Por Slavoj Zizek | Em Project Syndicate, 13/02/2023 | Trad. Bruno Cava
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Em maio do ano passado, antes de ser eleito pela terceira vez como presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva alegou que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e seu equivalente russo, Vladimir Putin, têm igualmente responsabilidade pela guerra na Ucrânia. Quer a recusa em tomar partido venha do Brasil, quer venha da África do Sul ou da Índia, posicionar-se como neutro na guerra na Ucrânia não se sustenta.
O mesmo raciocínio é válido para os indivíduos. Se alguém passando pela rua vir um homem espancando sem descanso uma criança na esquina, se espera que a testemunha faça algo para impedi-lo. A neutralidade aqui não é uma opção. Ao contrário, nós acharíamos deplorável a omissão, uma torpeza moral.
Como, portanto, deveríamos responder às observações recentes de Roger Waters feitas ao Conselho de Segurança das Nações Unidas? Numa chamada de vídeo, o ativista e cofundador do Pink Floyd alegou que falava por “cerca de quatro bilhões de irmãos e irmãs” espalhados pelo mundo. É verdade que Waters reconheceu que a guerra russa na Ucrânia é ilegal e deve ser condenada “nos termos mais fortes possíveis”. Mas então se apressou para acrescentar:
“A invasão russa da Ucrânia não foi improvocada, então eu também condeno os provocadores nos termos mais fortes possíveis. A única linha de ação sensata hoje é conclamar um cessar-fogo imediato na Ucrânia. Nenhuma vida ucraniana ou russa deve ser despendida, nem uma única, todas são preciosas aos nossos olhos. Chegou a hora de falar a verdade ao poder.”
Seria a “verdade” de Roger Waters uma expressão de neutralidade? Numa entrevista no começo deste mês à Berliner Zeitung, o mesmo Waters disse: “Talvez eu não devesse, mas agora eu estou mais aberto para escutar o que Putin realmente tem a dizer. De acordo com vozes independentes que escuto, Putin governa com cuidado, tomando decisões baseadas no consenso, no governo da Federação Russa”.
Como uma voz independente que segue a mídia russa bem de perto, estou bem familiarizado com o que Putin e seus propagandistas “realmente dizem”. Os maiores canais de TV aberta estão cheios de comentadores sugerindo que países como Polônia, Alemanha ou Reino Unido sejam bombardeados com armas nucleares. O chefe de guerra checheno Ramzan Kadyroz, um dos aliados mais próximos de Putin, anda convocando abertamente uma “luta contra o satanismo a ser continuada pela Europa e, primeiro de tudo, no território da Polônia.” Realmente, a linha oficial do Kremlin descreve a guerra como uma “operação especial” pela des-nazificação e des-demonização da Ucrânia. Entre as “provocações” da Ucrânia, consta que no país foram permitidas paradas gay e reconhecidos direitos LGBTQ+, o que estaria minando as normas sexuais tradicionais e os papéis de gênero. Os comentaristas alinhados ao Kremlin falam de um “totalitarismo liberal”, chegando ao ponto de argumentar que o livro “1984”, de George Orwell, seria uma crítica não ao fascismo ou ao estalinismo, mas ao liberalismo.
Nada disso pode ser encontrado na mídia ocidental, em que o principal tema é que deveríamos ajudar a Ucrânia a sobreviver. Até onde eu saiba, ninguém exigiu que as fronteiras da Rússia sejam alteradas, ou que parte de seu território seja tomada. Nos piores casos, se podem encontrar exigências contraproducentes para boicotar a cultura russa, como se o regime de Putin de alguma forma representasse figuras como Pushkin, Tchaikovski e Tolstoi. Assim como estamos apoiando a Ucrânia contra um agressor, deveríamos defender a cultura russa contra o abusador no Kremlin. Deveríamos também evitar triunfalismo e enquadrar o nosso objetivo em termos positivos. A meta primária não é para a Rússia perder e ser humilhada, mas para a Ucrânia sobreviver.
Países “neutros” fora do Ocidente contra-argumentam que a guerra na Ucrânia é um conflito local que desbota diante dos horrores do colonialismo ou de eventos mais recentes, como a ocupação americana no Iraque. Mas isto é uma esquiva óbvia. Afinal, a guerra imperialista da Rússia é ela própria um ato de colonialismo. Quem alega neutralidade abdica de sua posição moral para reclamar de quaisquer horrores da colonização onde quer que seja. Waters é um expoente sonoro da resistência palestina contra a colonização israelense. Por que a resistência ucraniana à colonização russa mereceria menos apoio?
Às vezes, as coisas são realmente simples, especialmente agora que a Rússia está se preparando para celebrar o aniversário da sua guerra com uma nova ofensiva. É obsceno culpar a Ucrânia pelos atos russos de destruição, ou deturpar a resistência heroica dos ucranianos como se significasse uma rejeição da paz. Aqueles, como Waters, que conclamam “um imediato cessar-fogo” gostariam que os ucranianos respondessem à agressão redobrada da Rússia com o abandono de sua própria autodefesa. Essa não é fórmula de paz, mas de pacificação.
Vale mencionar — de novo — que a Rússia está contando que os argumentos “neutralistas” vão prevalecer no final. Como o historiador militar Michael Clarke explica, o plano do Kremlin é ficar guerreando até que o Ocidente se canse e pressione Kyiv a apaziguar os russos com a fatia de território que, nesse momento, eles tiverem abocanhado. Rússia está se preparando para uma guerra prolongada que vai incluir a mobilização silenciosa de algo como 600.000 soldados por ano, por um “futuro indefinido”.
Waters está quase certo: a Ucrânia está, de fato, “provocando” a Rússia, ao recusar submeter-se às ambições imperiais, mesmo com chances desesperadas. Neste ponto, o único modo de a Ucrânia parar de provocar seu vizinho agressivo e revisionista seria deitar no chão e render-se. O mesmo, Waters concordaria, é verdade para a Palestina.
Mas render-se ao imperialismo não traz paz nem justiça. Para preservar a possibilidade de obter ambas, devemos depor a pretensão de neutralidade e agir de acordo.]
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Slavoj Zizek é professor de filosofia da European Graduate School, diretor do instituto Birkbeck da Universidade de Londres, e autor de dezenas de livros traduzidos em dezenas de idiomas.