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Economias do afeto: para uma crítica spinozista da economia política

Por Jason Read, no Unemployed Negativity, 8/11/2013 | Trad. UniNômade Brasil

Continuação da lição do professor norte-americano Jason Read publicada na semana passada (O trabalho das contradições…), sobre as economias afetivas na base do trabalho na passagem da acumulação primitiva ao fordismo e deste à condição contemporânea do pós-fordismo (ou neoliberalismo). O autor trabalha conceitos de Marx e Spinoza para tomar a economia em termos de subjetividade, isto é, pensada como ciência dos comportamentos, hábitos e distribuições de medo, esperança e desejo.

Marx and Spinoza

Economias do afeto/ economias afetivas: para uma crítica spinozista da economia política

Antonio Negri argumenta que “na época pós-industrial a crítica spinozana da representação do poder capitalista é mais verdadeira do que a análise da economia política”. Muito do retorno contemporâneo à Spinoza no pensamento marxista seguiu essa trajetória, desviando-se da crítica da economia política, para tomar direção na crítica da ideologia ou, no caso de Negri, da representação do poder. Isso talvez não surpreenda, pois é mais fácil ligar a crítica da superstição por Spinoza e teorias da ideologias do que ligá-la ao entendimento de desejos e pulsões pelo consumo e produção. Se Spinoza oferece uma crítica decisiva das ideologias religiosas, monárquicas e mesmo humanistas de seu tempo, ele tem pouco a dizer, pelo menos de maneira direta, sobre o capitalismo emergente em seu tempo. O dinheiro só é mencionado uma única vez na Ética, onde é definido como o objetivo universal do desejo, que “ocupa a mente da multidão mais do que qualquer outra coisa” (E, IV, A, P28). Embora a declaração comungue das críticas da ganância e da transformação capitalista do desejo, ela permanece parcial e incidental no tocante ao desenvolvimento de uma crítica spinozista da economia política.

Frédéric Lordon argumentou que o ponto de interseção entre o pensamento de Spinoza e Marx não deve ser buscado na releitura da superstição como ideologia, ou na afirmação isolada da dimensão afetiva do dinheiro. Em vez disso, a interseção deve ser buscada mais profundamente no campo entre a subjetividade e a economia. Como Lordon argumenta, a teoria de Spinoza do conatus, do esforço interno que define cada coisa, é o ponto de ligação entre uma ontologia ou antropologia spinozista e a crítica marxista da economia política. Esta não é a ligação apresentada por algumas leituras à direita de Spinoza, ou por outras à esquerda que o dispensam, e que veem no conatus somente a afirmação do interesse próprio, que estaria na base de todas as ações humanas. O desejo de Spinoza não consiste na utilidade maximizadora do indivíduo, que serve de premissa para a economia contemporânea. Como Lordon explica, o conatus se esforça para objetos e relações que considera desejáveis não por si mesmos, mas por objetos e relações determinados pela capacidade de ser afetado. O postulado fundamental ontológico e antropológico baseia uma teoria social em que cada modo de produção deve ser entedido como um problema particular de “colinearização”, uma articulação particular do próprio esforço com o esforço dos indivíduos que o implicam.

Uma introdução ao que Lordon chama de “colinearização” pode ser achada na teoria de Marx sobre a acumulação primitiva. Uma teoria que é tanto sobre a transformação da subjetividade em termos de hábitos e ideias, como é sobre a transformação econômica. [1] Marx definiu a primeira em relação ao capitalismo como segue: “O avanço da produção capitalista desenvolve uma classe trabalhadora que, por educação, tradição e hábito, vê os requisitos do capitalismo como leis naturais autoevidentes.” [2] Esta formação de hábitos, a reorientação do desejo é, pelo menos no começo, construída sobre uma reorganização do desejo básico por sobrevivência, do desejo de perseverar-se no ser. Mesmo esse desejo básico, um esforço que não vai além da autopreservação, deve ser entendido e estruturado. O conceito de Spinoza do conatus está despido de qualquer naturalismo, qualquer redução do desejo à luta pela sobrevivência. Isto se dá precisamente porque falta ao conatus uma teleologia, não existe determinismo no desejo, um desejo que é sempre simultaneamente singular e relacional.[3] A base relacional do conatus inclui, na interpretação de Lordon, não apenas os outros que estão imediatamente presentes e a composição afetiva deles conosco, como também os desejos do passado, desejos passados que estruturam e determinam as instituições.[4]  Da maneira que o desejo imediato pela sobrevivência, — a necessidade por comida e abrigo, — fundamenta o trabalho assalariado, esse desejo “imediato” precisa ser afastado de outros modos possíveis de sobrevivência além da organização pelo salário, desligado de outras formas preexistentes de sobrevivência, ou do simples ato de obter o que se precisa. O argumento de Marx sobre a “acumulação primitiva” consiste não somente que ocorra com a destruição de todos bens comuns [commons] e a consequente acumulação de riqueza, como também com a destruição da própria ideia de uma existência que não esteja predicada no mundo da mercadoria e na forma-salário. É a acumulação primitiva do conatus.[5] A história de cada instituição, de cada prática, acontece com a destruição de certos modos de desejo, que acontece em paralelo à criação, ou canalização, de outras formas. A natureza não cria nações nem economias. Nenhuma ordem social está baseada nalgum desejo natural. Ou melhor, toda ordem social é baseada em desejo natural: a diferença consiste em como aquele desejo é articulado, quais seus objetos e atividades.

Se o capitalismo tem a sua característica definidora na separação de produtores dos meios de produção, então essa separação radicalmente altera a imediaticidade da necessidade e do desejo. A fome pode levar a maioria das pessoas a trabalhar, mas o trabalho estará sempre fora de sincronia em relação ao imediato do desejo.[6] Lordon argumenta que a transformação fundamental necessária para trazer a composição afetiva de Spinoza ao presente reside na separação fundamental entre o desejo, a atividade, e seu objeto. Essa separação dos meios de “produção é menos uma perda fundamental, — como seria se a colocarmos em termos da alienação”, — do que é uma transformação fundamental da própria atividade, do que significa se envolver no trabalho ou na autopreservação. Existe uma indiferença em relação à própria atividade. As metas de uma atividade particular são arrancadas de seu significado, de seus sentidos de bom e ruim, perfeito e imperfeito. Embora nós possamos afetivamente nos envolver em qualquer emprego, em qualquer tarefa particular, desenvolvendo nosso potencial e relações; é secundário para o desejo e necessidade por dinheiro que o emprego se torne causa de nossa alegria. O trabalho concreto está subordinado ao trabalho abstrato. Existe então uma divisão afetiva no núcleo do processo de trabalho, entre o amor possível de minha própria atividade concreta, suas alegrias concretas, e a trocabilidade abstrata, o valor de troca, o salário. O que podemos chamar de composição afetiva do trabalho é como, num dado momento, esses dois aspectos são valorizados ou desvalorizados: o quanto se busca de alegria na própria atividade do trabalho, e o quanto é buscada em termos de acumulação de dinheiro que ela torna possível. A passagem entre atividade e objeto é complicada, tanto na causa quanto no efeito, em razão das relações cambiantes de esperança e medo existentes socialmente em um dado momento histórico.

Lordon oferece um rascunho da história da composição afetiva do trabalho, estruturada em termos de três períodos: primeiro, o período correspondente à acumulação primitiva e o advento da subsunção formal; seguido, em segundo lugar, pelo fordismo, e finalmente o neoliberalismo. No primeiro período, o da acumulação primitiva do conatus, a simples falta de alternativa é suficiente e o esforço é determinado pelo medo de morrer de fome. Como Marx escreve, o modo de produção capitalista depende parcialmente dos esforços do “trabalhador” pela autopreservação e reprodução.”[7] Nesse nível mais fundamental, tudo o que o capitalismo tem de fazer é destruir quaisquer alternativas que não ele própria, recortar e cercar os bens comuns [commons], e arruinar sistemática e severamente aqueles que desejem realizar sua existência fora do mundo do trabalho assalariado. O segundo período, o do fordismo, é definido pelas transformações tanto do isolamento da atividade do trabalho de qualquer alegria intrínseca, quanto de um inédito investimento afetivo no plano do consumo. O trabalho é simplificado e fragmentado, arrancado dos prazeres imediatos, e a possibilidade de ser inteiramente dominado pelos trabalhadores. Este é o trabalho no esquema da linha de montagem. Ao mesmo tempo, a esfera do consumo é expandida e centralizada. O famoso “dia de cinco dólares”, de Henry Ford, aumentou o poder de consumo. [8] A composição afetiva do fordismo pode ser descrita como uma reorganização fundamental do conatus, do desejo, para fora da esfera do trabalho propriamente dito, uma passagem da atividade por si em direção ao consumo. A atividade do trabalhador é fragmentada, tornada parte de um todo que a excede, se tornando tanto passividade quanto atividade. A tristeza do trabalho, o seu esgotamento, é compensado pelas alegrias do consumo. Esta transformação, de um investimento afetivo no trabalho para um investimento afetivo no consumo, poderia também ser descrita como uma passagem da alegria ativa, — isto é, a alegria na capacidade de agir de alguém, e a transformação da ação,— à alegria passiva.  Afetos alegres passivos são aqueles que aumentam o nosso poder de agir, ao mesmo tempo em que permanecem fora de nossa autonomia. Os prazeres do consumo, do consumismo, podem ser entendidos como alegrias passivas: eles prometem certo grau de incremento de nossa força, de nossas alegrias e desejos, mas o que eles não podem dar em concomitância, o que jamais pode ser comprado, é a própria capacidade de ativamente produzir novos prazeres.

O compromisso fordista pode assim ser distinguido do período posterior, pós-fordista ou neoliberal, em termos de articulações de afetos, de transformações que também podem ser descritas através da transformação das esferas da atividade do trabalho e do consumo. Falando de maneira abrangente, essas transformações podem inicialmente ser descritas por um desmantelamento da segurança e da estabilidade do trabalho. O compromisso fordista trazia em si uma dimensão de estabilidade, graças à barganha coletiva e a centralidade do contrato.[9] O neoliberalismo, como é definido por Lordon, é uma primeira e mais avançada transformação das normas e estruturas que organizam o trabalho. Como tal ele é fundamentalmente assimétrico, os trabalhadores são expostos a mais e mais riscos, enquanto os capitalistas, especialmente aqueles preocupados com o capital financeiro, são exonerados dos riscos clássicos do investimento. [10] Essa perda de segurança para o trabalhador fundamentalmente muda a dimensão afetiva do dinheiro. Não é mais objeto da esperança, os meios possíveis para realizarem-se os desejos. O dinheiro se torna o que evita o medo. O dinheiro se torna parte do esforço por segurança, a única segurança possível: as habilidades e ações de alguém não terão nenhum valor no futuro, mas o dinheiro sempre terá.[11] Alguém poderia entender essa passagem do fordismo ao neoliberalismo como uma passagem do regime de esperança (respingado de medo) ao regime de medo (respingado de esperança). De fato, medo e esperança não podem ser separados, mas isto não significa que uma determinada composição afetiva não esteja mais definida mais por um do que pelo outro. Portanto, poderia se argumentar que a precariedade é melhor entendida como um conceito afetivo. É menos uma questão dalguma passagem objetiva em termos de estatuto da segurança, do que um deslocamento em como o trabalho e a segurança são percebidos.[12] Se a precariedade pode ser usada, adequadamente, para descrever a vida econômica contemporânea é menos porque todo mundo esteja trabalhando sob algum tipo de contrato temporário ou em tempo parcial, — embora esses tenham se tornado frequentes, — do que por causa do senso permanente de insegurança, infundido em cada situação de trabalho.[13] A precariedade afeta inclusive o emprego estável, através de sua transformação tecnológica. Uma ansiedade generalizada infunde todos os momentos da vida da preocupação com o trabalho, ao passo que medidas indiretas de produtividade substituem a produtividade da linha de montagem.[14] O trabalho indireto, fragmentado e imaterial dos serviços, da gerência de conhecimento, e o trabalho emocional estão menos sujeitos à medidas quantitativas diretas (como o antigo “tempo de trabalho”), à medida por unidades produzidas, e estão, assim, sujeitos à constante revisão e avaliação. A insegurança generalizada, a onipresença do trabalho, e a incerteza da avaliação definem a economia neoliberal do medo.

A passagem do fordismo ao neoliberalismo não pode ser descrita como uma passagem da esperança ao medo; do desejo por dinheiro baseado no terreno expansivo de uma boa vida, ao desejo baseado na insegurança sobre o futuro. Essa é uma composição afetiva fundamentalmente diferente, uma que transforma a relação ao trabalho assim como com o dinheiro. Como Luc Boltanski e Eve Chiapello argumentam em O novo espírito do capitalismo, um dos aspectos centrais do neoliberalismo, pelo menos no nível da linguagem dos gerentes e economistas, é a apresentação do cenário de insegurança como uma oportunidade.[15]

O destroçamento da estabilidade, que funcionava como pano de fundo do desejo fordista, possibilitando uma seta linear de acumulação, é apresentado pelo discurso neoliberalista como uma libertação em relação à burocracia e o controle estatal. O movimento constante de projeto a projeto, a falta de estabilidade ou ligações de longo prazo, é apresentada pelo discurso não como promovendo o medo, devido à perda de segurança, mas sim à esperança, à qualidade flexível e constante de fazer novas ligações, ao desapego em ser capaz de romper com o passado, em nome do novo, de um novo futuro.  Como o trabalho se torna cada vez mais inseguro, menos e menos capaz de prover uma progressão estável e linear, ele se torna mais e mais consumidor de tempo e energia. Neoliberalismo é a rearticulação massiva não apenas da relação com o dinheiro, tornando-se objeto de desejo e medo, mas também do risco. O novo espírito do capitalismo revaloriza o risco.

Longe de ser um retorno a algum medo fundamental, o neoliberalismo demanda o mais alto coeficiente de “colinearização”, ou seja, a correlação entre o desejo individual e o modo de produção. Não é acidente que, no vocabulário do neoliberalismo, termos como “capital humano”, “marca pessoal”, “network” etc, todos reproduzam a ideia de uma identidade individual que pode ser capitalizada. Isto também significa uma transformação do trabalho: trabalho não é mais definido como algo que deva ser suportado, como uma passividade necessária para a troca por dinheiro, que permite chegar às alegrias do consumo. No período pós-fordista, o trabalho, em vez disso, se torna o terreno por excelência de autorrealização e atualização. Esta mudança não é apenas um problema de uma representação diferente e fundamental de ruptura com a estabilidade, agora se apresentando a insegurança como liberdade, como também é ela própria uma ruptura das fronteiras separando trabalho da vida. Isto é parcialmente um efeito da instabilidade do trabalho, na medida em que se torna mais precário. O trabalho se torna um tipo de envolvimento perpétuo no emprego.[16] O uso da expressão “networking” reflete essa mudança, ela é a ideia social não apenas para tempos de desemprego, tempo em que fazer novos contatos se torna prioritário para voltar a trabalhar, mas é um ideal que engloba todas as relações sociais. Laços fracos, os laços que ligam alguém aos colegas e cotrabalhadores, se tornam investidos ao máximo de medo e esperança, assim como qualquer laço, qualquer relação pode possivelmente impactar o futuro de alguém. Este investimento precário em relações com os outros é ainda mais complicado devido à proliferação de tecnologias de compartilhamento e vigilância, que tornam a autoapresentação não somente um momento isolado, seja no dia de trabalho ou na entrevista de emprego, mas uma tarefa permanente. O “networking”, a flexibilidade, e a constante autovigilância da procura de emprego se tornam características definidoras do trabalho contemporâneo. Ao mesmo tempo em que a característica está implicada não para ser uma repressão do eu fundamental e sua identidade, mas como sua expressão.[17] Não é apenas que o “networking” e o trabalho de sempre parecer e se apresentar motivado, envolvido e entusiasta tenha de ser um tipo de “atuação profunda”, demandando grande dispêndio e engajamento, mas que o lugar de trabalho também passa a abarcar tais atividades e relações, que pareceriam estar fora dele. O lugar de trabalho incorpora cada vez mais o lazer, o lúdico e a criatividade como partes de sua estrutura. A apresentação de Lordon é esquemática, excessivamente, no seu recentemente publicado La Société des Affects, onde ele desenvolve este esquema ao voltar a duas das proposições finais da Parte 3 da Ética. Nessas passagens finais, Spinoza argumenta que existem tantos amores e ódios quanto existem espécies de objetos pelos quais nós somos afetados (E, III, P56) e “cada afeto de cada indivíduo difere do afeto do outro tanto quanto a essência de um da essência do outro” (E, III, P57). Como Lordon argumenta, haverá sempre patrões que são bondosos e generosos, situações de trabalho que implicam num campo mais abrangente de atividade; mas essas diferenças e desvios são em última instância diferentes expressões da mesma relação fundamental. O patrão mais legal do mundo não pode fundamentalmente alterar a estrutura fundamental do fordismo ou das condições de trabalho neoliberal, pois o engajamento afetivo no nível da intenção individual não pode fazer nada para alterar a relação básica com a atividade e o objeto.[18]  Esse verniz afetivo, o trabalho das relações humanas, não é inconsequente: mais do que o papel que exerce em motivar trabalhadores individuais, seu rendimento real é produzir a aparência da diferença, de uma sociedade de ações individuais em vez das estruturas sociais que persistem. Boa parte da crítica quotidiana do trabalho, ou do capitalismo em geral, concentra-se nas diferenças: nós reclamamos sobre o patrão, ou protestamos contra as grandes empresas por ser particularmente ofensivas, mas não abordamos a relação estrutural de exploração ou a motivação do lucro, que extrapola os caminhos diferentes em que a relação é efetuada. A pluralidade, — uma pluralidade ditada pelo que Spinoza iria chamar a ordem espontânea da natureza, — os modos diferentes com que as coisas nos afetaram acabam por assumir precedência sobre a percepção de relações comuns.

A esta ênfase na pluralidade como álibi perpétuo, podemos adicionar outra tese de Spinoza. Como o filósofo argumenta, nós estamos mais propensos a odiar ou amar um ato que consideramos ser livre, em relação a um considerado necessário. Nesse último ponto, a economia afetiva de Spinoza se cruza com um dos pontos centrais da crítica de Marx da economia política, aquela relacionada ao fetichismo, que poderia em parte ser mobilizada até perceber o modo de produção capitalista como necessário e natural, em vez de produto das relações sociais. A naturalização da economia, sua existência como leis naturais autoevidentes, torna difícil para nós odiá-la, para torná-la indigna. A economia afetiva do capitalismo é tal que seja fácil irritar-se ou se tornar grato a patrões cruéis ou filantropistas benevolentes, enquanto a estrutura ela própria, as relações fundamentais de exploração, acabam percebidas como demasiado necessárias, demasiado naturais, para merecer a indignação. A naturalização da economia, sua fetichização, conjuga com sua complexidade, o que torna difícil para nós reconhecermos a determinação de nosso esforço. Nós podemos ser capazes de traçar as causas que nos determinaram a gostar disso ou daquilo, ter este ou aquele gosto, mas é difícil captar as causas que canalizaram nosso esforço na direção do trabalho assalariado, e canalizam os nossos desejos na direção da compra de mercadorias, a tal ponto que o trabalho e o consumo pareçam condições naturais em vez de instituições históricas. A produção da indignação é uma tarefa difícil, ela vai contra não só a necessidade percebida do modo capitalista de produção, como os modos em que nossos próprios desejos, nossos desejos mais íntimos, têm sido produzidos pelo capitalismo. Desta perspectiva, a provocação central de Spinoza à crítica da economia política não está na observação sobre o poder do dinheiro, mas na tese fundamental que os homens “acreditam eles próprios livres porque estão conscientes de suas próprias ações, e ignorantes das causas pelas quais foram determinados” (E, III, P2, S). Esta afirmação depõe contra qualquer afirmação de um desejo suposto estar na direção do capitalismo, o desejo por bens de consumo etc, como sua própria justificação, porque tais desejos são meramente efeitos tomados como causas. Sua dimensão destrutiva, seu pars destruens, está bem claro: o que é menos claro, contudo, é como constituir um projeto político positivo nesse contexto. O ponto de partida, além do reconhecimento difícil do modo em que nós já estamos determinados, é o reconhecimento de Spinoza que nós nos movemos em direção a coisas que aumentam as nossas alegrias, evitando aqueles pensamentos que enfraquecem e entristecem-nos. Esta tendência afetiva não apenas explica porque “lutamos por nossa servidão como se fosse salvação”, mas também porque nós continuamos a acreditar contra toda a evidência que o sistema econômico presente vai eventualmente se acercar de nossos desejos, recompensando-nos por nossos esforços. Além disso, não apenas qualquer transformação deve romper as linhas de articulação tecidas entre desejo e trabalho, alegria e consumo, como deve produzir outras alegrias e ligações, outras formas desejantes.  Uma revolução é tanto a reorientação de nossas relações afetivas quanto das relações sociais, umas e outras não podem existir separadas.

 

 

NOTAS

[1] Lordon 2010, p. 54.

[2] Marx 1977, p. 899.

[3] Macherey 1995, p. 105.

[4] Lordon 2012, p. 67.[5] Albiac 1996 p. 15.

[6] Weeks 2011, p. 43.

[7] Marx 1977, p.718.

[8] Lordon 2010, p. 49.

[9] Lordon 2002, p. 70.

[10] Citton 2012, p. 68.

[11] Lordon 2010, p. 44.

[12] Bernant 2011, p. 201.

[13] Southwood 2011, p. 16.

[14] Berardi 2009, p. 32.

[15] Boltanski and Chiapello 2005, p. 64.

[16] Southwood 2010, p. 27.

[17] Cederström and Fleming 2012, p. 10.

[18] Lordon 2013, p. 94.

Tradutor: Bruno Cava

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