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Sobre a guerra híbrida

Bruno Cava

Reli a resenha do Jonas Medeiros sobre “Guerras híbridas; das revoluções coloridas aos golpes”. O texto ganha uma tonalidade mais forte à luz da invasão da Ucrânia. A resenha é importante, por um lado, porque esclarece a ligação entre as Guerras Híbridas e o rechaço ao ciclo de lutas exprimido pelas primaveras árabes (2010-16). Por outro lado, pois aponta para a tendência de putinização da esquerda brasileira que se aproveita do mesmo quadro analítico para a dupla condenação articulada: dos levantes de Junho de 2013 e do impeachment do governo petista em 2016.

Guerra Híbrida é um conceito bastante controverso na teoria da estratégia. A literatura é repetitiva e o conceito pode significar muitas coisas ou quase nada. Surgiu no contexto da reorientação das Forças Armadas norte-americanas, na sequência aos atentados de 11 de Setembro de 2001. A Guerra Híbrida fora ali invocada na forma de um grande alerta ou perigo, endereçado aos ‘estrategas’ e ‘policymakers’ do país. Com o fim da Guerra Fria, se argumentava, de nada adianta a superioridade acachapante dos Estados Unidos em meios de guerra, se o inimigo no século XXI era outro, capaz de renivelar as suas desvantagens comparativas. Frente ao inimigo disperso em rede, acêntrico tal qual um enxame, e podendo emergir de surpresa, a qualquer momento e em qualquer lugar, era preciso adaptar doutrinas, métodos e equipamento. Para estar à altura dos desafios da nova guerra assimétrica e não-linear que se descortinava.

Originalmente pensado com base nos referentes da Al-Qaeda, Hezbollah ou Talibã, o replanejamento estratégico em resposta à Guerra Híbrida também deveria ser híbrido. E deveria mobilizar todas as ferramentas da caixa: militares, econômicas, financeiras, diplomáticas, jurídicas, cibernéticas e informacionais. A projeção de poder dos EUA deveria hibridizar-se, conjugando intervenções convencionais, a céu aberto e em nome próprio, com uma miríade de microbatalhas mais elusivas, por meio de terceiros ou mercenários, debaixo do umbral da denegabilidade. O objeto da resposta à Guerra Híbrida deveria englobar a população como um todo, num misto coordenado de ações estatais e paraestatais, contra-insurgentes e antiterroristas, a fim de conquistar corações e mentes e transformar a correlação de forças, desde o interior do campo das relações de poder. Com a Guerra ao Terror, a população é o alfa e o ômega das táticas, de sua eficácia e durabilidade.

O leitor repare aqui em ação, mais um vez, o dilema da segurança: para proteger-se do novo perigo aflorante com a Guerra Híbrida, se tornou preciso que o próprio estado ameaçado retomasse a iniciativa e se antecipasse na hibridação. É assim que, decisivamente, com a Guerra ao Terror, os EUA assumem a dianteira do ajuste biopolítico em defesa da sociedade, como imposição preventiva ante um exterior cada vez mais ameaçador.

Essa abordagem de meados dos anos 2000 não foi tão criticada dentro da comunidade de think tanks americanos por ser um diagnóstico errôneo do complexo de fatos. O diagnóstico estava correto em suas conclusões. A abordagem das Guerras Híbridas era criticada antes por pretender reinventar a roda, visto que pouco ou nada inovava em relação à arte da guerra de praxe. Recheada de frases de efeito e vendida como a próxima Big Idea, no fundo a conceitualização da Guerra Híbrida parecia ignorar o fato que toda guerra sempre havia sido híbrida. Nunca foi pura, convenhamos, em coordenadas jurídicas vestfalianas.

O que mudava na verdade eram os referentes adotados pelos formuladores (a Al-Qaeda, o superterrorismo) e a definição dos inimigos (nem internos nem externos, como fita de Moebius), em tempos de Guerra ao Terror. Esta crítica insider estava correta. Poderíamos ir mais longe, mas basta lembrar como, na Guerra Fria, os limites entre guerra e paz já haviam se esfumado em zonas cinzentas; de modo que atores tocavam as suas agendas de interesses nacionais por procuração. Usavam e abusavam de operações psis, desinformação sistemática, conflito irregular (guerrilhas) e/ou intervenções inatribuíveis e plausivelmente denegáveis (black ops). Para dar só um exemplo: a guerra entre UNITA e MPLA em Angola, entre 1975 e 1989.

A ideia mesma de uma Guerra Fria — assim como da Guerra ao Terror, às Drogas ou à Pobreza — envolve a natureza permanente e ubíqua dos combates. Hannah Arendt, em “Sobre a Revolução”, escreveu como na Guerra Fria o que se vivia era uma guerra civil mundial entre dois blocos contrapostos, americano e soviético. A diferença estava no grau de intensidade da guerra, maior ou menor em dado momento e em certa zona do globo, porém, todo mundo estava em guerra de uma forma ou de outra.

Na passagem para a década de 2010, o Frankenstein conceitual da Guerra Híbrida vai adquirindo uma conotação diversa. A ameaça antevista pelos teóricos da estratégia aos poucos vai deslizando do foco em inimigos fluidos como a Al-Qaeda, para estados-nações adversários que fluidificavam as táticas. Incorporando os gradientes nuançados de intensidade e atribuição das operações, as potências nacionais é que agora estariam revezando táticas convencionais e irregulares, militares e cibernéticas, psicológicas e informacionais. Ainda assim, mesmo com este deslizamento, quem realiza Guerra Híbrida é sempre o outro, o adversário. Nenhum estado assume a priori que adotou os funcionamentos da Guerra Híbrida como método. No discurso legitimador, é sempre um perigo de fora, uma ameaça mutante externa, o que nos constrange à adaptação.

Então, se na guerra pós-moderna contra o inimigo difuso proliferavam os limiares de guerra para além de centros transcendentes de poder, nesta nova fase, nos 2010s, os próprios estados se tornam núcleos de proliferação. Nesses termos, a Grande Estratégia nacional norte-americana passa a alertar para o deslocamento doutrinário tanto da República Popular da China (RPC) quanto da Federação Russa (FS). A justificativa era a seguinte: essas potências assumiam o caráter híbrido para mitigar a defasagem em tecnologia e armamentos em relação aos americanos. O objetivo delas era compensar a desvantagem no cotejamento direto de forças mediante a maior flexibilidade, mobilidade e integração dos instrumentos nacionais de poder. Noutras palavras, isto significa, de uma parte, assumirem como princípio bélico a multiplicação das frentes do conflito interestatal, e de outra, calibrar cuidadosamente o grau de envolvimento do governo, do mais ao menos direto, com vistas a explorar o máximo das vulnerabilidades do oponente sem com isso expor as suas próprias (o que poderia ocorrer, por hipótese, com uma escalada prematura das tensões). Dá-se o gradual deslocamento das inquietações do Pentágono, da Guerra ao Terror para às do Conflito com Quase-Pares (near-peers).

Até aqui parece que estou somente compilando a história das ideias, como um arquivista neutro. Trago então o elemento diferencial. O que acontece na virada da década de 2010? Deflagrada com a bolha das hipotecas norte-americanas e a crise da dívida soberana europeia, acontece a crise do capitalismo global de 2008-12. No interior das bolhas financeiras, diferente do que cogitam os críticos do fetichismo, não é que não haveria nada, a ficção do capital financeiro ou o vazio da mercadoria. Dentro das bolhas há o proletariado precarizado e globalizado, de novo tipo, que reabre a história. Ele se revolta em multidão, na lógica dos contágios transversais, a partir de dezembro de 2010, no que ficou conhecido como Primaveras Árabes (em mais de 80 países). Em 2013, esse ciclo de lutas eclode simultaneamente, em praças de centenas de cidades, na Turquia (em maio), no Brasil (junho) e na Ucrânia (novembro).

Neste ponto de virada, com a fermentação das lutas globalizadas (como em 1848 ou 1968), a ideia vaga e redundante das Guerras Híbridas é ressignificada. Os estrategas da RPC e FR leem a conjuntura de crise neoliberal como sinal inequívoco do declínio do império norte-americano e diagnosticam um Momento Eurasiano, a ser ocupado e aproveitado. Ideologicamente, é a contestação de um inimigo pervasivo chamado Ocidente, seus valores e liberdades. Segundo esta leitura axiológica (Ocaso do Ocidente) e geopolítica (Fim da Pax Imperial Americana), o Bloco Ocidental capitaneado por Washington faria de tudo para reagir à conjuntura anunciada e não partilhar o mundo com os protagonistas em ascensão.

É por isso que, no mapa redesenhado pela doutrina bélica russa na década passada, as potências ocidentais é que passaram a adotar as Guerras Híbridas. Por quê? Porque os ocidentais apelam para táticas assimétricas e não-lineares a fim de prolongar a posição hegemônica num mundo multipolar. Mas, com a crise e a ascensão dos novos protagonistas, eles não teriam mais direito a pretender supremacia. Para não largar o osso como deveriam ao lume da correlação real de forças, e jamais o compartilhar com a Eurásia emergente (também seria por racismo), os americanos estariam assumindo as Guerras Híbridas para negar a nova conjuntura de fato. A consequência natural, do ponto de vista dos estrategas russos, é a exigência da Rússia em adaptar-se à ameaça, adaptando a doutrina do emprego da força e a estratégia maior de inserção na fase da globalização em xeque.

Estamos em 2012. Xi Jinping assume o controle do PC Chinês e do governo. Na Rússia, o país passa pelos maiores protestos de massa desde o fim da URSS, com ocupações de praças e contestações da longevidade de Putin no poder do país. Em fevereiro de 2013, o general Valery Gerasimov escreve um artigo-chave, que indica o desafio da segurança da Rússia para o futuro. Embora de maneira assistemática, o arcabouço conceitual das Guerras Híbridas aí é reatualizado. O Ocidente é quem conduz a GH contra a justa ascensão da RPC e da FS e o faz por meio de instrumentos indiretos, tais como a instigação de “revoluções coloridas”, interferência nas eleições, medidas econômicas e guerra informacional.

É curioso, porque na leitura de parte minoritária da esquerda brasileira, as Guerras Híbridas se manifestavam na repressão ao ciclo de lutas das primaveras pela via americana da Contra-Insurgência. Quer dizer, a guerra pós-moderna, a guerra permanente e ubíqua dirigida contra o inimigo difuso, na verdade, nada mais era do que a guerra de classe. O insurgente passava a ser todo e qualquer manifestante, mesmo potencial, sobre o qual se abatiam as tecnologias inteligentes (smart) e as estratégias de cooptação social para conquistar corações e mentes. Toda a formulação e experiência assimilada nas operações da Guerra ao Terror, no Iraque ou Afeganistão (ou Haiti), seriam agora retraduzidas para conter a reemergência das lutas. Um marxista heterodoxo, mas ainda com um grão antiamericano, intitulou em 2014 um artigo marcante: “Depois de Junho a paz será total”. É que, com a importação das leis antiterrorismo e das tecnologias contra-insurgência aprendidas com o mainstream da segurança globalizada, o estado conduzirá a Guerra Híbrida para pacificar o país e propiciar o ambiente para o ‘business as usual’. Com essa leitura, antecipava a recomposição petista depois da reeleição de Dilma, em 2014, através dos projetos sociais e da transferência de renda como integrantes dessa dinâmica de contra-insurgência normalizada. Essa a leitura do Paulo Arantes, por exemplo.

Outro filete ainda mais minoritário da esquerda heterodoxa, na rede Universidade Nômade, já em 2014 apontava na pacificação de Junho nem tanto a importação dos mecanismos armados de securitização adotados pelo establishment policial-neoliberal. Enxergava já em embrião a putinização da própria esquerda, que participou ativamente na contenção da revolução colorida em Pindorama. Embora não chamasse pelo nome, denunciava a Guerra Híbrida, conduzida não pelos manifestantes e suas linhas organizativas tênues, mas pelas forças da repressão. Mediante campanhas de desinformação e mangueira de narrativas ad hoc, buscou-se atribuir aos protestos a manipulação por poderes demiúrgicos (os EUA, o Neoliberalismo, o Capital Rentista Financeiro etc) ou teorias conspiratórias sobre financiamentos e apoios estrangeiros.

Num segundo nível de atuação da Guerra Híbrida, do geopolítico, dizia-se que mesmo que os manifestantes fossem espontâneos e não diretamente manipulados, o “sentido objetivo” (a expressão dialético-estalinista por excelência) dos protestos remava contra a direção da luta de classe segundo o quadro geral da História (maiúscula, por favor). Quer dizer, naquele momento, o lado certo do sentido histórico-objetivo seria compor uma frente única e entrincheirar-se com o governo petista, a expressão local e possível da contra-hegemonia representada pela ascensão da China, da Rússia e de seus respectivos modelos de capitalismo administrado e iliberal. Na ‘big picture’ do esquematismo dos inteligentes e dos filmes de Oliver Stone, as centenas de milhares, milhões de indignados nas ruas e redes eram todos idiotas úteis; justos eram os regimes de Muammar Qaddafi, Bashar Assad e Nursultan Nazarbayev.

Quando, de maneira certeira, Jonas Medeiros assinala o caráter não apenas conservador, mas demofóbico e estadocêntrico do discurso das Guerras Híbridas, está pegando esse delta nevrálgico, em que se entrecruzam as tendências geopolíticas na crise do capitalismo. Para os autores do livro resenhado, assim como para a cúpula ideológica da Federação Russa, a alternativa possível à crise da década de 2010 não estava no ciclo de lutas. Essas seriam revoluções coloridas que, sem agenda clara ou liderança atribuível, não passavam de instrumentos de condução dos valores liberais, da cosmovisão ocidental ou dos interesses diretos da tentativa americana de recuperar a hegemonia erodida. As Guerras Híbridas são mobilizadas para assegurar a deslegitimação do caráter inovador dos protestos e da própria noção que existiria um ciclo novo de lutas. Tudo isso seria apenas efeito de superfície de um mundo capitalista ocidental desesperado com a erosão da hegemonia. Ou seja, seriam revoltas reativas, facilmente conjugáveis com os planos de condução da guerra híbrida: desestabilização de governos, lawfare e campanha informacional.

Medeiros acerta ainda quando constata o valor dos valores dessa análise: a estabilidade dos governos. É uma teoria não só estadocêntrica, como estatólatra, pois compreende que a manutenção dos governos é o valor maior, mesmo quando ele se volta contra seus próprios cidadãos, mesmo quando eles protestam e exercem o direito (reconhecido no liberalismo clássico!) de resistência e tumulto. Daí é um passo: as “revoluções coloridas” levaram às tentativas de golpe de estado articuladas à agenda ocidentalizante, todas na mesma esteira. Esse enquadramento de narrativas se torna tão forçado que vale para trás e para a frente. Então, retrospectivamente, a Revolução da Escavadeira na Sérvia, que destituiu Milosevic (2000), bem como as Revoluções Laranja na Ucrânia (2004) e Rosa na Geórgia (2003), são jogadas no mesmo saco do que as Primaveras Árabes (2010-15), a Maidan (2013-14) ou os mais recentes protestos em grande escala na Armênia (2020), Belarus (2021) e Cazaquistão (2022). Não importa. O objetivo é a estabilidade dos regimes ameaçados. Toda e qualquer manifestação se torna instrumento híbrido ou, por “sentido objetivo”, da agenda do neoliberalismo. Em última instância, mesmo manifestações a favor do governo contestado são indesejadas e suspeitas — como estamos vendo na Rússia hoje. O antigo mote. Não é hora de manifestar; a hora é de apoiar a luta possível conduzida por quem sabe, de cima pra baixo.

Ainda elogiando a resenha em meio à atmosfera sombria do presente, Jonas anota também como, no caso brasileiro, o encaixe das Guerras Híbridas não é suave. Na Ucrânia da Maidan, a repressão levou à massificação do tumulto a ponto de inviabilizar as condições políticas do governo, como havia acontecido na Tunísia e no Egito, em 2011. No caso ucraniano, no auge da radicalização dos protestos, o presidente pró-Putin fugiu do país e foi votado um impeachment relâmpago pelo parlamento, o que imediatamente levou ao Bloco Eurasiano a declarar golpe de estado. Já no caso brasileiro de Junho, o governo federal não caiu, houve eleições regulares em 2014 e a presidente foi inclusive reeleita. Para encaixar bem a narrativa-mestre das Guerras Híbridas, foi preciso ligar mecanicamente as causas e efeitos de Junho de 2013 até o impeachment de 2016, como se um tivesse levado ao outro. Apesar de incongruente em muitas camadas (ver o meu “18 de brumário brasileiro”), essa amarração encontrou enorme repercussão na esquerda brasileira. Pois permite tanto condenar manifestações não-aparelhadas, em pleno mandato do partido que se coloca à esquerda, como irresponsáveis e manipuláveis; quanto inocentá-lo de todas as culpas e vacilos que haviam contribuído para fermentar os protestos em primeiro lugar. Deixo para um futuro post discutir o quanto os argumentos contra a Lava Jato e o movimento social anticorrupção vinham reforçados das alegações de Guerra Híbrida (o lawfare, a ligação com os EUA, a campanha informacional).

O que vale destacar, de todo modo, é como uma teoria que surgiu vaga e redundante, depois ressignificada na virada da década de 2010, se tornou ela mesma o veículo do que pretendia combater: desinformação, propaganda e narratocracia. E como as linhas gerais dessa matriz de análise, que implicam uma sensibilidade própria, vão muito além dos jovens tankies/neoestalinistas das redes sociais, se ramificando por um campo amplo das esquerdas nas universidades, instituições de pesquisa e partidos políticos. Uma matriz de análise que, a título de promover um mundo multipolar e contestar o Neoliberalismo (maiúscula de novo), acaba aderindo voluntariamente, até entusiasticamente, à atmosfera de pós-verdade ou de campo de batalha das Guerras Híbridas, o que dá no mesmo. Como toda boa teoria de análise política confeccionada de cima e de fora dos antagonismos, isto é, como um enlatado que podemos simplesmente consumir, ela já vem equipada com sua própria boa consciência. O quadro geral superior que nos confere a aura de inteligência da geopolítica e a auréola de pertencer ao lado certo da história. O que explica tantos Oliver Stones tuitando e comentando pelas redes.

Chegando finalmente na invasão da Ucrânia em 2022, que não é um fator distante nem alienígena às preocupações brasileiras, ainda menos em ano eleitoral. Segundo a matriz narrativa das Guerras Híbridas, Putin não está agredindo o país vizinho. Nessa lógica, ele está simplesmente elevando o batente de uma guerra preexistente, da condição não-convencional e denegável para a convencional e atribuível, assim recalibrando os níveis e as escalas da resposta russa à agressão híbrida conduzida pelo Ocidente. Essa guerra precede a entrada das tropas em 24 de fevereiro.

Primeiro, porque nada mais é do que a continuidade da Guerra Fria, que só terminou no sentido da derrota do modelo socialista, mas não do império russo. Essa história seria de longa duração, envolve como que forças estruturais da geografia, e então Putin está apenas reivindicando o que lhe fora tomado sem direito, sobretudo agora, que a Rússia se reergueu e é mais do que justo participar da partilha global. Segundo, porque a Rússia era parte da dita guerra civil ucraniana e sofreu em seus interesses com o “golpe” de 2014, decorrente de mais uma revolução colorida instigada, manipulada e comandada desde Washington. Terceiro, porque o “dado estrutural” (nas palavras de Celso Amorim), foi o avanço da OTAN na direção a Leste, descumprindo promessas sagradas aos antigos líderes russos e intervindo no perímetro natural de segurança do país. Tremenda inversão entre agressores e agredidos, digna das piores práticas de culpabilização das vítimas.

Portanto, é isso que ouvimos por aí, Putin teria sido forçado, por mecanismos históricos e estruturantes mais profundos, mais inteligentes, a reagir. Sua motivação é tripla: por reposicionamento contra-hegemônico, por resistência ao golpe neoliberal e por… (NATOxplaining). Essa mesma lógica pode legitimar qualquer repressão a manifestações futuras e tumultos que ponham na berlinda a governabilidade, ou legitimar intervenções em todo o espectro, desde a propaganda ‘low profile’ às agressões armadas, por países ou instâncias de governo que invoquem estar participando da Nova Guerra Fria. Diferentemente dos argumentos pró-americanos, no Momento Eurasiano, as revoluções não são coloridas apenas porque espontâneas e manipuláveis, de “fraca vontade”, como também porque refletem valores liberais ou liberdades individuais. Daí a conotação homofóbica quando Putin declare seu desprezo pelas revoluções coloridas, ou quando prometa remover “neon4z1s e maconheiros” do governo.

Por último, a única ressalva a admitir-se é que a Rússia de Putin trabalhou muito nas narrativas, mas pouco na efetividade das Guerras Híbridas. Se Putin tiver de negociar diretamente com Zelensky, isto será ainda pior para a narrativa do Kremlin, que esperava sentar à mesa com Biden mais Xi e, como na época da Guerra Fria, realizar uma partilha de alto escalão entre superpotências. O que se constata com o encerramento da primeira fase da invasão é o fracasso em obter resultados nos termos da sua lógica estratégica declarada: usar todas as ferramentas da caixa e não apenas a marreta. Com exceção ao público interno, que não é o foco da Guerra Híbrida, a Federação Russa vem falhando em promover a guerra informacional, cibernética ou de calibração dos níveis de atuação e das zonas cinzentas. No quesito hibridação, dentro dos termos desenhados pela doutrina russa, a Ucrânia resistente liderada por Zelensky está vencendo em praticamente todos os fronts.

Nos próximos meses, a Federação Russa pode bem resolver a contenda, no campo convencional mais duro, pois os seus exércitos têm o hábito de avançar mesmo apanhando. Eu não sou otimista de nada, pelo contrário, penso que todos perdem, e as populações civis, vitimadas pelos invasores, perdem muito mais do que todos. Mas a Ucrânia obstinada mostrou que na guerra em múltiplas franjas e múltiplos níveis, a capacidade de coordenação e controle é tão ou mais importante do que os números brutos. É nesse aspecto que, mais do que deficiência de motivação, as forças russas padeçam de um outro problema, a verticalização de poder, que não consegue equiparar-se à multidão organizada de dentro, enquanto princípio imanente, como General Intellect. Eis aí, quem sabe, a verdadeira inovação.

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