Por Giuseppe Cocco, Universidade Nômade | no IHU, junho de 2017
—
Esta é a segunda parte do artigo que tem como título geral “Não temos nada a ajustar, mas tudo a inventar“. A primeira (Não temos nada a defender) foi uma reflexão sobre, por um lado, a (ir)responsabilidade histórica do que chamaremos genericamente de “voto crítico” e, pelo outro, sobre a corrupção. Esta segunda parte reflete sobre as forças políticas que hoje podem desempenhar um urgente papel dentro do momento constituinte e, por outro lado, sobre um necessário horizonte de reformas, algo que antes se definia como “programa”.
—
—
Pode haver um partido dos sem-partido? Existe a possibilidade de uma comunicação e de uma troca, como diziam os jovens filósofos materialistas do início do século XX e repetiu o neozapatismo do final do século, onde ninguém manda e ninguém obedece? A resposta inicial a essa pergunta é negativa: o partido dos sem-partido é como o governo de esquerda na conhecida definição de Deleuze: não há e não pode haver governo de esquerda. Sabemos que essa afirmação serve também para “salvar” alguns governos tão vergonhosos quanto os outros, mas cheios de simbologias de “esquerda”: pois que não pode haver governo de esquerda, será normal que a esquerda faça um governo de merda, inclusive corrupto. Da mesma maneira, sabemos que não existem “partidos do sem-partido”. Mas, como não lembrar Rosa Luxemburgo quando ela escreveu (já em 1917): “Todas as instituições democráticas têm seus limites e suas ausências, mas o remédio encontrado por Trotsky e Lenin, a supressão da democracia em geral, é pior ainda que o mal”. Hoje também não podemos ignorar os desafios da mediação institucional: o período pós-levante de junho de 2013 nos mostra o quanto é urgente a invenção de novas instituições e como a recusa radical desse terreno corre o risco de ser impotente: o levante de junho precisa de uma mediação institucional, inclusive para renovar sua potência constituinte.
O “Fica Temer” é a verdade do “primeiramente, Fora Temer”.
No contexto da dramática crise social, econômica e política que o PT nos deixou em legado — assim como nos deixou o Temer —, a incerteza radical sobre qual pode ser um terreno institucional de radicalização democrática só tem resposta se conseguimos, ao mesmo tempo, enfrentar duas questões estratégicas: a primeira é sobre o que fazer diante do desmoronamento da representação; a segunda é a questão do “programa”. Por um lado, ninguém acredita mais na representação. Pelo outro, a própria noção de “programa” foi totalmente esvaziada e saturada pela hegemonia cínica do marketing. Começamos pela primeira questão: a representação morreu de vez: no Brasil, a morte foi decretada em junho de 2013, mas o enterro ainda não foi marcado. É o PT — sobretudo graças à covardia política e até física do “voto crítico” e de seus avatares dentro e fora do eixo — que impediu e impede uma mobilização pela radicalização democrática. A crise da representação não significa que ela não continue efetiva. Pelo contrário, ela se torna pura efetividade, sem mais nenhuma legitimidade e com agressividade acrescida. O desmoronamento da representação significa que o Rei está nu: Lula vira Dilma e Dilma vira Temer. Temer é a verdade da Dilma assim como o PMDB é a verdade do PT, da mesma maneira que a verdade do “fora Temer” — que ecoava nas salas VIPs de alguns shows — é na realidade aquela do “fica Temer” que unificou PT, PMDB e PSDB diante do TSE (no julgamento sobre cassação da chapa Dilma-Temer em junho de 2017). Temer é a “Dilma pelada” (no lugar da “Dilma bolada” da propaganda, é o rei nu). Oras, quando o “rei está nu”, ele precisa desesperadamente encontrar alguma roupagem, e Temer tem procurado encobrir sua pornográfica nudez com três trapos: (1) a “pinguela” oferecida por Fernando Henrique Cardoso para fazer as três reformas neoliberais; (2) o pacto da casta para a destruição da Lava Jato; (3) a repressão pura e simples. Sem legitimidade (que não seja a campanha petista contra “o golpe”), o governo Temer procura sua efetividade em um frágil mix dessas três roupagens. A peça mais importante é a pinguela do ajuste. Mas isso é totalmente contraditório, pois o “ajuste” é ajuste do mesmo, exatamente como Temer o entende, inclusive da corrupção sistêmica como mecanismo fundamental no cerne dos processos neocoloniais de acumulação predatória que caracterizam o capitalismo de estado no Brasil, desde sempre.
As reformas de Temer são a verdade da Dilma (e do Lula). Um dos legados mais nefastos do PT é a legitimação da pauta das reformas neoliberais como saída obrigatória e razoável diante da húbris pseudorracionalista chamada Nova Matriz Econômica. Se nos fatos essa era apenas o governo do lobby dos Global Players, no plano do regime discursivo encontrou simpatias (sobretudo quando da crise do PT) na esquerda intelectual que continua a pensar o neoliberalismo como uma política e uma ideologia, e não como aquele novo regime de acumulação que Foucault tinha analisado já em meados da década de 1970. A “esquerda”, inclusive e sobretudo o esquerdismo, continua pensando que pode resolver tudo a partir do Estado “socialista”, “decretando” os juros e os preços. Por um lado, nunca vai integrar a tragédia que isso foi (a URSS, a China maoísta) e continua sendo (a Venezuela do “socialismo do século XXI); pelo outro, é cega diante do fato de que o que na realidade se acaba fomentando é uma hibridização entre o tradicionalíssimo patrimonialismo e as novas dimensões rentistas do capitalismo global. Mas essa é uma das grandes explicações de a oposição de esquerda ter entrado na canoa petista não apenas quando estava furada, mas já afundada (em particular o PSOL do Rio de Janeiro, mas não apenas). O fato é que o PT e seus governos legitimaram essas reformas três vezes: (1) causando a mais grave crise da história econômica do País; (2) esvaziando totalmente a pauta de reformas da esquerda dentro da hegemonia do discurso do “pleno emprego” e da emergência da “nova classe média”; (3) começando o ajuste “desajustado” mesmo antes da posse do segundo governo Dilma (sob a direção do esquecido Joaquim Levy). O governo tampão de Temer, disse o FHC, se sustenta numa pinguela. A já precária pinguela, por sua vez, se sustenta no ajuste do que deveria ser — no mínimo — transformado. A conciliação entre reformas e combate à corrupção sistêmica já foi para o brejo. Assim, a pinguela nos levou a um poderoso impasse: por um lado, é preciso mudar alguma coisa, e a elite concorda com isso; pelo outro, a elite pretende usar a Lava Jato apenas para uma reorganização interna da mesma maneira de controlar o aparelho do Estado para continuar saqueando o país. A afirmação genérica da luta contra a “corrupção sistêmica” evita cuidadosamente reconhecer que é o sistema como um todo que é corrupto e, portanto, que só uma luta sistemática que transforme o sistema pode lutar contra isso. É o que a Lava Jato está nos mostrando: uma boa parte do que está aparecendo nos últimos meses são esquemas de corrupção que continuam acontecendo agora, durante a Lava Jato.
Sem movimento, sem mobilização democrática que proporcione essa luta sistemática, esse processo constituinte, não haverá mudança, mas rearranjo interno dos mesmos esquemas. Para isso, há dois caminhos a serem trilhados. O primeiro, no plano da representação institucional, é aquele que responde à questão que colocamos acima: o “partido dos sem-partido” é aquele capaz, por um lado, de estar aberto às dinâmicas autônomas de movimento (sem e até contra o PT) e, pelo outro, de dialogar com estas por meio da capacidade de interpretar, propor e praticar um novo tipo de reformas. Temos assim um outro plano, aquele da invenção de um novo horizonte de reformas. A diferença pode vir ao longo de três eixos complementares: a reforma política, a reforma municipalista, uma virada radical nas políticas de segurança. Os três eixos devem se caracterizar por três deslocamentos do debate: as políticas de segurança precisam se organizar a partir do reconhecimento da guerra e do genocídio em andamento e assim propor um plano de paz; a reforma da previdência precisa se articular com as políticas de distribuição de renda e a reforma política precisa ter como âncora o municipalismo.
Reconhecer a guerra e propor um plano de paz significa, ao mesmo tempo, a abertura em regime de urgência da luta contra o genocídio dos jovens, negros e pobres e abrir um processo de legalização das substâncias proibidas para que passem a fazer parte das políticas de saúde. Integrar a reforma da previdência e a lei da terceirização significa definir um novo marco de proteção social, ancorado na implementação da Renda Básica Universal (usando como base material o Bolsa Família e a Lei Suplicy sobre Salário Mínimo). Para terminar, a reforma política deverá se nortear pela descentralização política fazendo da democracia municipal o principal eixo constituinte. Temos assim o tripé de uma nova pauta: um Plano Emergencial de Paz, uma Nova Proteção Social e um Novo Marco Municipal para o exercício da democracia. Tudo isso precisa enfim ser atravessado pelos temas das lutas indígenas, da demarcação das reservas, da proteção da floresta e dos rios, e isso significa produzir um novo dispositivo legal de reconhecimento e produção dos bens comuns.
Entre globalismo e Virada neossoberanista: municipalismos! O que a Lava Jato nos mostra é que a clivagem entre mercado e Estado é uma pura mistificação: os intervencionistas que defendem o Estado como “solução” na realidade visam manter seu (ab)uso como instrumento de acumulação originária; os liberais que falam de Estado mínimo escondem que as empresas organizam o saque comprando leis, subsídios e outros cargos estratégicos para construir suas posições rentistas. Corruptos e corruptores são as duas faces de uma mesma e falsa moeda. O que faz a diferença é a democracia: é dessa radicalização que precisamos. Toda reforma política, todo programa social e econômico tem que atacar essa relação promíscua e neocolonial que junta o Estado e o Mercado. No Brasil, isso vai depender da capacidade que teremos de lidar com a crise da nova república (herdada do desfecho da guerra fria) rumo a um novo pacto constitucional dentro das novas condições do capitalismo contemporâneo. No nível global, isso se desdobra com as novas clivagens que estão aparecendo entre globalismo e neossoberanismo. A vitória do Brexit no Reino Unido e aquela de Trump nos Estados Unidos indicaram a emergência de uma saída reacionária da globalização. Na França, a vitória do soberanismo de Marine Le Pen foi evitada pela operação que levou ao poder Emmanuel Macron, por fora do sistema dos partidos.
O “globalismo” parece ser capaz de assumir alguns temas do novo conflito, como na questão das migrações, do multiculturalismo, dos direitos LGBT e também da luta contra o aquecimento global. As declarações de vários governadores de importantes estados norte-americanos contra o decreto de Trump que proibia a entrada no país dos imigrantes oriundos de alguns estados de maioria muçulmana explicitou esse conflito, assim como sobre o futuro das “cidades-santuário” (que abrigam os migrantes ilegais impedindo que sejam deportados). O duro discurso que o próprio Macron pronunciou, depois que Trump declarou a saída dos EUA do acordo de Paris, sobre aquecimento global confirma essa linha de conflito que atravessa a própria composição do poder. Contudo, a luta por uma globalização democrática continua sendo esmagada entre essas duas formas de representação: é no municipalismo que a resistência e a inovação continuam e se aprofundam, numa relação potente entre dinâmicas locais e fluxos globais. É o caso das experimentações de Barcelona (em medida menor Madri) mas sobretudo dos municípios e estados que, nos EUA, implementam políticas ambientais independentemente das decisões federais. Precisamos, pois, de uma reforma que promova e reconheça o municipalismo no Brasil: (a) prever a constituição de listas eleitorais municipais; (b) descentralizar em nível municipal a gestão do maior número possível de esferas de governo (redução ao mínimo das esferas de atuação estadual); (c) municipalização de portos, aeroportos, rodoviárias; (d) construção de um conselho nacional de reforma urbana para a coordenação de políticas emergenciais de saneamento, urbanização, transportes metropolitanos e interurbanos.
A paz e a necessária integração de reformas políticas e reformas econômicas. As lutas para barrar ou para impor as reformas constituem as duas faces de uma mesma mistificação. Por um lado, é falso dizer que o país pode sair da dramática situação atual sem reformas importantes. Pelo outro, nenhuma reforma conseguirá ser legítima e eficaz se ela mantiver a separação entre o plano econômico e o plano político. No meio dessa clivagem produzida pela “esquerda” e pela “direita”, um indicador em constante e trágica expansão: a violência civil e sua guerra contra os pobres. As cidades do Nordeste povoam o marketing lulista, mas se tornaram infernos no Brasil realmente existente.
Como dissemos, a primeira inflexão geral deve ser sobre a questão da segurança, com medidas radicais: a primeira medida será pautar a urgente legalização de todas as drogas (que passarão a ser geridas pelo SUS); a segunda medida urgente deve ser a organização de forças-tarefas (Ministério Público, Magistratura, Polícia Federal e Polícia Civil) para o combate ao tráfico de armas e ao tráfico (residual) de drogas: uso do dispositivo da delação premiada para o combate ao tráfico de armas e às milícias. Em seguida, a abolição das polícias militares e a criação de polícias municipais metropolitanas, em que os delegados deverão ser eleitos pela população dos territórios das delegacias. Deverá ser abolida também a lei do “auto de resistência” e, ao mesmo tempo, organizadas forças-tarefas para sistematizar todas as investigações sobre homicídios e violências contra as pessoas. Plano de investimento emergencial no sistema carcerário, na ordem: desmonte dos pactos entre estados e comandos do crime organizado, indulto dos crime menores; mutirão para a soltura dos presos por pequenos delitos e pequeno crime e sem processo, revisão das condições prisionais das mulheres grávidas e com crianças menores, reformas dos presídios, construção de novos presídios e destruição dos antigos; promoção de comissões territoriais (com participação de igrejas, escolas, líderes comunitários etc.) pela paz; programa nacional (federal) de proteção das testemunhas. As comissões territoriais deverão receber incentivos econômicos, geridos de maneira totalmente transparente: em termos de investimentos de saneamento, educação e lazer para os jovens.
A segunda inflexão é juntar reformas econômicas e reformas sociais e assim colocar no cerne do investimento, afetivo e financeiro, a relação entre mobilização democrática e mobilização produtiva. Isso significa articular no mesmo terreno da reforma da previdência com o aprofundamento e expansão das políticas de distribuição de renda. Ao invés de usar o Programa Bolsa Família contra a Previdência (como está sendo feito), se trata de transformá-lo realmente na base de um novo sistema de proteção social, rumo a uma Renda Básica Universal (para a qual já existe a Lei Suplicy). Assim, a Reforma da previdência pode não apenas produzir a confiança contábil do capital sobre a dinâmica da dívida pública, mas também mobilizar a confiança dos pobres sobre as condições de sua própria mobilização social. É nessa perspectiva que é possível negociar a reforma trabalhista: não uma mera flexibilização, mas uma nova mobilização. O que essas reformas devem visar com clareza é a diminuição do custo da dívida (os juros) com base na consolidação da mobilização democrática e produtiva: fugindo ao mesmo tempo dos decretos delirantes do neodesenvolvimentismo e dos diktats do mercado.
A terceira inflexão é aquela de juntar reformas econômicas e sociais com a reforma política, algo que apenas uma nova assembleia constituinte poderia legitimar. Podemos resumir alguns grandes eixos de novos princípios do ponto de vista do funcionamento de toda a estrutura do Estado. Podemos falar de um critério geral a ser afirmado: “ninguém poder ser reeleito e ao mesmo tempo é preciso eleger todo o mundo”. (I) reformas em nível nacional: abolição da reeleição para todo tipo de cargo representativo, em todos os níveis; eleição dos juízes de todos os tribunais superiores (sobretudo do STF, do TSE etc.) e para os cargos de delegados de polícia: desde a polícia federal até as polícias civis e sobretudo para os Tribunais de Contas nos três níveis federais. Abolição das indicações políticas para as superintendências de todos os tipos de fiscalização, aumento do poder dos auditores independentes; eliminação de 95% dos cargos comissionados, que passam a ser ocupados por quadros técnicos concursados (com a construção de colégios eleitorais que misturem os profissionais envolvidos e a participação horizontal (e critérios para elegibilidade dos candidatos). Eleição de todos os membros das Agências de regulação, dos membros do CARF, do CADE etc.
Para terminar, o partido dos sem-partido será aquele capaz de articular dentro de sua própria dinâmica essa capacidade de invenção.
Mas esse, dizia Dilma, é o mundo das fantasias. O mundo real é aquele onde o Presidente e seu vice colocam seus amigos como juízes, negam a evidência das acusações, moram em triplex dos amigos e viajam de graça em milagrosos aviões que são de ninguém.
—
Giuseppe Cocco é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes e coordenador da coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).