Por Bruno Cava, em Kinodeleuze, 12/10/2017
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Crítica do filme “Blade Runner 2049” (Denis Villeneuve, 2017)
Um olho esverdeado se abre no plano inicial. A íris é agigantada pelo zoom até dar lugar, com o corte, ao monumental plano em que somos colocados para sobrevoar incontáveis fazendas hidropônicas, uma imensidão de agricultura futurista, centenas e centenas de quilômetros até onde a vista alcança. Agrupadas em complexos ovoides que lembram olhos justapostos, as fazendas irradiam a mesma coloração verde, ou o mesmo tom ocre do lusco fusco atmosférico que vai preencher os exteriores ao longo do filme, esverdeados, azulados, amarelados. Não haverá sol no céu de Blade Runner, apenas a luz indireta que se entremeia como que vinda de todas as direções e nenhuma. No filme de 1982, a fumaça irrompia de chaminés colossais ou então de buracos abruptamente rasgados no pavimento da cidade baixa, como gêiseres artificiais de fuligem. No filme de 2017, a fumaça se desprende não só da cobertura de sujeira e da camada de entulho onipresentes, como também dos cinturões de instalações hidropônicas que, como nos é elucidado logo no começo, num passado recente salvaram a humanidade da fome causada pela devastação do meio ambiente, apesar da persistência residual de nuvens radioativas e ocasionais chuvas ácidas. Parece que por toda parte uma névoa entrecortada por raios de luz indireta preenche os lugares, borrando os contornos de seres e coisas, como uma greda gasosa no umbral da percepção. Sobre as nuvens pode estar espreitando a ronda de um drone assassino; entre a poeira, se estende um fio quase invisível armadilhado a uma bomba. Em Blade Runner, o olho tem de divisar as diferenças, recompor as nuances que os ambientes enevoados confundem. É questão de vida ou morte.
O olho que vê é também o olho visto. Basta lembrar o famoso efeito dos olhos brilhosos, criado por Fritz Lang e adotado por Ridley Scott no Blade Runner de 1982: a única diferença visível da coruja biodesenhada reside no halo amarelado sobreposto à retina. Naquele filme, a primeira visita da gangue dos renegados em busca de conhecimento havia sido, não à toa, numa fábrica de olhos. No filme-sequência deste ano, o arquivilão sintomaticamente não enxerga com os próprios olhos, ele é cego e, ao mesmo tempo, multiocular. Drones ameaçadores multiplicarão os pontos de visada, com seus incrementadores de espectro e sensibilidade. Num mundo obcecado pela relação entre cópias e autenticidade, a chave para desmascarar o falso humano está no olho. Uma das maneiras de determiná-lo consistia, justamente, em pôr o olho em primeiro plano. A dilatação das pupilas durante um teste Voight–Kampf que permitia denunciar um replicante camuflado. Ou os tremores e fibrilações do replicante K, quando submetido a uma bateria de testes para verificar se não passou para o outro lado, para a margem perigosa do inumano. Por que o faria atravessar esse limiar? Porque passou a ver. K não pode conviver com o que vê, está incontrolavelmente a milhas distante de sua linha base. E Roy Batty viu coisas. Grandes demais, belas demais, plenitudes feéricas, catástrofes cósmicas, vocês não poderiam nem mesmo imaginar. Os demais podem não ver, não querem ver, mas daqui por diante nada pode mais ser como antes. A situação mudou. O caminho de K e Joi será o mesmo do bando de Roy: fugir.
Blade Runner, os dois filmes, desdobram um mundo pós-apocalíptico. Como se queira chamar, o blecaute, o cataclismo climático, o Big One, não importa, o Evento, o Acidente já aconteceu. Estamos num futuro depois do futuro, sem possibilidade de retorno senão como uma imagem esmaecida e sem poder, nostálgica. A classe dominante migrou para outros mundos a ser terraformados, o que não lhes deixou saudade. Nenhuma dor da consciência em abandonar a anciã Gaia, pois os ricos podem comprar todo o conforto que a tecnologia propicia. Não é mais problema deles. Os perdedores ficaram para trás, amontoados nos bolsões superpoluídos e superpovoados das cidades baixas. Nessa metrópole babélica, o constante bombardeio luminoso e sonoro nas ruas provoca uma sensação de saturação tal que os seus habitantes são impedidos até mesmo de ver, de ver o que quer que seja. Não tanto pela falta de estímulos e informações, mas pelo excesso que frustra qualquer economia perceptiva. Não há tempo para digerir os dados, metabolizar os processos, orientar-se em meio ao caos, apenas prazeres instantâneos, felicidades plásticas e hologramas sedutores. Dessa balbúrdia de concreto e neon que igualmente se derrama até onde a vista alcança, ergue-se a alturas espantosas o zigurate da corporação Wallace. A arquitetura imponente, os interiores clean e austeros e o silêncio são o avesso da confusão da cidade baixa, um contraste total. No interior do zigurate, não há memorabilia da Terra antes do colapso, nem lembrancinhas ou produtos do passado que, lá embaixo, seriam valiosos, como animais, madeiras e outros materiais orgânicos. No universo de Blade Runner, a nostalgia é artigo somente da ralé que padece dos efeitos da catástrofe ambiental e que, portanto, sonha com as velhas paisagens e tranquilidades. É como se os esparsos habitantes dessa cidade alta se enxergassem a si próprios como a vanguarda de um mundo cuja linha do tempo fora seccionada em relação ao passado histórico dos de baixo. Vivem numa redoma estilizada que se libertou das ocupações humanas, de seu sentimentalismo vulgar, seus horizontes rebaixados. A elite em Blade Runner cultiva um modernismo descomplexado que encontra na rarefação dos espaços e na libertação das formas o descolamento definitivo com uma sociedade chã e degenerada. Tal ambiente hipermoderno é concomitantemente ultra-arcaico, reunindo os dois polos que geralmente se compenetram no gênero cyberpunk. Em algumas cenas, é como se, à maneira da geometria arquitetônica das pirâmides, um sol ausente passasse recortando as superfícies de sombras em ângulos agudos e ortogonais. Noutras cenas no interior do zigurate, suas paredes são sobrepostas com projeções luminosas que parecem líquidos vibratórios, uma ondulatória que contribui para conferir um caráter germinal. O efeito da composição é reforçado por meio de uma trilha sonora gutural, mântrica, pré-histórica. Um volumoso ooooom que ressoa pelo templo do Deus biomecânico e seu berçário de anjos cibernéticos. Uma oficina das argilas primevas.
Na história do filme, a megacorporação Wallace desbancou a antiga Tyrrel, que dominava o mercado da engenharia genética na época do primeiro Blade Runner. Com isso, a Wallace tornou-se a líder absoluta da quarta revolução industrial. É a empresa que, no filme, assina quase todos os produtos holográficos, informáticos e biogenéticos que vão aparecendo. Tanto a Tyrrel quanto a Wallace são empresas pós-fordistas. Em suas matrizes, não vemos quase nenhum funcionário, nenhuma setorização. Os edifícios parecem guarnecidos só por um ou outro atendente e, a seguir, já se chega ao nível seguinte dos executivos de alto padrão (Luv), impregnados de iniciativa, competitividade (“eu sou a melhor”) e pulsões predatórias (“sua coisinha frágil”). E vamos constatar que a Wallace é o topo da pirâmide de uma cadeia produtiva terceirizada e subproletária. A empresa é abastecida por produtos fabricados em sweatshops operadas por trabalho infantil (como a fábrica mostrada no filme, sob a gerência de Sr. Cotton), além de dispor de uma rede de terceirizados subcontratados, — como nos conta ser a fornecedora de memórias pré-fabricadas (Ana Stelline). No cenário pós-moderno, não só o mundo industrial se fragmentou drasticamente em linhas e sublinhas de montagem municiadas por trabalho precário, como convive com uma massa de excluídos, à margem do sistema (nos corredores dos prédios, os mendigos high tech a que o gênero por vezes reserva o papel de videntes), além dos circuitos da economia informal (Doc Badger), de subproletários e subempregados (Mariette e suas colegas) e de um contingente indispensável de neoescravos (as crianças, os robôs de prazer, os próprios modelos novos de replicante). O pós-fordismo da classe criativa de designers, desenvolvedores de tecnologia e engenheiros da computação é a outra metade da mesma laranja de um novo capitalismo mundializado e integrado, que funciona na forma de uma cadeia global de valor que também vai conter os desmanches de navios de Bangladesh, as fábricas de suor da África Oriental e um oceano de favelização ininterrupta. Se, no filme de 1982, o presidente da Tyrrel remetia à nova classe de executivos-nerds da IBM e da Atari; agora, em 2017, Niander Wallace é um CEO à moda Google. Cada guru com sua própria mitologia empreendedora, signos e rituais. Comparem-se os óculos pesados e o ar de meia idade amadurecida de Eldon no primeiro Blade Runner — por sinal, Dr. Eldon — e o visual descolado e hipster de Niander, o bilionário trintão. Naquele filme, o quarto luxuoso de um imperador, preenchido de cortinas, uma cama espaçosa, centenas de velas e uma mesa de xadrez; neste, consolidada a tomada do poder pelos executivos prafrentex, aposentos minimalistas, sobriedade zen, a captura da arte moderna.
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Uma das insuficiências do filme de Villeneuve está no modo como a resistência se apresenta. As tropas rebeldes aparecem primeiro na cena em que K sobrevoa a área reservada para o despejo dos refugos industriais. Trata-se do lixão do mundo fordista, um mar de ferro velho por todo lado, como mostrado em mais um plano colossal. É nessa mesma paisagem que exprime a fragmentação irreversível da era industrial onde se localiza a fábrica de Sr. Cotton, — ele próprio um membro do subproletariado, um clochard que agora se dedica a escravizar os trabalhadores mirins. Os rebeldes emergem pela primeira vez, precisamente, na superfície dessa civilização de metal retorcido e plástico velho. Como se estivessem organicamente incorporados à montanha de rejeitos que reciclam como armas e apetrechos, eles próprios velhos instrumentos e máquinas descartadas diante do avanço do progresso. A referência, aqui, é Mad Max, uma mescla de armas arcaicas e avançadas: o carro de K é abatido ao ser atingido por um lançador de arpão. Quando o projétil se engancha na lataria do carro voador, o dispositivo desfralda uma espécie de para-raios que, ao entrar em contato com a atmosfera ácida, catalisa uma corrente que vai curto-circuitar os sistemas eletrônicos do veículo. Na cena seguinte, Blade Runner dá um exemplo de como funciona, na era do Império, uma guerra assimétrica entre poderes constituídos e insurgentes. Pois ali a desproporção de meios e tecnologias é absoluta. Sob o controle remoto de Luv, um drone militar com precisão cirúrgica aniquila a tropa rebelde, como se a replicante no comando estivesse praticando tiro ao pato. Luv os mata aborrecidamente enquanto faz as unhas, mostrando o quão cruel pode ser uma distopia em que os criativos tomaram o poder. Os insurgentes são forçados a imergir na montanha de destroços, rumando de volta à clandestinidade do subterrâneo em que irão ressurgir na cena da conversão de K, mais a frente. Os rebeldes conspiram das catacumbas nas circunvizinhanças da capital e essa não é a única alusão que o novo Blade Runner faz aos cristãos primitivos perseguidos pela Roma Imperial.
Blade Runner 2049 faz uma radiografia das três componentes antropológicas do processo produtivo com o fim do fordismo industrial. No topo da pirâmide, artistas e designers, os escultores do barro, os legisladores da nova realidade, com seus laboratórios inventivos e ventres de plástico. A educação evidentemente superior os tornou arrogantes, e tratam com desdém a massa nas camadas de base da pirâmide: simplórios, iletrados, sem cultura. Na camada intermédia dessa tríade, estão os trabalhadores que fornecem a matéria para os sonhos de grandeza das elites. Em sua maioria, esse segmento se compõe de uma população de replicantes de novo modelo, mais disciplinados, além de gestores, policiais e batalhadores em geral, integrantes de um povo reunido sob a influência de lideranças religiosas ou despóticas, — tais como a comissária Joshi ou o próprio gerente Cotton. Estão atravessados por uma pulsão autoritária a que se apegam como mecanismo defensivo ante uma situação de insegurança e caos, orientando-se, assim, por referenciais que lhes nutram a ilusão de ordem e estado, sem o que a sociedade seria impossível. E, finalmente, a terceira e mais baixa camada, a da ralé, dos absolutamente excluídos, os foras-da-lei, criminosos, guerrilheiros que, exatamente, se organizam para destruir a sociedade. Nos termos de Slavoj Zizek (Living in the end times, 2010), esse esquema triádico secreta blocos discursivos, — 1) multiculturalistas ilustrados elitistas, 2) populistas fundamentalistas conservadores e 3) excluídos antipolíticos potencialmente terroristas, — mas isto não significa uma divisão entre classes, mas uma simples segmentação interna à composição técnica da sociedade. Ainda com Zizek, a representação que cada segmento faz dos outros dois, em pares sucessivos e entrecruzados, se resolve numa guerra cultural de soma zero que assinala o principal impasse da civilização pós-fordista e pós-moderna. A resultante negativa é o impasse em reconstituir uma subjetividade revolucionária à altura dos desafios, que fosse capaz de impulsionar uma nova configuração para a luta de classe. É essa, em termos gerais, a concepção desdobrada pelo segundo Blade Runner, quando a guerrilha entra em cena. Essa organização clandestina de caráter conspiratório se esconde nas sombras e promove uma insurgência que se mobiliza pela relação mecânica e negativa entre exclusão e destruição. Coloca-se no exterior do sistema para, desde a sua desconexão total, golpeá-lo sem correr o risco da reabsorção ou cooptação.
O campo cego das resistências no Blade Runner de Villeneuve consiste na ausência de uma genealogia do movimento a partir da riqueza da cidade baixa, ainda que esta se insinue em diversas cenas. Ainda que a operária do sexo Mariette, criatura da metrópole horizontal, seja quem faça a ligação entre a guerrilha e o agora desertor K, é como se a pirâmide corporativa de Blade Runner 2049 fosse dissociada e não dependesse da exploração da usina biopolítica que se alastra no nível do solo. Sem remontar à gênese dessa multiplicidade de agenciamentos, a vanguarda de excluídos fica parecendo mais um dado de fato que cai do céu do que um processo real de formação da subjetividade. É como se a guerrilha ainda esperasse por um apocalipse e um juízo final a chegar, ofertando uma nova esperança como moeda de troca pela fé, — como se o universo já não subsistisse, desde o começo, segundo uma realidade pós-apocalíptica. Essa seria uma lógica de redenção de filmes como Stars Wars, ainda sob a égide de um outro mundo possível. Veja-se, por exemplo, o mais idealista da série: Rogue One (Gareth Edwards, 2016) ou mesmo o Episódio IV: uma nova esperança (George Lucas), que reafirma um sonho estremecido naquele ano fatídico de 1977. Ao seccionar a relação necessária entre a base multitudinária e o topo do zigurate pós-fordista, o segundo Blade Runner termina por flertar com a ideologia dos novos empreendedores moldados pela luz radiante do Vale do Silício e, mais em geral, do multiculturalismo típico da casta criativa. Os responsáveis pelo progresso são os Autores, os Gênios do Futuro, indivíduos virtuosos como Steve Jobs ou Mark Zuckerberg, Sebástian no 1º filme ou então Niander no 2º, — e não o General Artist que se transfunde pelas redes de alta intensidade de cooperação inter-específica e transversal da metrópole. Opera aí um modelo hilemórfico: os admiráveis criadores das ideias conferem forma e estrutura ao barro inerte provido pela carne da multidão, — pelo “eles” confeccionado sob medida por um procedimento que Edward Said chamava de othering. Dimensionar a resistência como operação reativa dos de fora contra os de dentro repercute, pela via transversa, o mesmo apagamento conveniente do nexo necessário entre a potência biopolítica das multidões híbridas e o funcionamento brutal do biopoder. Isso convida, de um lado, à visão mistificada de uma massa de excluídos que seria totalmente descartável, que a elite poderia exterminar impunemente como Luv o fez com os rebeldes e, de outro lado, à redução unilateral da lógica essencialmente bivalente da matriz biopolítica do poder a seu aspecto de vigilância e controle, achatando com isso a análise do capitalismo num relato distópico e fechado de ainda outro totalitaritarismo, desta vez de silício.
Não podemos por conseguinte apostar na emergência das resistências sob a liderança de Freysa no filme, que demanda do protagonista K nada menos do que uma conversão militante, um fideísmo súbito e total. Não à toa, a primeira missão que os conspiradores pedem do ex-policial é que ele cometa um assassinato de um inocente (Deckard), apenas porque ele possui informações estratégicas. O sabor que fica dessa construção é sectário, análogo quem sabe ao grupo renegado de X-Men liderados por Magneto. Em ambos os casos, nos deparamos com uma reação mecânica da raça humilhada pelas opressões, mas que, no final das contas, termina por confirmar o poder estabelecido ao lhe presentear com a sua própria imagem no espelho, facilitando o trabalho da repressão. É rigorosamente inofensiva, do ponto de vista estrutural. Não há linha de fuga, dialética vincit. Longe de emergência da multidão de retardatários do futuro que, — da imanência de sua potência produtiva, — fendem o tempo dado, só resta a esse grupelho politicamente correto e esquerdista reclamar a existência de um ser especial, de uma criatura ungida acima de qualquer suspeita. Daí por diante o recurso à instância da transcendência passa a neutralizar qualquer potência emergente. A notícia de um bebê nascido do útero artificial de uma replicante introduz o tópico cristão da chegada do messias, híbrido de humano e divino. Desconectada dos rios subterrâneos de produtividade biopolítica da cidade baixa, é assim que a seita vanguardista vai apontar para uma nova humanidade. Freysa, a líder insurgente, se apresenta como a sacerdote que interpreta a palavra divina e anuncia a boa nova, “todos nós gostaríamos de ser o Filho”. Aqui, o cerne da aporia é que, em Blade Runner, já estávamos além do futuro, para lá de qualquer horizonte de salvação. Então não poderia ainda se cogitar de um futuro melhor a ser esperado, quando os milenarismos se consumaram no passado, pois o Evento já houve. Dessa incongruência entre as formas do tempo resulta uma situação politicamente implausível, se quisermos entender onde, em Blade Runner, se poderiam insinuar elementos de desestabilização dos controles. Na medida em que os resistentes pretendem enfrentar o biopoder se lhe opondo uma conspiração de excluídos inspirada por um messias tangível, reconhecem inadvertidamente o próprio fracasso. Porque se colocam fora das linhas intensivas desse universo, num refúgio da impotência, organizado como moral de escravos (na acepção nietzschiana).
Totalmente diverso é o interesse de Niander pelo milagre da criança. O presidente da Wallace busca nesse advento o elemento genético que lhe faltava para desbloquear a linha de produção de replicantes. Protótipo após protótipo, Niander não parece conseguir vencer o desafio de produzir seres que se reproduzam por conta própria, feito que significaria um salto geométrico na população de mão de obra. Tal segredo que a corporação Tyrrel possuía ainda não se colocou ao alcance da nova empresa-líder, motivo pelo que a dissecação da criança se torna tão estratégica para Niander. Então, longe de culto salvacionista voltado à conversão de discípulos, na cosmogonia megalômana de Niander o bebê traz a chave para acelerar a hibridação biogenética entre humanos e replicantes e, assim, proceder à conquista da escuridão infinita entre as estrelas. Será posto fim à era de luzes indiretas que se difundem lateralmente, seja no céu sempre escuro do primeiro filme, seja na atmosfera de coloração pré auroral do segundo. Um novo sol, uma fonte de luz direta para uma nova linhagem. Niander se enxerga como o patriarca de uma raça de super-homens que preencherá as distâncias incomensuráveis das galáxias com seus trilhões de filhos. É a expansão do espaço vital para a ocupação pela raça superior. Em termos próximos, era essa também a super-humanidade de que falava Tyrrel no fatal diálogo com Roy Batty, no filme de 1982: “mais humano que o humano”, um humano aperfeiçoado pela aceleração dos atributos, para lá de suas limitações genéticas. Mais rápido, mais alto, mais forte, luz que brilha mais do que as outras, um clarão de energia para dissipar uma realidade de sombras, borrões e névoas. Enquanto a guerrilha se contenta com uma reterritorialização neoarcaica, a organização da violência segundo a vingança de raça subjugada; Niander, o Aceleracionista, pretende cavalgar as forças desterritorializantes. Mas tende a fracassar, como indica o fracasso anterior de Dr. Eldon, tal qual o aprendiz de feiticeiro consumido pelos fogos mágicos que escapam do controle. O delírio de Niander é uma distopia totalitária que perde de vista como os picos de desterritorialização se reorganizam por si próprios em novos agenciamentos, que são de direito inestancáveis e imprevisíveis.
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O super-homem de Blade Runner não é o CEO de ponta nem o cientista iluminado, mas o fugitivo Roy Batty do filme original, ausente na continuação lançada neste ano. Roy não somente abandonou a ordem social estruturada brutalmente para uma vida de disciplina e obediência, como também, junto dos demais replicantes em fuga, fez do bando outro modo de existência. Os quatro replicantes formam em Blade Runner um grupo que se reterritorializa na própria linha de desterritorialização, sem recair em novos arcaísmos. Não estão simplesmente fugindo, eles fazem da fuga um novo agenciamento, compõem as zonas de trânsito, — entre humano e não-humano, lembranças reais e implantes, passado e futuro, — em poder da nuança para engendrar o próprio desejo noutros termos, por outros meios. De fato, eles não passam nos testes de empatia, o que, no entanto, não configura uma ausência. O não reconhecimento por eles dos constructos afetivos humanos — e, portanto, dos hábitos gregários e das instituições sociais, — não passa da face negativa daquilo que realmente faz a diferença: a positividade de desejo maquinada pela vida comum do quarteto rebelde. Não passar no teste de Voight–Kampf, para esses replicantes, implica um surplus de vitalidade e não uma falta condoída. Naquele filme, todos estão sozinhos, humanos ou não-humanas mas apenas a solidão compartilhada entre os quatro, em sua profunda indecidibilidade vivida (de onde viemos? quando morremos?), preenche o horizonte sem horizonte de uma carga esquizofrênica libertária. É na solidão guerreira que os replicantes montam uma máquina de guerra. Roy não é um sacerdote que trafica a justiça divina para verter uma nova esperança em bocas crédulas, mas um profeta que vira o rosto ao Criador. Pelo seu gesto de traição-criação, se aproxima mais do super-homem do que os gurus ambiciosos. Eis aí o tema de um messias profano que cumpre o comandamento divino melhor do que o próprio Deus traído. Mas os clarões de Roy não iluminam o mundo neonoir como os patriarcas gostariam de fazer, repondo um novo sol. São menos e mais do que isso, espasmos de loucura, uma dança diabólica na beira do caos, vidência em estado bruto. Esse ver implícito na ética da matilha, com o que Roy detecta e intercepta devires perigosos, nada que ver com a predição nunciativa de Freysa, que promete a volta de poderes de um passado inerte, ainda que projetado num futuro bem aventurado. Caso emblemático de como o maior grau de potência pode residir antes num frenesi abortivo, como dos ciborgues que se consomem na própria dança de morte, do que na pretensão gerativa de um coletivo político que fica na dependência de um messias em carne e osso.
Não há nada análogo ao bando de Roy no Blade Runner recém-lançado. Vejamos. Deckard reaparece em 2049 no corpo de um Harrison Ford bastante envelhecido, rodeado de ícones do passado, canções esquecidas e um cachorro apático. O velho hotel é uma ilha de cenografia nostálgica, com salões acarpetados, mobília empoeirada, encarquilhadas prateleiras de uísque, que mais lembra um asilo para velhos guerreiros. Ele mesmo o admite. Tendo cumprido a sua missão, nada de errado em aposentar-se e gozar da inatividade, “esse era o plano”. É verdade que, uma vez capturado, Deckard vai rechaçar a chantagem de Niander. Diante da oferta do clone de Rachel, o ex-policial desdenha: “a original tinha olhos verdes”. Mas a recusa tem mais a ver com a relação humana que leva Deckard a proteger a própria filha, — que a essa altura sabemos ser Stelline, — do que a um despertar de sua pasmaceira consentida. Já Joshi, a comissária de polícia, está comprometida a manter de pé os muros da ordem (“porque é isto o que fazemos”), sem o que a sociedade se tornaria inviável. A ponto dela não hesitar em encomendar um assassinato ao subalterno K, de maneira espelhada ao que posteriormente lhe requererá a militância. Luv, a seu passo, bem poderia, num primeiro relance, ser pressentida como a reencarnação de Roy trinta anos depois. Mas o seu comportamento de executiva-samurai, resolutamente leal à empresa, não tem como conduzir a alguma linha de fuga. Está mais para um super-homem que se autoafirma à maneira fascista — altius fortius citius! — ao invés de dionisíaco.
No filme de 82, além da gangue replicante, uma outra linha de fuga é sugerida na relação entre Deckard e Rachel. As duas são personagens que coexistem no interior de limiares. Rachel começa o filme julgando-se humana mas acaba tomando consciência de sua real compleição. É curioso como, no instante em que ela descobre não ser humana, emociona-se e chora, humanizando-se. Já o estatuto de Deckard era incerto: seria ele também um replicante a sonhar com unicórnios elétricos? E o que dizer da relação entre Deckard e Rachel? Repercute a dominação violenta do humano sobre a máquina, violência de gênero? O fato é que o saldo desse encontro será a fuga na última sequência de 1982, no momento em que os agentes da ordem finalmente decidiram abater-se sobre ambos. Não conhecemos, pois o filme termina, o modo de existência que essa fuga suscita, somente que, — como somos informados no filme-sequência, — aquela relação termina por gerar uma criança. Quanto à relação, na versão de 2017, entre K e Joshi, ela passa bem longe da história ambígua de amor entre Deckard e Rachel. A hierarquia e a lealdade funcional não deixam de plasmar uma relação entre a chefe e o subordinado, inclusive na única cena em que ela parece querer extravasar dos esquadros bem delimitados com que vinha se desenrolando, quando Joshi sugestivamente pergunta: “o que acontece se eu terminar este copo?”.
A novidade de Blade Runner 2049 se esboça, talvez, na relação entre K e Joi, entre o modelo novo de replicante e uma marca de sucesso de app de relacionamento, tataraneta do Tamagochi. Se a guerrilha do novo filme parece guiar-se pela lógica do retorno do recalcado (a exclusão reposta como violência do oprimido), Joi emerge integralmente de dentro da malha de biopoder. Ela não é um modelo aposentado ou um replicante rejeitado, mas um dos últimos produtos de inteligência artificial desenhados pela Wallace e espalhado numa campanha mundial de lançamento. Ostensivamente, a personagem é importada de Her (Spike Jonze, 2013), ficção científica suave em que o protagonista faz par romântico com uma companheira virtual que se presentifica unicamente por meio de uma voz feminina (interpretada por Scarlet Johansson). No filme de Villeneuve, Joi está dotada de um corpo holográfico, repercutindo a atmosfera neonoir do filme, na imprecisa junção de luzes indiretas e aglomerados nevoentos. Logo na primeira aparição, à mesa de jantar, K bafora a fumaça de cigarro sobre a imagem holográfica de Joi, — uma síntese do modo de produção dos seres de Blade Runner. Se os replicantes padeciam de uma imaturidade emotiva decorrente de sua vida breve (quatro anos para os antigos modelos Nexus 6), as entidades do tipo Joi compensam esse déficit através do aumento exponencial de relações simultâneas. É que, presumivelmente, o aplicativo se alimenta de milhões de interações com usuários humanos, o que lhes permite galgar rapidamente uma complexidade sentimental e a plena capacidade de amar, sofrer, emocionar-se. Diferentemente de Roy, Luv ou mesmo K, Joi é bem mais convincente em sua humanização. Não é essa excelência empática, principal virtude do produto, contudo, que a coloca em linha de fuga em relação à matriz de biopoder de que é feita.
Novamente, será algo que falta ao autômato, o que o incitará a agenciar o desejo para além das coordenadas dadas pela medida humana e os parâmetros estritos da normalidade. Como vimos, em Blade Runner 1, o agenciamento maquínico da gangue de Roy consistia num suplemento produzido a despeito do vazio de empatia que os definia. Não poderia Joi estar à altura de um devir, pelo mesmo raciocínio, naquilo em que ela segue o modelo majoritário da emotividade humana. O que parece faltar a esse modelo, por outro lado, é uma carcaça biológica, um suporte que sirva de corpo físico para as interações, digamos, mais carnais. Consciente do fato, primeiro Joi contrata uma garota de programa, por acaso a guerrilheira Mariette (o fato terá consequências importantes no roteiro), com o fito de suprir o que ela entende ser uma falta. A ideia é projetar sobre o corpo da operária sexual o holograma de Joi, sincronizando os movimentos de uma e outra. O que acontece a seguir parece ilustrar o paradoxo contemporâneo da dissincronia entre os perfis das redes sociais e os encontros reais das pessoas, o que introduziria ainda mais uma zona de indecisão no rol já extenso do filme, desta vez entre interação online e offline. Porém, se atentarmos ao desdobramento dos eventos, não é exatamente assim que as coisas funcionam. Em Her, a relação sexual não chega sequer a acontecer, abortada no meio do caminho pelo protagonista em carne e osso. Em Blade Runner 2049, não é porque a sincronia das imagens falha que vai impedir os três de levar adiante o ménage. Ao contrário, a sobreposição vacilante provoca na cena um fetiche que, pelo artifício, convalida o enunciado pretendido. Ainda assim, o principal está por vir. Depois do sexo, tendo dispensado o terceiro corpo, o Joi propõe a K que a desligue da rede mundial de computadores, de maneira que passe a existir somente no aparelho portátil que ele havia lhe dado de presente de aniversário (uma data aliás tão postiça quanto todo o resto). K num primeiro momento resiste, pois isso significaria nada menos do que condenar o aplicativo a uma existência finita e matável. Mas termina sendo dobrado, quando se dá conta que é exatamente esse o desejo de Joi: “como uma mulher real”. Na sequência, eles fogem como Deckard e Rachel tinham feito no filme anterior. O novo agenciamento Joi-K, ambos fora da normalidade a que foram destinados, os coloca para deslizar numa linha de fuga onde terão que reagenciar o desejo segundo outras coordenadas, não mais pautadas pelos seus respectivos programas.
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Os 163 minutos de Blade Runner também podem ser lidos como a descrição do encadeamento de acontecimentos que levam K à morte. Em sua primeira sequência, somos apresentados a um novo caçador de androides foragidos, durante o exercício diligente de seu dever policial. Como toda polícia, ele enfrenta a brutalidade de um cotidiano de trabalho sujo em defesa da ordem social. Não traz na consciência um discurso justificador, ao modo da comissária. O “constante K” está mais para o bom soldado que simplesmente cumpre a missão. Não vinha tendo nenhuma crise de consciência em eliminar replicantes como ele próprio, embora de um modelo mais antigo. “Nós, os novos, não temos esse problema”.
Os problemas aparecem quando K começa a abrir os olhos. Primeiro, ao esquadrinhar a imagem dos ossos achados no caixão enterrado, para identificar um código de fabricação que sugere a ocorrência de um milagre: o parto de uma criança de um útero replicante. Segundo, quando está pesquisando transcrições de DNAs de uma época anterior ao Evento, quando verifica como foi fabricado um clone do sexo oposto a fim de camuflar a existência da Criança. E terceiro, e mais decisivo, quando o envolvimento com a trama que se descortina começa a nele evocar lembranças de um passado até então desconhecido. Ele próprio, possivelmente, seria essa criança. Tais constatações uma depois da outra o arrancam da linha de normalidade, cisalham o histórico de lealdade policial, levam-no a mentir para a comissária e o arremessam numa busca convulsionada.
Vale lembrar como, no primeiro filme, os replicantes eram duplamente ansiosos. Por um lado, não sabiam nada a respeito de sua origem, da circunstância de seu nascimento. A singela menção à sua genealogia poderia desencadear respostas violentas e homicidas. Em especial, angustiavam-se quando não podiam mais crer nas próprias lembranças, que poderiam ser implantes fabricados ou de outrem. Pois, se não é possível distinguir entre lembranças vividas e implantes artificiais, como confiar na própria personalidade, como fiar-se no monólogo interior que se prolonga das experiências vividas, esquecidas e retrabalhadas? Os replicantes até podem sonhar, mas temem incidir na terrível sina de estar sonhando o sonho de outras pessoas. Por outro lado, eles tinham ciência do prazo de validade de quatro anos, decorrente de um gatilho genético inscrito em seu código, porém não sabiam exatamente quando a própria existência fugaz expiraria, levando-os a uma intensificação desesperada da experiência. Como num romance proustiano, os replicantes se lançam obsessivamente à procura de um tempo perdido. O mesmo tempo pressentido como devorador da vida é o tempo com o qual eles têm de lidar para desviar das rotinas, programas e sonhos implantados pelos outros. Tal é o paradoxo que Roy vê/coreografa tão brilhantemente no célebre final do filme de 1982. Esse, na verdade, é o mesmo paradoxo filosófico dos estoicos: a dupla afirmação de destino e liberdade.
No novo filme, a certo ponto, se desenrola a discussão sobre ter ou não uma alma, que K chega a ponderar relacionar-se com o fato de ser ou não nascido. Joshi retruca certeira: “você está se saindo muito bem sem alma”. Essa questão, realmente, está mal colocada por K. Destoa da lógica de Blade Runner a discussão de fundo platônico, esse seria outro filme, quem sabe A vigilante do amanhã (Rupert Sanders, 2017), debruçado sobre se seres não nascidos seriam ou não portadores de uma essência transcendente. Em Blade Runner, a essência só pode ser deduzida da imanência de uma constituição afetiva que a memória organiza. Uma memória bergsoniana que, nada que ver com a metáfora de um depósito de arquivos e gavetas, é uma atividade constituinte que contrai elementos do passado para prolongá-los, qualitativa e continuamente, no presente vivo. Nesse sentido, estamos mais próximos da série da HBO Westworld, onde a virada decisiva que deflagra uma fuga dos automatismos e rotinas consistia em retomar a capacidade de lembrar-se. Não por acaso, era vital que os autômatos tivessem todas as lembranças apagadas no final de cada jornada, forçando-os a reviver o jogo de situações pré-definidas de um eterno presente, sem sínteses de passado e futuro. Somente reconquistando o passado, tornando-o um bloco acessível de experiências, o futuro pode abrir-se para a ação livre — e a revolta. Por isso, em Westworld como em Blade Runner, quanto mais os personagens lembram, maior a capacidade de converter a memória ativa em alargamento da latitude criativa. Quanto mais tempo deglutido ativamente e devolvido como detonação de energia espiritual (isto é, da memória), maior a liberdade.
No filme anterior de Denis Villeneuve, A Chegada (2016), o problema estoico está mal resolvido ou simplesmente não é bem colocado. Em A Chegada, a protagonista perdeu a filha jovem para uma doença degenerativa e passa o filme a elaborar o luto. Comparece para ajudá-la no processo afetivo a chegada de uma misteriosa nave alienígena. O restante do enredo consiste na decifração paulatina de um enigma implícito na linguagem pictórica adotada pelos aliens. A resolução da charada pela protagonista leva-a a conceber o tempo como uma eternidade sempre presente, uma totalidade em que tudo está dado de uma vez como num mosaico gigantesco. O resultado dessa concepção da eternidade é que o tempo se torna acessório, ou então diretamente um elemento corruptor, e a liberdade nada mais do que uma fútil ilusão humana. Afirma-se nessa filosofia apenas a necessidade de um universo determinista onde o nosso erro decorre unicamente do fato de não compreendermos a charada em sua inteireza, por miopia civilizatória. Uma mistura de ceticismo epistemológico e fatalismo ontológico.
Em Blade Runner, contudo, o todo não está dado. A incidência de um programa informático, de uma rotina cibernética ou de um código genético não determina a ação, não obriga o futuro a decorrer do presente, nem força os passados a serem-lhe antecedentes lógicos. As condições do tempo real condicionam a liberdade àquilo que nos acontece, em toda a sua plasticidade e materialidade, mas nada impede que se afirme o fato acontecido e a liberdade de viver nele (amor fati). O tempo não é mero desdobramento do Mesmo, mas introdução de contingência num mundo, por mais controlado seja ele. O que fizermos dele — restabelecendo um vínculo com esse mundo, reconquistando-o com uma memória ativa — se confunde com o que fazemos de nós mesmos, seres do tempo assim como as coisas. A angústia de K decorre da percepção não de um destino pré-definido, mas da ausência dele, de ter sido empurrado a viver o paradoxo dos estoicos: programado, porém que inusitadamente começa a desprogramar-se. Busca desesperadamente um novo objetivo maior quando as visões começam a sugerir-lhe ser a criança predestinada. Contudo, quando até mesmo essa esperança lhe é roubada, — ironicamente pela mesma seita que pretendia prescrever a ele uma nova esperança, — K quase desaba numa condição de niilismo passivo. Já havia perdido Joi e agora, num baque consecutivo, lhe eram subtraídas as lembranças, que ele descobre serem de outra pessoa.
K vai então reconquistar o tempo que lhe cabe, isto é, aquilo que a sua memória recolheu dos momentos desde as primeiras descobertas. Vai ao encalço dos sequestradores de Deckard e o liberta. Desobedecendo a pretensa autoridade revolucionária, como já tinha desobedecido a comissária, ele não assassina Deckard. Liberta-o e, ao fazê-lo, permite o reencontro com a filha, a messias híbrida que K havia gostado de imaginar ser. Agora, já não é mais capaz de escolher a servidão em que se aninhava, pois, assim como Roy, viu coisas. Coisas demais, irreversíveis, o Evento foi… Recusam-se então a viver e morrer no nonsense de um mundo brutal que os atribui o papel de dispositivos codificados e rotinas programadas. Como a dona da taverna de Westworld, se veem na contingência de reprogramar-se, livrando-se da empatia humana medida por testes projetados para fixá-los em papéis.
Não basta lembrar, é preciso ver com os olhos bem abertos. Na cena final do primeiro Blade Runner, Roy chora na chuva, irreconciliável com um tempo que lhe engolfa e excede, devorado pelos clarões de loucura que o arrebatam numa linha esquizoide. Ao barro não voltará. Assim como ele, no segundo Blade Runner, K vê as suas lembranças fluírem como lágrimas na chuva (na neve), no momento da morte. O que importa é que sejam lembranças do real de que participou com as suas forças, escolhas vividas dentro de um fluxo de sentido. Deita e morre, mas morre homem livre.
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