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A financeirização é a própria crise permanente que se torna forma de governo

Entrevista com Gigi Roggero, na Revista IHU online n.º 492 | por João Vitor Santos | Trad. Moisés Sbardelotto

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IHU On-Line – Como compreende o conceito da financeirização e qual sua incidência nas transformações produtivas e do trabalho?

Gigi Roggero – A financeirização é a resposta capitalista para a crise dos processos de acumulação, determinada em escala mundial pelas lutas operárias e proletárias dos anos 1960 e 1970. Onde as lutas punham em discussão o comando sobre a força de trabalho dentro do ciclo produtivo da fábrica, o capital intensifica o processo de subsunção da sociedade inteira. A financeirização indica a potencial valorização para o capital de qualquer atividade humana.

Não se pode hoje esgotar o seu significado de acordo com a clássica definição do ciclo econômico, para a qual a financeirização chega em uma fase de pico e como prelúdio à crise. A financeirização tende agora, de fato, a impregnar o ciclo inteiro, pondo em discussão uma rígida divisão entre economia real e economia financeira. Tanto é que, mais do que um prelúdio à crise, a financeirização é a própria crise. Ao caráter pervasivo da financeirização corresponde o caráter permanente da crise.

IHU On-Line – De que maneira a perspectiva econômica se transforma em uma perspectiva moral, impactando nas relações políticas e sociais? Como romper com essa lógica, pensando numa sociedade livre das amarras do paradigma do cálculo?

Gigi Roggero – O capitalismo é uma relação social, baseada, portanto, na força entre duas macropartes antagônicas. Como tal, ele não tem nada a ver com a moral. Ao mesmo tempo, o capitalismo não pode ser posto em discussão pela moral, mas apenas pela organização de uma força coletiva antagônica e potencialmente autônoma de capital.

Digo mais: a moral é uma mercadoria que, nas últimas décadas, se tornou uma preciosa fonte de valorização, também nos mercados financeiros. Pense-se em como o termo “humanitário” é útil para vender de tudo, de sapatos à guerra. Ou em quantos capitalistas e fundações patronais competem para serem vistos na linha de frente em obras de solidariedade. E a moral se torna também uma armadilha, funcional aos processos de individualização neoliberal: se existe a hiperexploração das crianças ou a devastação do ambiente, isso não depende de um sistema baseado na exploração, mas de você, que não adquire os itens de vestuário éticos ou não faz a coleta seletiva. A moral é plenamente interna ao mercado, em nada alternativa a ele.

IHU On-Line – Em que medida as inúmeras crises internacionais, de perspectiva econômica, revelam um estado de crise maior, que podemos chamar de crise do sistema ou crise sistêmica?

Gigi Roggero – Christian Marazzi  defende que a financeirização é a tentativa capitalista de se autonomizar do trabalho vivo. Tentativa impossível, tanto que — afirma o próprio Marazzi — a crise representa uma espécie de nêmese para o capital, uma espécie de vingança póstuma da classe operária. Desde sempre, como Marx  nos ensinou, o capital contém em si a crise, desenvolve-se através dela, utilizando-a para iniciar novos ciclos de acumulação.

Hoje, porém, a crise permanente é diretamente uma forma de governo. Não só não é um prelúdio para um colapso objetivo, como diversos marxistas tinham se iludido no século passado, equivocando-se sobre Marx; mas a crise também se torna um instrumento de comando político sistêmico. Pense-se nas expectativas das pessoas: o capital usa a crise para rebaixá-las e, assim, para elevar os níveis de aceitação.

IHU On-Line – Qual o papel das universidades na compreensão de estado de crises, de crise sistêmica? Como avalia a forma como o tema vem sendo tratado em espaços de produção de saber?

Gigi Roggero – Em 2009, a rainha da Inglaterra questionou alguns renomados discentes de economia das global universities porque os economistas não tinham sabido prever a crise global. Estes — para se justificarem — responderam que não só os economistas não tinham sabido prevê-la, mas também que a economia como disciplina é inteiramente cúmplice da própria crise. O ponto é que a universidade, no seu conjunto, está em crise, como espaço de produção de conhecimento, e está em crise a forma tradicional de divisão dos saberes, as disciplinas, assim como a inter e a multidisciplinaridade que representam uma tentativa de desenvolvimento delas.

Cada vez menos as universidades são capazes de explicar o que acontece ou o que pode acontecer. Aqui, abre-se um campo de possibilidades, isto é, a organização autônoma da produção de saberes e da formação. Mas atenção: a autonomia, em sentido forte, só pode nascer da luta e da ruptura com as instituições existentes, caso contrário, é capturada dentro dos processos de inovação capitalista.

IHU On-Line – Como a Europa tem refletido e assimilado esse estado de crises? Em que medida tem rompido com o paradigma econômico para compreender as crises financeiras? O que o episódio do Brexit  revela acerca do momento econômico e político do mundo de hoje atravessado pelas perspectivas da financeirização?

Gigi Roggero – Não existe Europa fora do capitalismo financeiro e da sua crise. Há muito tempo, existe uma ideologia europeísta de que a esquerda está impregnada e que permeia também várias partes das camadas políticas do movimento (aqui, entende-se por movimento as organizações antagônicas independentes da esquerda e das instituições). Entre os intelectuais, além disso, inclusive boa parte dos militantes, a ideologia europeísta se torna uma forma de preservação daquela cultura da qual depende a sua posição acadêmica e social.

Hoje, nestas latitudes, uma luta contra o capitalismo financeiro e o governo da crise só pode ser uma luta contra a Europa real, que é a única existente. Dizer isso não significa um retorno aos Estados-nação, como gostariam os reacionários e como defendem de má-fé os ideólogos do europeísmo abstrato, assim como no passado a luta revolucionária contra o Estado-nação certamente não significava um retorno às instituições feudais.

Brexit

O Brexit indica claramente que, em nível popular, há uma rejeição da Europa como rejeição do governo da crise. O voto pelo leave, de fato, foi principalmente um voto proletário e dos sujeitos mais atingidos pela crise. Essa rejeição, sem dúvida, assume formas ambíguas e contraditórias, isto é, pode tomar direções extremamente diferentes ou, melhor, contrapostas. Mas, especialmente em tempos de crise, quando se reduzem os espaços da mediação e aumentam os processos de polarização, as dinâmicas de luta são cada vez mais permeadas pela ambiguidade.

Quem quer transformar o estado atual das coisas deve ser capaz de ficar dentro dessa ambiguidade, para fazer dela um espaço coletivo de conflito e de ruptura. Essa ambiguidade, hoje, produz desestabilização. Quem se alinha com a Europa está hoje — queira ou não — do lado daqueles que visam à conservação das atuais relações de dominação e poder. Ambíguos são os fenômenos sociais, não existe um lado de fora dessa ambiguidade, senão a ideologia estéril e subalterna; o que não deve ser ambígua é a direção política em que nós vamos.

IHU On-Line – Falando em crise da esquerda no mundo, em que medida podemos afirmar que essa crise também tem origem no atravessamento da lógica da financeirização frente aos princípios mais socialistas? Alguns países, essencialmente na América Latina, parecem estar vivendo uma baixa de governos ditos progressistas e uma retomada de poder por uma direita. Como compreende esse fenômeno?

Gigi Roggero – O ponto é que a dialética direita-esquerda se esgotou. Algum tempo atrás, um medíocre político italiano disse que o confronto não se dá mais entre direita e esquerda, mas entre aqueles que ele definiu como “sistemistas” e “populistas”. Essa afirmação certamente não indica a clarividência das camadas políticas, mas o seu medo, que as leva, às vezes, a uma maior clareza ao identificar aquilo de que elas têm terror.

O termo populismo já não quer significar mais nada, perdeu toda relação com a sua dimensão histórica. Indica simplesmente, aos olhos de quem tem nas mãos as rédeas do poder, todos aqueles que, de algum modo, se opõem ao sistema existente. Em nível político, há aqueles que fazem isso em sentido reacionário e aqueles que fazem isso em sentido revolucionário. Aqueles que fazem isso para substituir os governantes atuais e aqueles que fazem isso para destruir as instituições existentes, enquanto, em nível social, há a profunda ambiguidade aberta em todas as direções de que falávamos antes.

Hoje, dentro da estratificada composição social que sofre os custos da crise, dizer esquerda significa dizer conservação de um existente que dá nojo. Na Itália, o nosso inimigo número um é o Partido Democrático, herdeiro do Partido Comunista Italiano. A parábola de muitos governos latino-americanos também pode ser lida, talvez, deste modo: eles não têm a capacidade e a coragem de serem outra coisa senão governos de esquerda.

Fim e oportunidade

O fim da esquerda, para nós, é uma oportunidade, porque os revolucionários nunca foram de esquerda. A esquerda constitui historicamente uma forma de domesticação e recuperação burguesa da revolução. Aqueles que mais devem se preocupar com esse fim são os “sistemistas”, certamente não nós. Se poderá dizer: porém, a direita reacionária existe e, na crise, pode se alimentar. É claro, mas o contrário da direita reacionária não é a esquerda, mas a revolução.

IHU On-Line – Quais são as oportunidades e os riscos oferecidos a partir desse estado de crise financeira? Que outras lutas sociais emergem e como velhas batalhas se atualizam?

Gigi Roggero – A crise é sempre uma possibilidade. O problema é que o capital está utilizando essa possibilidade como reforço das suas formas de comando, enquanto as lutas custam a construir processos de recomposição. Entre 2011 e 2013, do norte da África ao Brasil, desenvolveu-se um ciclo de movimentos na crise capaz de prefigurar algumas características importantes das lutas por vir (discutimos muito sobre isso, vejam-se, por exemplo, os materiais que produzimos nos sites da UniNômade  e do Commonware ). Eles também representaram a necessidade de construir autonomamente novas expectativas em relação a um sistema que continuamente as fecha ou as valoriza para si mesmo. Restam muitos limites e problemas não resolvidos, o primeiro dos quais é o cerne da ruptura com as instituições existentes e a construção de processos de organização coletiva autônoma.

No entanto, a fase atual também não é desprovida de conflitos, ao contrário, os conflitos são contínuos, só que não assumem as formas que temos em mente. Basta ver o quadro de desestabilização geopolítica ou de desagregação como o Brexit de que falávamos antes, que indicam claramente que a fase atual é uma fase nada pacificada. Ou pensemos na guerra permanente, intimamente ligada à crise permanente. Essa forma de guerra tem características parcialmente novas e se expressa de vários modos, de baixa ou alta intensidade, da guerra social à guerra guerreada, passando pelas múltiplas guerras comerciais e financeiras. O maior problema que temos não são todas as pessoas que morreram na guerra, mas o fato de que hoje não temos formas de contraposição adequadas, ou seja, não conseguimos transformá-la em uma oportunidade revolucionária.

Pacifismo equivocado

Uma coisa é certa: as formas do passado recente, as do movimento no global  e no war, são inúteis. Era um pacifismo (ingênuo como todos os pacifismos) expressado, acima de tudo, por uma classe média ainda não atingida por processos violentos de crise, desclassificação e empobrecimento. Esse pacifismo é inteiramente monopolizado pela Igreja Católica, que tem o poder e os meios para poder fazer dele um recurso útil para a sua política, sobretudo com o Papa Francisco e na competição com outras estruturas religiosas.

Do ponto de vista das lutas, devemos transformar a guerra em contraposição aos governantes e às instituições, que, por um lado, nos empobrecem e, por outro, nos arrastam para as suas guerras de negócios. Particularmente nas fases de crise, a dimensão ideal tem bem pouco espaço: é apenas a partir da materialidade das condições de vida e das suas ambivalências e ambiguidades que podemos construir processos de conflito e de ruptura com o governo da crise e da exploração

 

 

Gigi Roggero é formado em História Contemporânea pela Università degli Studi di Torino e pesquisador pós-doutorado no Departamento de Política, Instituições e História na Universidade de Bolonha, na Itália. É membro do conselho editorial da WorkingUSA, e dos coletivos Edu-fábrica, UniNômade e de Il Manifesto. É coautor de Futuro Anteriore. Dai “Quaderni Rossi” ai movimenti globali: ricchezze e limiti dell’operaismo italiano (Roma: DeriveApprodi, 2002).

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