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Por uma iniciativa constituinte na Europa

Por Raúl Sanchez Cedillo e Toni Negri, no Domínio público, em 20/4/2015 | Trad. UniNômade

Último artigo da série dos autores sobre o Podemos e a Syriza, no sul da Europa, que inclui: Podemos precisa ir do keynesianismo ao commonfare , A democracia hoje é selvagem e O eixo Syriza-Podemos por uma Europa democrática

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No último pós-guerra europeu, o sistema democrático constitucional se organizou em todos os países (depois de 1978, também na Espanha, com o complemento das forças nacionalistas e/ou independentistas) ao redor de um modelo de alternância de exercício do governo entre a esquerda e a direita, no marco de um sistema capitalista em evolução e suscetível de reformas — porém não submetido à discussão fundamental: os termos da conferência de Ialta. Este modelo está em crise. De fato, em muitos países europeus já surgiram terceiras vias, que se apresentaram no campo das eleições, e que desbarataram o esquema dual. Sobre isso, seria preciso perguntar se a nova estrutura constitucional da União Europeia não começou a construir-se, precisamente, a partir da previsão de uma crise no modelo constitucional pós-guerra — e, de todo modo, a partir da percepção de uma incontinência já presente no modelo democrático clássico. Aquela estrutura havia se apresentado como garantia para a manutenção de um modelo capitalista de desenvolvimento, frente à decadência de suas formas nacionais estatais. De outro lado, tanto a esquerda quanto a direita já tinham deslizado em direção ao “centro”, construindo formas artificiais de representação e governo, destinadas a um equilíbrio que deveria garantir a estabilidade para o futuro, eliminando assim qualquer dialética entre reforma e transformação.

Em  consequência, hoje a situação está mudando rápido. A crise grega começa a colocar a nu que aquela homogeneidade do poder de mando (composta de “direita” e “esquerda”) exerce uma função sempre num sentido conservador e, não poucas vezes, manifestamente reacionária. Por um lado, a direita considera a Europa um butim próprio. O modo em que atuaram e continuam atuando as direitas até agora majoritárias na Europa mostra que a querem como seu produto exclusivo — uma verdadeira reificação. Por outro lado, se observarmos os governos socialistas, enrolados no bloco centrista que lhes permite administrar interesses parciais, se vê que eles renunciaram a qualquer esperança de renovação. Sirvam de amostra para o fenômeno o penoso haraquiri do ex-premiê Zapatero, do PSOE, em maio de 2010 e a autodestruição do partido socialista grego, o PASOK.

A União Europeia, tal e qual se formou e como se apresenta hoje, governada por um “centro” político, — capaz de levar a cabo ações extremistas e devastadoras em defesa dos equilíbrios capitalistas — está submetida à chantagem e talvez destinada a despedaçar-se. Quanto mais as multidões europeias compreendem que, num mundo globalizado, somente uma organização continental pode permitir a satisfação das necessidades vitais das populações, menos as classes políticas europeias estão dispostas a aceder a uma União política — a menos que seja criada para satisfazer direta e exclusivamente os seus próprios interesses.

Precisamos nos afastar dessa descida e voltar a colocar em jogo a democracia para a construção do projeto europeu. Isso é necessário para que a Grécia sobreviva, para que as forças democráticas espanholas se afirmem e possam ganhar, e para que todos os europeus se reconheçam na Europa e saiam de uma crise e uma austeridade que não só já tornam difícil a subsistência, como também nos impedem de ser livres. Eles podem jogar em ambos os terrenos: no da Europa existente e no de velhos nacionalismos agressivos. Nós, em contrapartida, não.

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Resulta particularmente doloroso o fato que, para falar a favor da Europa, para trabalhar na fundação de um poder constituinte que imponha seu caráter social e sua caracterização democrática com uma perspectiva federalista, hoje seja preciso avançar a polêmica contra boa parte das esquerdas na Europa. Está claro que elas venderam o seu direito de primogenitura. Já em 2005, momento do referendo sobre a Constituição europeia, a cegueira das esquerdas europeias se colocou claramente. O fato é que os socialistas europeus não veem outra possibilidade de fazer política e gerir o poder que não seja no âmbito do estado nação. Essa cegueira sectária nacionalista renasceu (depois de um longo eclipse) e chegou ao auge com a atual crise europeia. Em vez de aliar-se aos movimentos de luta para mudar a realidade da União Europeia, as esquerdas europeias têm se declarado, com frequência, não somente a favor das políticas de austeridade, mas também contra a própria Europa (como, por exemplo, está acontecendo agora na França). As esquerdas estão movidas por um egoísmo corporativo, que está despojando a palavra “esquerda” do pouco esplendor que ainda sobrava. Tanto é assim que esse egoísmo se confunde facilmente com o ódio das forças fascistas contra a União Europeia. Dizem as esquerdas oficiais que a Europa não pode funcionar porque, desde o começo, a um governo político no nascente processo, preferiram-se as burocracias jurídicas: e isso está certo. Dizem também que, numa segunda fase, tentaram-se compassar politicamente economias que tinham um ritmo distinto e às vezes contraditório; porém, sem introduzir, naquele momento, motivos eficazes de unidade programática nos planos fiscal e cultural: e isso está certo. Logo, debaixo dos fogos da crise, não poderiam deixar de fracassar todos os mecanismos de compensação, o que está conduzindo a União e o Euro — precisamente na ausência de qualquer contraforça política — à beira da dissolução, em desdém ante a grande maioria das populações do sul da Europa: e isso está certo.

Mas por que os partidos de esquerda querem nos dar lições quando foi precisamente a visão exclusivamente estatal deles, isto é, o corporativismo dos sindicatos e a traição a qualquer esperança internacionalista, o que nos levou a esta situação em primeiro lugar? A ninguém escapa o fato que a unidade política da Europa constitui o elemento fundamental de seu êxito econômico e civil, dentro de um marco global. Trata-se de uma política cuja promoção corresponderia à esquerda — mas esta confundiu e se corrompeu na aliança com a direita, não somente no âmbito das instâncias de governo nacionais, como sobretudo nas europeias.

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Agora não temos mais tempo a perder. Renovar a integração quer dizer, hoje, abrir uma campanha constituinte, isto significa eliminar o consenso apassivante que, até agora, tem permitido o triunfo das atuais estruturas europeias e a continuação do desastre provocado por suas políticas. Quer dizer desenvolver uma opinião pública que comece a desdobrar uma nova perspectiva constitucional. Por trás da vitória da Syriza e abrigando as esperanças da vitória do Podemos, depois do que em muitas partes da Europa comecem a nascer forças políticas eurorradicais, não custa entender que constituir Europa significa sair de cima dos parâmetros conservadores que, até agora, determinaram as suas estruturas e políticas. Resulta estranho manifestá-lo agora, mas o certo é que, desde a vitória da Syriza, as dimensões interna e externa da União começaram a superpor-se e caminharem de mãos dadas, como estímulo a um regime de maior liberdade e igualdade, como esforço de fazer o “comum”, mais além da dicotomia entre o privado e o público, como um valor reconhecido em cada país da Europa e, ao mesmo tempo, uma pressão que os atravessa a favor de uma integração federal sancionada democraticamente. Trata-se de um processo que está somente em seu princípio, mas que é tendencialmente majoritário. Em qualquer caso, é preciso reconhecer que se insinua um novo espírito constituinte: não seria precisamente a percepção deste fenômeno o que — enquanto uma resposta — tem produzido tanto histerismo e tanta vulgaridade nas mídias dos mandachuvas, nas declarações dos partidos e das burocracias europeias? Há uma nova compreensão de que a dimensão de libertação dentro de cada um dos países precisa conjugar-se com a potência da federação em toda a Europa —  não é exatamente isto o que amedronta as oligarquias nacionais estreitas e ignorantes?

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Num artigo formoso, publicado faz pouco no diário italiano Il manifesto, se recordava o juramento dos revolucionários do Terceiro Estado, pronunciado quando se tornou evidente que os demais estamentos do Ancien régime não poderiam apoiar uma reforma constitucional baseada na liberdade, igualdade e solidariedade. Hoje, as forças democráticas na Europa precisam dar um passo análogo, quer dizer, fazer um juramento constituinte, que permita identificar formas novas de união federal e novas estruturas de unidade econômica no plano europeu, e que recolham em sua base a nova radicalidade democrática expressa de 2011 em diante.

Há elementos de política exterior, jurídicos, econômicos, que fundamentam essa necessidade constituinte — ao que deve corresponder uma decisão política encarnada nos movimentos. Os elementos da política exterior surgem de uma reflexão atenta sobre a colocação da Europa no âmbito global. Hoje, a Europa participa de um bloco de forças agrupadas na OTAN que orienta, de maneira irresponsável, as políticas externas dos países da União. Os interesses das populações europeias estão totalmente subordinados ao poder atlântico. Nesse terreno, assistimos todos os dias a paradoxos injustificados e enredos injustificáveis, entre os quais aparece recentemente o financiamento europeu da guerra ucraniana, ao mesmo tempo que se impede o refinanciamento da dívida grega. Mas a confusão e a passividade dos povos e a opacidade das decisões, dos compromissos e das vilanias em matéria de política exterior, de cada um dos países e da União, são simplesmente indescritíveis: é preciso dizer basta! A irresponsabilidade da relação estratégica e militar, numa época de instabilidade global, representa uma condição perigosíssima que toda iniciativa constituinte terá que levar em conta como prioridade (e aqui se trata, também, de acabar com a violência e o assassinato de pessoas nas fronteiras externas da União).

A Europa, libertando-se do condicionamento atlântico, deve chegar a ser capaz de desenvolver políticas autônomas,, tanto para promover intercâmbios e colocar à disposição do mundo a inteligência coletiva — o general intellect de que falava Marx — construído desde já; quanto para apoiar os povos que seguem oprimidos, quanto para construir uma paz e um desenvolvimento duradouros. Com efeito, não nos esqueçamos que o que está em jogo hoje é a paz.

Em relação às condições jurídicas, o certo é que o impulso em direção a uma estrutura federal de governo das multidões da Europa não pode deixar de representar o objetivo central desta fase constituinte. Somos partidários de um poder constituinte que construa uma federação na Europa. Somos partidários de lançar as bases e fixar o objetivo de um ordenamento federal que recolha, mobilize e consolide os interesses civis, econômicos e morais dos cidadãos de cada um dos estados, numa comunidade de europeus que reconheça, adicionalmente, a cidadania europeia desses cidadãos de segunda e terceira categorias, que é como são tratados os migrantes comunitários e não-comunitários. Sabemos que “federar-se” é difícil porque, na fase atual, exigiria a destruição das oligarquias do governo europeu e, portanto, dos partidos de cada um dos países da União. Mas a federação pode constituir-se apesar desses obstáculos, se recordarmos que não se trata unicamente de uma unidade entre estados, de distintas configurações econômico-políticas, senão um processo em cujo interior se revelam uma nova história da Europa (mais além das guerras do passado) e as virtudes de que ela pode ser capaz (uma riqueza de força de trabalho cognitiva e de trabalho de cuidado, produtora de inovação econômica e civil).

No entanto, sobretudo, temos de insistir ainda mais no fato que, a partir do grau que alcançaram as lutas políticas e sociais, as novas lutas de classe, da organização social do trabalho e da extração capitalista de riqueza, a unidade europeia e o federalismo não podem constituir uma máquina juridicamente intocável, que venha a reproduzir as atuais diferenças de classe. Não pode ser o jogo em que tudo muda para que nada mude, como ocorreu nas transições europeias do fascismo à democracia do pós-guerra, e também nos anos 1980 no caso da transição espanhola. Queremos uma constituição que exija, desde cima, uma governança das liberdades; desde baixo, desde as multidões, um exercício de gestão igualitária na produção e na redistribuição de riqueza. Nos últimos anos, temos assistido à formação na América Latina de novas constituições democráticas que combinaram o pluralismo dos sujeitos com dispositivos de reforças econômica muito eficazes, e que construíram novas solidariedades sociais, iluminadas por um irresistível sentido da igualdade. Não se trata de imitar essas experiências ou de discutir o seu êxito. Trata-se de suscitar e promover uma dinâmica democrática capaz de ganhar o terreno de uma constituição federal baseada no comum. Trata-se de difundir e colocar em prática uma capacidade de construir empresas políticas da sociedade, que combine liberdade e riqueza. Trata-se de eliminar definitivamente todo sentimento de identidade ameaçada, que não produz nada além de nacionalismos ou democracias suicidas em sua reprodução de tipo oligárquico. Trata-se de construir uma Europa justa e unida. Desgraçadamente, não há alternativa. As irrupções democráticas das multidões na Grécia, Espanha e, a seguir, o êxito da Syriza e a esperança do Podemos não são, desde este ponto de vista, nada mais do que um começo, uma ocasião a que é preciso aferrar-se com coragem e inteligência.

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