Por Diego Kern Lopes, professor de história da arte na UFES, artista e pesquisador; e Silfarlem Oliveira, artista e pesquisador
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Problematizamos o enquadramento das relações entre as noções de autoria e de prática colaborativa nas construções da arte pública contemporânea através da análise de dois episódios envolvendo bens culturais e artísticos no estado do Espírito Santo, durante as manifestações que ficaram conhecidas como “levantes de junho”.
Os dois episódios/casos sobre os quais focaremos nossas análises são: o uso da pintura A ressurreição de Lázaro do pintor Levino Fanzeres que foi utilizado como barricada (figura 1) e a decapitação da escultura O menino e o Delfim dos escultores italianos Pedro e Fernando Gianordoli (figura 2). Nestes trabalhos o que temos é o conceito foulcaultiano da “função autor” (FOUCAULT, 2009) fazendo com que estas construções materializem um conjunto de relações que se desdobram no espaço e no tempo em função das estruturas de poder que tentam neutralizar ou impor valor moral nestas ações. Neste sentido, esta estrutura ao manter intacta a obra/monumento pretende manter intacta sua ordem discursiva. Pelo mesmo princípio, ações contrárias colocam em risco a aparente autonomia consensual aurática atribuída, histórica e discursivamente, a tais trabalhos de arte.
Sendo assim, podemos encarar os ciclos de “construção” e “destruição” de um trabalho em arte como ciclos de um constante processo de criação. Tal suposição encontra força principalmente nos trabalhos de arte situados em espaços públicos onde as forças sociais e institucionais antagonizam-se de forma mais clara e direta. Estas relações antagônicas podem ser sintetizadas através das palavras de Rosalyn Deutsche em seu trabalho Agorafobia:
“El espacio público […] es el espacio social donde, dada la ausencia de fundamentos, el significado y la unidad de lo social son negociados: al mismo tiempo que se constituyen se ponen en riesgo. Lo que se reconoce en el espacio público es la legitimidad del debate sobre qué es legítimo y qué es ilegítimo (DEUTSCHE, 2008, p.8).”
Estruturando este antagonismo, partimos do postulado que defende a inexistência de neutralidade na estruturação da sociedade. Esta perspectiva encontra fundamento no trabalho da filósofa Chantal Mouffe (1996) que sustenta que o mundo é atravessado pela dimensão ontológica “do político”, ou seja, “o político” é a força que faz com quem as percepções que distinguem amigos de inimigos possam estar presentes em qualquer tipo de relação. Dentro deste fundamento ontológico encontra-se “a política” como conjunto de discursos e práticas, também artísticas, que contribuem a uma ordem e a reproduzem. Nas palavras de Chantal Mouffe:
“Como la dimensión de ‘lo político’ siempre está presente, nunca puede haber una hegemonía completa, absoluta, no excluyente. En ese marco, las prácticas artísticas y culturales son absolutamente fundamentales como uno de los niveles en los que se constituyen las identificaciones y las formas de identidad. No se puede distinguir entre arte político y arte no político, porque todas las formas de prácticas artísticas o bien contribuyen a la reproducción del sentido común dado – y en ese sentido son políticas –, o bien contribuyen a su deconstrucción o su crítica. Toda las formas artísticas tienen una dimensión política” (MOUFFE, 2007, p. 26).
Sendo assim, todo trabalho de/em arte apresenta um determinado posicionamento político. Isto, ao ser admitido, faz com que a tradicional neutralidade adjetivada aos monumentos artístico/históricos transformados e tratados como um patrimônio comum a todos e que devem ser mantidos intocados e inquestionados seja posta em xeque. Em outras palavras, a difundida separação/afirmação que alega e sustenta a arte e o patrimônio histórico cultural como uma coisa; e governos, estados, sociedades, forças políticas como outra é aqui frontalmente criticada.
Merece destaque que nestes jogos de narrativas entre arte, cultura e poder temos tanto uma reatualização de um conceito clássico de autoria – feita pelos defensores de uma dada ordem ou propriedade cultural, intelectual – quanto à instauração de práticas colaborativas que subvertem a própria função autor. Prova disto é a atmosfera de polêmica e carga moral que surge na ocorrência destes eventos. Estas práticas colaborativas, no espaço público, demonstram um uso do simbólico não apenas por parte das “instituições oficiais”, mas também pelos indivíduos e coletivos em ação. Como comenta Nestor Canclini, as transformações e usos do simbólico, de forma “não oficial”, em detrimento aos “guardiões públicos” dos monumentos que “costumam afirmar seu valor e suas formas históricas como intocáveis” permite que movimentos sociais, culturais e políticos, alheios “ao sentido hegemônico do que seja o ‘correto’ reapropriem símbolos dando-lhes novos significados […]” (CANCLINI, 2012, p.76).
Figura 1
Figura 2
Não é difícil perceber a velocidade e facilidade com que a estrutura hegemônica reage cada vez que tem seus símbolos antagonizados e reapropriados. Isto pode ser verificado nas diferentes instâncias dos aparelhos institucionais, jurídicos e acadêmicos que, de imediato, proferem sentenças naturalizadas onde qualquer forma de ação deste tipo é indexada como vandalismo. O que parece ficar claro é que este processo de indexação tem por objetivo bestializar tais práticas esvaziando-as de qualquer tipo de senso ou propósito, fazendo com que estas ações sejam categorizadas como acidentes, como irracionalidades. Talvez até pudéssemos aceitar o adjetivo “irracional” se este representasse algum tipo de antagonismo ao fundamento racionalista do projeto da modernidade. Porém, o que parece é que a irracionalidade tem sido utilizada nestas práticas como sinônimo de selvageria, ou seja, de não civilizado, de “não humano”, de não pertencente ao campo das possibilidades de análise por ser definida como uma ação tautológica e que possui fim em si mesmo. Discordamos deste consenso imposto e acreditamos no desprendimento e decantação de significados presentes nestas práticas, casos, episódios. Tais ações não têm fim em si mesmo, elas têm origem e destino anteriores e posteriores a elas mesmas, fazem parte de uma estrutura social que constitui a elas e aos trabalhos que alvejam. Podemos constatar estas estruturas e exterioridades relacionais, por exemplo, na possibilidade de escrita das palavras e ideias que constituem este texto.
Interpretamos que os manifestantes na Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo (figura 1) ao usarem uma pintura como barricada, expõem as zonas fronteiriças entre projetos de mundo. Dentre todo o mobiliário presente na sala, a utilização do quadro como barreira revela a reapropriação e utilização de símbolos e valores contra as estruturas que os dão origem. O quadro se tornou uma excelente opção de obstáculo, não pelas características materiais que apresenta (muito pelo contrário, um chassi de madeira e pano claramente não cumprem tal função), mas, sim, pela força concreta e hegemônica que traz em si e representa. Acreditamos que os manifestantes perceberam que os policiais, que pretendiam invadir o recinto, não poderiam atentar contra o quadro sob pena de estarem atentando contra as premissas e diretrizes que dão origem a sua própria corporação enquanto braço armado do Estado. Nesta ação colaborativa e ressignificadora, a autoria torna-se funcional, pois junto à Levino Fanzeres tomam parte neste processo o anonimato dos manifestantes, o anonimato das forças do Estado, as testemunhas, os fotógrafos, os jornalistas, os leitores deste texto. Todos elencados como peças fundamentais na transformação da pintura em objeto de arte, de patrimônio, de História, de política, de embate hegemônico. Da mesma forma, nos parece que, a decapitação da estátua “O menino e o Delfim” (figura 2) traz à tona os ciclos construtivos e destrutivos históricos da formação dos espaços públicos. A eleição e implementação de monumentos sempre foi deliberada coincidindo com projetos e orientações ideológicas hegemônicas de um determinado tempo.
Em outras palavras, o trabalho dos irmãos Gianordoli encontra seu tempo no início do século 20 e seu espaço em uma capital de Estado que, como muitas em todo Brasil, estava sendo reconfigurada arquitetonicamente sob os paradigmas de uma modernidade latino-americana. O que precisa ser resgatado dos estratos mais profundos que formam este espaço público é a lembrança e constante ratificação da presença anterior de outros grupos e comunidades que não foram somente decapitados, mas, também, soterrados pela História que nos constitui. O que percebemos é que estas práticas, estas estratégias colaborativas desvelam a intenção de consensualidade presente na organização social. Ou seja, os casos aqui trabalhados revelam a presença ontológica do dissenso em nossa sociedade e o esforço constante das estruturas hegemônicas em criminaliza-lo, dissipá-lo e apagá-lo de nossas percepções e experiências. Desta forma acreditamos que a escultura ao ser danificada e o quadro ao ser usado como barreira, colocam em ato todas as potências que as constituem enquanto trabalho de arte. Conseguem condensar e revelar todas as forças históricas que as constituem. Ao exporem e evidenciarem o dissenso permitem que a arte, em um só golpe, revele as realidades do mundo. Realidade não como uma verdade essencial, mas como a ficção definida pelo filósofo Jacques Rancière em seu livro O espectador emancipado:
“Não há real em si, mas configurações daquilo que é dado como nosso real, como objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e aparências, opiniões e utopias.” (RANCIÈRE, 2012, p.74)
Sendo assim, os entrelaçamentos narrativos entre arte, cultura e poder revelam os embates dissensuais das ficções que nos compõem. Os deslocamentos e reapropriações simbólicas evidenciam as formas como tais ficções são construídas e como determinadas versões ganham uma adjetivação de verdade inquestionável. Entretanto, esse status pode ser mudado através da ativação da potência poética destrutiva presente em práticas que visem desvelar o dissenso. Desta forma acreditamos que, justamente, esta potência poética destrutiva (política e simbólica) é o que garante o movimento histórico (e a consequente existência efetiva dos campos) e não como aparentemente se sustenta sua “depredação”, inclusive o da arte.
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REFERÊNCIAS
CANCLINI, Nestor G. A sociedade sem relato – Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: Edusp, 2012.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Esccritos vol. III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. São Paulo: Forense Universitária, 2009.
DEUTSCHE, Rosalyn. Agorafobia. Barcelona: MACBA, 2008.
MOUFFE, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona, 2007.
_______________. O regresso do político. Gradiva: Lisboa, 1996.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.