espanhol , e em alguma medida a experiência mais duradoura dos dos movimentos anticapitalistas locais, nos dizem que não será suficiente criar movimentos na Europa que tenham suas próprias formas institucionais e organizacionais fora do mainstream. Não será suficiente que “façamos do nosso jeito”, mas em escala ampliada para toda a Europa.

Por outro lado, um movimento europeu com capacidade e poder de fazer acontecer essa mudança não vai surgir porque os ativistas decidiram que assim deva ser. A tarefa que está diante de nós é nada menos que a produção de um sujeito político europeu. Isso enseja a pergunta: como se produzem sujeitos políticos? Aqui arriscaríamos que a produção de um sujeito político europeu requer que nos orientemos às instituições europeias, porque é contra a ordem de coisas presente que os sujeitos políticos tomam forma. Por meio dos passos concretos de elaborar análises coletivas da UE, de construir campanhas pan-europeias com objetivos claros com vistas a democratizar as instituições européias, ou de intervir nas eleições européias, nós talvez comecemos a construir o tipo de sujeito político  com capacidade para derrubar a hegemonia neoliberal na Europa.

Embora as ideias apresentadas aqui sejam nossas, elas foram desenvolvidas através de diálogos com alguns dos organizadores do Rapto da Europa e, em alguma medida, fizeram parte do pano de fundo das discussões que ocorreram lá. A questão sobre se a Europa é ou não a escala política necessária e, se o for, como seguir adiante, foi crucial nos workshops a também nas intervenções públicas (especialmente as de Sandro Mezzadra e Toni Negri).

Nas postagens seguintes sobre esse assunto, vamos discutir esses tópicos em mais detalhe e descrever alguns dos movimentos que encontramos lá.

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