Republicado de IHU online, da Unisinos.
“As jornadas de junho demonstraram que a multidão existe – e excede. Desperta esperanças, estimula desejos, produz comunidade, devém insurgente. Multiplicidade de singularidades em permanente recomposição, a plebe experimentou nas manifestações seu “devir-multidão”, afirmou-se como “parcela dos sem parte” que recusa não ter parte na riqueza socialmente produzida por ela. E, ao mesmo tempo, mostrou ser a única força capaz de produzir uma outra “pólis” possível, com outros valores, apontando para a instituição de uma nova ordem comum”, escrevem Adriano Pilatti e Giuseppe Cocco, 11-07-2013.
Segundo eles, “as tentativas de neutralizar o impulso de transformação que vem das ruas são tão ilusórias quanto o “consenso” que “vigorava” até junho”. “A insustentável surdez do poder hoje – continuam – se traduz justamente no lamentável frescobol governo x oposição-mídia: ambos os lados se esfalfam pra manter a bolinha das discussões abstratas no ar, enquanto a ventania das exigências substantivas aumenta. Não, essa dança da chuva, esse jogo de cabra-cega à beira do abismo não é o que nos interessa”.
E concluem, afirmando:
“Mais do que o gás lacrimogêneo, o “sal da terra” – essa multidão jovem, potente, criativa, desobediente e irreverente – contaminou as ruas, impondo novas exigências. O futuro da democracia brasileira depende agora de sua abertura a essa potência irredutível”, concluem.
Para Pilatti e Cocco, “os governos Lula-Dilma e o PT acabaram acreditando, de modo narcísico, no que lhes diziam os marqueteiros a partir da “análise” eleitoral das estatísticas macroeconômicas e dos indicadores sociais. Não compreenderam assim a inevitabilidade de um novo ciclo de lutas por direitos”.
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistasGlobal Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-1983), mestre em Ciências Jurídicas – Teoria do Estado e Direito Constitucional – pela Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro (PUC-Rio – 1988) e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ – 2006), com Pós-Doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza (2011). É professor assistente do Departamento de Direito da PUC-Rio, de que foi diretor (2004-2010), e coordenador-geral do Instituto de Direito da PUC-Rio. É assessor jurídico da Reitoria da PUC-Rio. Traduziu o livro Poder Constituinte – Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 – Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).
Adriano Pilatti estará na Unisinos, no dia 2 de outubro, onde proferirá duas conferências, no ciclo Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU: A Constituição no Supremo Tribunal Federal: a (des) construção da democracia brasileira e Vivências e Reflexões sobre o Processo Constituinte: o período pré e pós constituição.
Eis o artigo.
Os levantes de junho fizeram o País tremer e algumas mentes fraquejarem. Afirmaram-se como um movimento potente, autônomo e sem precedentes na escala que alcançou. Para nós, o que de mais inovador e liberador neles se expressou foi a contestação (difusa e confusa, mas vigorosa) de duas dimensões da “pólis”: de um lado, a “política” autista e alienada de seus fundamentos constituintes; de outro, o sequestro das cidades pelo projeto autoritário de sociedade-empresa, que comprime as alternativas de sociabilidade na via única e estreita do consumo pago, e submete os pobres ao calvário dos transportes. Uma reivindicação por serviço público gratuito de qualidade desencadeou o movimento; uma contraditória mistura da tentativa de captura midiático-reacionária das manifestações com a indignação civil ante a repressão brutal e a surdez do poder o agigantou. Agora ele vive um momento de recomposição e relativo refluxo, mas está longe de se ter esgotado.
Marcado pela estreia de toda uma “geração” na ação política direta, o movimento fez das ruas a arena política determinante durante duas eletrizantes semanas. Sem pedir licença ao poder constituído, os “decretos da plebe” (plebiscitos, na origem) determinaram a revisão de aumentos de passagens em muitos municípios. Tudo isso suscitou um amplo e difuso processo de discussão através dos circuitos institucionais e virtuais de informação. Esse debate escapou ao controle do oligopólio midiático, e assim integrou-se no próprio movimento como momento de contra-poder, em que a denúncia e o desmascaramento da manipulação tornaram-se possíveis. A nova composição do trabalho experimentou seu constituir-se em multidão num processo veloz de composição-repulsão de forças. A resistência ao comando e à exploração a levou à tomada da palavra: o verbo se fez carne na potente e criativa cooperação contestatória do trabalho vivo. A fria desrazão das planilhas foi confrontada pela crítica da razão encarnada nos corpos mobilizados democraticamente.
As jornadas de junho demonstraram que a multidão existe – e excede. Desperta esperanças, estimula desejos, produz comunidade, devém insurgente. Multiplicidade de singularidades em permanente recomposição, a plebe experimentou nas manifestações seu “devir-multidão”, afirmou-se como “parcela dos sem parte” que recusa não ter parte na riqueza socialmente produzida por ela. E, ao mesmo tempo, mostrou ser a única força capaz de produzir uma outra “pólis” possível, com outros valores, apontando para a instituição de uma nova ordem comum.
Ao repelir das ruas os olhos e ouvidos do gigante midiático e confrontar a repressão, a multidão reacendeu antigos temores e ressentimentos no “patriciado”: demofobia, agorafobia, macarthismo caboclo. Na reação decorrente, não faltaram relatórios de polícia política travestidos em textos de opinião. Que, na falta de argumentos, ainda hoje se recorra ao estigma “retrô” do “comunismo internacional”, é simplesmente patético. Os movimentos em curso (nos quais tomamos parte como cidadãos, militantes nômades, e intelectuais) lutam pelo direito à mobilidade urbana, à moradia, à educação e à saúde de qualidade, ao próprio corpo. Exigem autonomia para a produção cultural, liberdade de trabalho, tempo livre, fruição comum dos espaços públicos. Protestam contra as remoções de populações pobres e outros desmandos macabros da farra dos megaeventos. Desejam uma polícia que respeite e proteja pobres e manifestantes em vez de massacra-los, um modelo aberto e plural de comunicação de massa, instituições que sirvam à liberação e não ao seu contrário, novas formas de democracia direta. Lutam, enfim, “por uma vida sem catracas”. Nenhuma estratégia de polícia do pensamento vai alterar a natureza dessas lutas.
A maré montante nas ruas criou uma nítida situação de “desentendimento” entre o movimento constituinte e os poderes constituídos, a representação. Era visível a dificuldade de compreensão dos que olhavam o País a partir da Praça dos Três Poderes. À flagrante paralisia seguiu-se o pronunciamento presidencial. Mesmo que parcial e timidamente, ele marcou uma dupla abertura. A primeira foi reconhecer e valorizar as manifestações como índice de vitalidade da democracia brasileira, uma vitalidade que vem “de baixo”. A segunda foi propor um debate participativo sobre o sistema político por meio de uma “constituinte exclusiva”. Construiu-se assim a possibilidade de reconduzir a questão da corrupção ao campo da institucionalidade política, ao modelo de representação, e “levar a sério” a proposição segundo a qual a luta contra a corrupção tem como único terreno possível o da radicalização democrática.
A proposta de constituinte exclusiva foi logo rechaçada, e por várias razões. Por sua inconsistência intrínseca, ao tentar canalizar a expressão da potência emergente nas ruas para uma forma “constituinte-constituída” contraditória em si mesma, com poderes estabelecidos casuisticamente pelo atual Congresso e sob o controle do STF, o que suscitaria controvérsias e delongas. Pela resistência dos partidos aliados ao Governo, que nada querem mudar nas regras que lhes garantem postos governamentais e burocráticos, apostam que o desgaste resultante do movimento incidirá apenas sobre o PT, e esperam que “a coisa passe” Last but not least, pela oposição da direita demofóbica, que viu na proposta presidencial uma tentativa de “venezualização” do processo, e deu ampla vazão à sua paranoia através da grande mídia. Direita e mídia não querem reduzir a corrupção da política, mas apenas usá-la, como de hábito, para reproduzir seu poder antidemocrático. Saudosas das formas institucionais do liberalismo oligárquico, elas buscam amplificar o duplo mecanismo de corrupção da democracia: a concentração perversa de poder econômico e a inversão da relação entre poder constituído (os representantes) e poder constituinte (o “demos”).
As reações negativas levaram a presidente a recuar da proposta constituinte para a plebiscitária. A proposta do plebiscito também é problemática, abre temerariamente a porta ao retrocesso contra o pluralismo que é o “voto distrital”, e enfrenta a mesma oposição conservadora, com eco no TSE. A oposição à direita contrapõe o referendo como alternativa. Com ele, quer derrotar o Governo e inverter tudo, convocando o “povo” apenas para aprovar propostas oriundas das negociatas internas à representação, que as ruas acabam de criticar violentamente. Do ponto de vista da radicalização democrática, o povo deveria tomar a palavra nos dois momentos: fazendo as grandes opções em plebiscito, e aceitando ou não sua normatização em referendo.
As tentativas de neutralizar o impulso de transformação que vem das ruas são tão ilusórias quanto o “consenso” que “vigorava” até junho. Elas encontram seus arautos em “formadores de opinião” que veem no plebiscito uma ameaça “chavista”, cuja base seria a teoria negriana do poder constituinte. Ora, é um equívoco constrangedor confundir a perspectiva constituinte (da multidão em luta por direitos) com a justificação de eventuais estratégias plebiscitárias governamentais de cunho formal. A insustentável surdez do poder hoje se traduz justamente no lamentável frescobol governo x oposição-mídia: ambos os lados se esfalfam pra manter a bolinha das discussões abstratas no ar, enquanto a ventania das exigências substantivas aumenta. Não, essa dança da chuva, esse jogo de cabra-cega à beira do abismo não é o que nos interessa.
O vil intento de incriminar livros por fenômenos que têm origem na tensão comando-resistência evoca a Era das Trevas e bem revela os usos autoritários de uma “liberdade de expressão” que é privilégio de poucas famílias e seus amanuenses. “Poder Constituinte – um ensaio sobre as alternativas da modernidade”, de Antonio Negri, é um sólido e erudito tratado de filosofia política que interpela cinco séculos de pensamento e práticas constituintes e seus avessos, com uma profundidade analítica consensualmente reconhecida pelos melhores no assunto. Até mesmo os detratores do autor reconhecem ser esse seu melhor trabalho teórico, e uma referência necessária aos debates que enfrenta. Se alguém só conseguiu ler ali um mirabolante “manual prático de chavismo plebiscitário”, isso fala apenas do singular leitor, não da obra.
No entanto, para refletir sobre os acontecimentos de junho e a situação política resultante é pertinente retomar, sim, mas nos seus devidos termos, nossa perspectiva crítica sobre os experimentos de constituição de governos dos/pelos/para os “de baixo” na Venezuela e na Argentina. Ela permite compreender porque consideramos a experiência dos governos Lula mais fecunda. O que ali nos interessava era identificar a trajetória mais aberta ao poder constituinte ou, ao menos, qual governo desenvolvia políticas mais permeáveis aos processos de mobilização social por direitos. Nossa simpatia pelos governos Chavez e Kirchner nada tinha a ver com as “personas” políticas de seus líderes ou com seus improváveis modelos, mas com as lutas de classe, as insurgências, os movimentos de liberação que os levaram ao poder, e com os quais os novos governos se relacionavam.
O que nos interessava nos experimentos sul-americanos era o momento constituinte e o quanto ele continuava aberto, renovado e presente nos novos governos. Não as superstições plebiscitárias voltadas a legitimar reformas constitucionais decididas de cima para baixo, mas as questões substantivas de apropriação da riqueza comum e ampliação/efetivação de direitos: desde a reversão da renda do petróleo venezuelano para os mais pobres, até a política de direitos humanos desencadeada pelo movimento das madres y abuelas de la plaza de mayo. Não eram os sucessos eleitorais de Chavez e Kirchner que nos mobilizavam, mas os momentos constituintes dos quais nasceram e dependiam: desde o levante Que se Vayan Todos em 2001 e a força dos movimentos na garantia da efetiva punição dos crimes da ditadura argentina, até o Caracazo e o levante multitudinário contra o golpe em 2002 na Venezuela. Algumas dessas dimensões também reencontramos nos momentos constituintes bolivianos e equatorianos.
Para nós a experiência brasileira foi mais interessante, não por ser mais (ou menos) “socialista”, nem por ter um “modelo” claro a ser implementado. O que nos interpelava na “anomalia” brasileira era a justamente a ausência de modelo e de qualquer dimensão socialista. Uma trajetória totalmente interna ao processo de integração do capitalismo global e, ao mesmo tempo, aberta aos processos constituintes. Em certa medida, isso também explica a boa fortuna da multifacetária Constituição de 1988, inicialmente enjeitada pelas elites e pela esquerda “purista”, hoje objeto geral de disputa em torno de seus sentidos determinantes.
Paradoxalmente, a ausência de modelo (que “frustrou” e “desiludiu” os setores mais esquerdistas do próprio PT) tornava o governo Lula mais democrático e permeável às lutas e à cidadania, mais aberto ao poder constituinte. No horizonte cerrado das transformações sociais impostas pelo novo capitalismo, o governo Lula abria brechas ou deixava que as brechas se abrissem; re-significava os processos de inclusão dos excluídos enquanto tais, ao mobilizar e remunerar o trabalho vivo fora da tradicional relação salarial fordista. Isso lhe rendia críticas, oriundas tanto da esquerda “pragmática” (eventualmente oportunista), com seus “projetos de nação” e suas “políticas de Estado”, quanto da esquerda “radical”, que exigia e ainda exige uma mirífica desconexão do circuito global através de um socialismo estatista e autárquico – aliás, essa é a ilusão “maior” da presidente Dilma, o neodesenvolvimentismo.
Provavelmente nem Lula nem o PT dimensionavam as consequências que a multidão dos jovens, índios, negros, gays, mulheres e trabalhadores extrairia daí, não apenas em sua mobilização produtiva, mas nas transformações que é capaz de ensaiar a partir do desencadeamento dos processos de inclusão. A garantia de direitos mínimos não aplaca o poder constituinte, antes desencadeia uma lógica expansiva de lutas que vão além da oferta de ascensão a uma pobreza menos penosa garantida pelo Estado. Os governos Lula-Dilma e o PT acabaram acreditando, de modo narcísico, no que lhes diziam os marqueteiros a partir da “análise” eleitoral das estatísticas macroeconômicas e dos indicadores sociais. Não compreenderam assim a inevitabilidade de um novo ciclo de lutas por direitos.
A situação é complexa, cheia de incógnitas e não isenta de riscos. Os poderes constituídos (partidos e magistraturas, Governo e oposição, e as respectivas instituições) não parecem até aqui nem aptos nem abertos, seja à compreensão do sentido profundo do levante democrático da multidão, seja a receber seu influxo e deixar-se atravessar por ele, renovando-se a partir dos fundamentos, “retornando aos princípios”. Muito ou quase tudo vai depender da posição do Governo diante do movimento, das relações que venham ou não a (r)estabelecer entre eles.
O paradoxo desse (re)encontro possível entre a potência constituinte (a “virtù”) e o Governo é que dele depende a “fortuna” das forças que hoje o controlam, particularmente do PT. Se Governo e PT apostarem no refluxo definitivo do movimento e (como até aqui) numa solução formal de mera “adequação” da representação constituída, as consequências serão muito negativas para ambos. Se, ao contrário, se abrirem corajosamente aos momentos constituintes que se multiplicam, retomando e ampliando a política dos pontos de cultura, contrapondo-se às políticas de remoções dos pobres, repensando os megaeventos, discutindo a democratização da comunicação, propondo a desmilitarização da segurança pública, a tradução política da potência do levante será uma inovação radicalmente democrática.
Mas o levante e seu poder constituinte já estão dados, e basta a força de atração do ano de 2014 para indicar sua irresistível retomada e continuidade. A urgência é do poder constituído, da representação: se não souber interpretá-lo adequadamente, será atropelada por ele, e esse choque tende a produzir efeitos contraditórios, positivos e negativos. É preciso multiplicar os esforços de reflexão e mobilização para evitar que o desafio constituinte degenere em impasse político, abrindo caminho a mais um “termidor”. Mais do que o gás lacrimogêneo, o “sal da terra” – essa multidão jovem, potente, criativa, desobediente e irreverente – contaminou as ruas, impondo novas exigências. O futuro da democracia brasileira depende agora de sua abertura a essa potência irredutível.