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As duas faces do Apocalipse

As duas faces do Apocalipse: uma carta de Copenhaguei

por Michael Hardtii

 

RESUMO: A partir da participação nos protestos à margem da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, este artigo se propõe a analisar as diferenças entre as pautas e formas de ativismo de movimentos anticapitalistas /antineoliberais e movimentos ecológicos. Toma por eixo a produção do comum e as distintas abordagens que as formas de ativismo assumem em relação a ele, para examinar como o comum é visto como domínio social/econômico ou ecológico. As antinomias decorrentes das duas concepções do comum são desdobradas em termos de limite/ilimitação, lógica da escassez/abundância, conhecimento que baseia as lutas e temporalidade. O fio condutor do artigo é perscrutar estratégias que permitam um plano de composição entre os movimentos na distância de suas diferenças mesmas, como potencialização das lutas, no contexto da produção biopolítica.

 

PALAVRAS-CHAVE. 1. Comum. 2. Ambientalismo. 3. Movimentos sociais.

 

Em dezembro de 2009, viajei a Copenhague para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Não compareci a nenhum dos encontros oficiais no Bella Center, onde a conferência estava baseada, mas participei numa série de atividades fora da conferência, em protestos contra as ações (e mais importante, as inações) dos participantes oficiais. Haveria muito a dizer sobre as táticas de protesto empregadas em Copenhague, bem como sobre a estratégia de protestos contra cúpulas em geral, mas os eventos me levaram, primeiramente, a reflexões teóricas sobre a relação entre dois componentes predominantes dos protestos: movimentos sociais anticapitalistas e movimentos sociais que colocam a questão da mudança climática. Esses dois grupos de movimentos compartilham uma ligação profunda, me parece, no fato que eles estão concentrados na gestão do comum, que rapidamente está se tornando o terreno central da luta biopolítica, ao longo de uma variedade de contextos políticos. Ainda assim, esses movimentos procedem cada um com uma relação específica ao comum, e mesmo chegam a focar em formas diferentes do comum, produzindo uma série de antinomias conceituais e de desafios políticos. As interações entre os movimentos ativistas, ao redor da Cúpula de Copenhague, foi para mim a primeira oportunidade de ver claramente e trabalhar através de algumas dessas antinomias e desafios.

As diferenças políticas primárias entre os movimentos, a meu ver, como as antinomias que até certo ponto se sustentam por trás deles, decorrem do fato que eles focam em formas distintas do comum, formas que têm qualidades dissimilares. Por um lado, para os movimentos da mudança climática e ecológicos em geral, o comum se refere primariamente à Terra e seus ecossistemas, inclusive a atmosfera, oceanos, rios e florestas, bem como todas as formas de vida que interagem com eles. Movimentos sociais anticapitalistas, por outro lado, geralmente entendem o comum em termos de produtos do trabalho e criatividade humanos, que compartilhamos, tais como ideias, conhecimentos, imagens, códigos, afetos, relacionamentos sociais e coisas do tipo. Esses bens comuns estão se tornando cada vez mais centrais na produção capitalista — um fato que tem uma série de consequências importantes para os esforços de conservação ou reforma do sistema capitalista, assim como aos projetos de resistir a ele ou derrubá-lo. Como primeiras aproximações, se podem chamar esses dois campos de: comum ecológico e comum social/econômico; ou comum natural e artificial, — embora essas categorias rapidamente se mostrem insuficientes.

Existem pelo menos dois aspectos essenciais em que esses dois campos são animados por lógicas contrastantes. Primeiro, enquanto a maioria dos discursos ecológicos a respeito do comum ressaltam os limites da Terra e das formas de vida que interagem com ela; as discussões das formas sociais ou artificiais do comum geralmente se concentram na natureza aberta, ilimitada da produção do comum. Segundo, enquanto muitos discursos ambientalistas desdobram uma esfera de interesse muito mais ampla do que os mundos animal e humano; os discursos sociais/econômicos geralmente mantêm os interesses da humanidade como centrais. Minha desconfiança é que essas aparentes oposições vão eventualmente cair depois da investigação, indicando complementaridades potenciais, e não somente relações contraditórias entre as formas de ação política requeridas para cada caso. Mas se exige muito trabalho até chegar a esse ponto.

Antes de olhar mais de perto as diferenças, entretanto, e os desafios políticos que elas colocam, quero permanecer brevemente na questão das conexões existentes e potenciais entre os movimentos visando ao comum. Em muitos aspectos, porém não em todos, as duas roupagens do comum funcionam de acordo com a mesma lógica, e isso é primeiramente o que constitui a base para uma ligação profunda entre os diversos movimentos. Ambas as formas de comum, por exemplo, desafiam e são deterioradas pelas relações de propriedade. Adicionalmente, talvez como corolário, o comum em ambos os domínios confunde as medidas tradicionais de valor econômico, e impõe o valor da vida como a única escala válida de valoração. De fato, as divisões entre o ecológico e o social se tornam nebulosas do ponto de vista biopolítico.

A discussão teórica deve começar estabelecendo a centralidade do comum, que é muito mais avançada e difundida no pensamento ecológico do que nos outros domínios. Não só geralmente compartilhamos os benefícios da interação com a Terra, o sol e os oceanos, mas também somos afetados por sua degradação. A poluição do ar e da água não está confinada ao lugar em que é produzida, claro, e não está limitada por fronteiras nacionais; a mudança climática do mesmo modo afeta o planeta inteiro. Isto não é dizer que essas mudanças afetem a todos igualmente: o aumento dos níveis do mar, por exemplo, podem ter um impacto imediato em Bangladesh ou numa nação insular do Pacífico, enquanto secas prolongadas podem afetar mais dramaticamente a Etiópia ou a Bolívia. O comum, no entanto, é o fundamento básico do pensamento ecológico, em que incidem as especificidades de cada lugar.

No pensamento social e econômico, no entanto, a centralidade do comum não é amplamente reconhecida. A reivindicação por sua centralidade se apoia numa hipótese ou tese que, junto de muitos outros, Toni Negri e eu temos explorado ao longo dos últimos dez anos: nós estamos no meio de uma transição epocal, de uma economia capitalista centrada na produção industrial para uma que pode ser chamada produção imaterial ou biopolítica. Essa tese é hoje cada vez mais aceita, porém de modo algum universalmente. A título de clareza, deixe-me fragmentar a tese em seus três elementos componentes. O primeiro é geralmente reconhecido: para boa parte dos últimos dois séculos, a economia capitalista esteve centrada na produção industrial. Isto não significa que a maioria dos trabalhadores ao longo do período estivera nas fábricas — em verdade, a maioria não estava. Com efeito, quem trabalhou na indústria, em vez dos campos ou em casa, configurava um elemento determinante nas lógicas e esquemas da divisão do trabalho — divisões geográficas, raciais e de gênero. A produção industrial era central, em sentido diverso, no sentido que as qualidades da indústria — suas formas de mecanização, seu dia de trabalho, suas relações assalariadas, seus regimes disciplinares e de precisão de tempo, e assim por diante — eram progressivamente impostas sobre outros setores da produção e da vida social como um todo, criando não apenas uma economia industrial, mas também uma sociedade industrial.

O segundo componente da tese é também relativamente incontroverso: a produção industrial não mais mantém uma posição central na economia capitalista. Isto não significa que menos pessoas estejam trabalhando nas fábricas hoje, mas sim que a indústria deixou de assinalar a posição hierárquica das várias divisões do trabalho e, mais significativamente, que as qualidades da indústria não mais estão sendo impostas sobre setores e a sociedade sobre um todo.

O componente final da hipótese é mais complexo e requer um argumento extenso. A tese, para partilhá-la brevemente, é que hoje está emergindo, numa posição central que a indústria outrora ocupara, a produção de bens imateriais ou bens com uma fração imaterial significativa, como ideias, conhecimentos, linguagens, imagens, códigos e afetos. As ocupações envolvidas na produção imaterial variam de ponta a ponta na economia, dos trabalhadores da saúde aos educadores, aos funcionários de redes de fast food, de call centers, às aeromoças. Novamente, esta não é uma tese quantitativa, mas uma tese sobre as qualidades que estão sendo progressivamente impostas sobre outros setores da economia e a sociedade como um todo. Noutras palavras, as ferramentas cognitivas e afetivas da produção imaterial, a natureza precária e não garantida de suas relações de trabalho, a temporalidade da produção imaterial (que tende a destruir as estruturas do dia de trabalho e ofuscar as divisões tradicionais entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho), bem como outras qualidades que estão se tornando generalizadas.

Essa forma de produção deve ser compreendida como biopolítica, visto que o que está sendo produzido é, em última instância, relações sociais e formas de vida. Nesse contexto, as divisões tradicionais econômicas entre produção e reprodução social tendem a se esfumar. Formas de vida são simultaneamente produzidas e reproduzidas. Aqui, podemos começar a ver a proximidade entre a produção biopolítica e o pensamento ecológico, visto que os dois estão concentrados na produção/reprodução de formas de vida — com a importante diferença que a perspectiva ecológica estende a noção de formas de vida para bem mais além dos limites do humano ou do animal (mais disso, depois).

Pode-se também se acercar da hipótese da posição emergentemente dominante da produção imaterial ou biopolítica, em termos das mudanças históricas na hierarquia das formas de propriedade. Antes de a indústria ter ocupado uma posição central na economia, lá no começo do século 19, a propriedade imóvel, como a terra, manteve uma posição dominante em relação a outras formas de propriedade. Na longa era da centralidade da indústria, contudo, a propriedade móvel, como as mercadorias, veio a dominar sobre a propriedade imóvel. Hoje estamos no meio de uma transição similar, uma em que a propriedade imaterial e reprodutível está se tornando a posição dominante sobre a propriedade material. Com efeito, patentes, direitos autorais e outros métodos para regular e conservar o controle exclusivo sobre a propriedade imaterial são objeto dos mais agitados debates no campo do direito de propriedade. A importância crescente da propriedade imaterial e reprodutível pode servir de prova ou ao menos indicação à centralidade emergente da produção imaterial.

Enquanto no período anterior de transição, a transição para a produção industrial, a disputa entre formas dominantes de propriedade era uma questão de mobilidade (terra versus mercadorias), hoje a disputa concentra a atenção sobre a exclusividade e a reprodutibilidade. A propriedade privada na forma de lingotes de metal, automóveis e aparelhos de televisão seguem a lógica da escassez: se você está usando-os, eu não posso. A propriedade imaterial, como marcas, código e música, em contraste, pode ser reproduzida de um modo ilimitado. Em verdade, muitos produtos imateriais só funcionam em seu potencial pleno quando estão compartilhados abertamente. A utilidade para você de uma ideia ou afeto não é diminuída se você o compartilha comigo. Pelo contrário, se torna mais útil uma vez compartilhado no comum.

É isto que significa dizer que o comum está se tornando central na economia capitalista de hoje. Primeiro, a forma de produção emergente numa posição dominante resulta geralmente em bens imateriais ou biopolíticos, que tendem a ser comuns. Sua natureza é social e reprodutível, de modo que é progressivamente mais difícil manter o controle exclusivo sobre eles. Segundo, e talvez mais importante, a produtividade desses bens no desenvolvimento econômico futuro depende de seu ser comum. Manter ideias e conhecimentos privados atrasa a produção de novas ideias e conhecimentos, assim como linguagens privadas e afetos privados são estéreis e inúteis. Se esta hipótese esta correta, então paradoxalmente o capital crescentemente conta com o comum.

Isto retoma a primeira característica lógica partilhada pelo comum tanto no domínio ecológico, quanto social/econômico: um e outro desafiam e são deteriorados pelas relações de propriedade. No domínio social/econômico, não apenas é difícil policiar os direitos exclusivos sobre formas imateriais de propriedade. Privatizar bens biopolíticos reduz a sua futura produtividade. Noutras palavras, uma forte contradição está emergindo no coração da produção capitalista, entre precisar do comum para produzir e precisar dele para os fins privados da acumulação capitalista. Essa contradição pode ser concebida como uma nova versão da oposição clássica, frequentemente citada no pensamento comunista e marxista, entre a socialização da produção e a natureza privada da acumulação. A luta sobre a dita biopirataria no Brasil, Índia e alhures é um teatro contemporâneo dessa colisão. Conhecimentos indígenas e as propriedades medicinais de certas plantas amazônicas, por exemplo, são patenteadas por empresas transnacionais e privatizadas como propriedade; os resultados não são somente injustos, mas também destrutivos.

No domínio ecológico, é igualmente claro que o comum tanto as desafia quanto é deteriorado pelas relações de propriedade. Desafia as relações de propriedade simplesmente no sentido que os efeitos benéficos e nocivos do meio ambiente sempre excedem os limites da propriedade, assim como das fronteiras nacionais. De maneira semelhante que a sua terra partilha com a terra vizinha os benefícios da chuva e luz solar, ela vai também partilhar os efeitos destrutivos da poluição e mudança climática. Embora as estratégias do neoliberalismo têm sido dirigidas, talvez mais visivelmente, a privatizar o público, em termos de transporte, serviços ou indústrias, elas também têm significativamente envolvido projetos de privatizar o comum, como o petróleo na Uganda, os diamantes em Serra Leoa, o lítio na Bolívia, e mesmo a informação genética da população da Islândia. A deterioração do comum pela propriedade privada aqui também sugere uma relação contraditória: a natureza privada da acumulação (por meio dos lucros da indústria poluidora, por exemplo) conflita com a natureza social dos danos resultantes (a nocividade que a poluição causa num espectro amplo de formas de vida). Ao juntar as duas fórmulas, então, podemos ver a contradição em relação ao comum nos dois lados, por assim dizer, da propriedade privada: a crescente natureza comum da produção colide com a natureza privada da acumulação capitalista; e essa acumulação privada, a seu passo, colide com o comum: a natureza social de seus efeitos nocivos.

Numerosas lutas potentes irromperam nas décadas recentes para combater a privatização neoliberal do comum. Uma luta bem sucedida que ilustra parte do meu argumento aqui é a guerra pela água centrada em Cochabamba, na Bolívia, em 2000, que, junto com a guerra do gás que teve seu pico em 2003, em El Alto, contribuiu para a eleição de Evo Morales, em 2005. Os eventos foram precipitados segundo um roteiro neoliberal clássico. O FMI pressionou o governo boliviano a privatizar o sistema de abastecimento de água, porque custa mais caro fornecer água limpa do que os recipientes pagos por ela. O governo vendeu o sistema a um consórcio de empresas estrangeiras, que imediatamente “racionalizou” o preço da água, aumentando-o muitas vezes. Os protestos subsequentes para desprivatizar a água, cruzado com uma variedade de outros esforços para manter o controle sobre o comum, em termos de recursos naturais, formas de vida de comunidades indígenas, e práticas sociais dos camponeses e pobres. Hoje, com os desastres da privatização neoliberal se mostrando cada vez mais evidentes, a tarefa de descobrir meios alternativos para gerir e promover o comum se tornou essencial e urgente.

Uma segunda característica compartilhada pelo comum nos dois domínios, que é mais abstrata, mas não por essa razão menos significativa, é que constantemente desestabiliza e excede as medidas dominantes do valor. Os economistas contemporâneos se engajam numa ginástica extraordinária para medir os valores de bens biopolíticos, como ideias e afetos. Com frequência, eles chamam-nos de “externalidades”, que escapam do esquema padrão de mensuração. Os contadores batalham similarmente com o que eles chamam de “elementos intangíveis” [intangible assets], o valor do que lhes parece ser esotérico. De fato, o valor de uma ideia, uma relação social, ou uma forma de vida sempre excede o valor que a racionalidade capitalista pode imprimir nele, — não somente no sentido que é sempre maior a quantidade, mas também, e mais importante, que esse valor desafia o sistema inteiro de medida. (As finanças, evidentemente, exercem um papel central na valoração da produção e bens biopolíticos e a presente crise econômica e financeira decorre, em grande parte, eu argumento, da inabilidade da mensuração capitalista de captar as novas formas dominantes de produção. Essa é uma discussão complexa, no entanto, que eu deixo para outra ocasião.) Um personagem central de Tempos difíceis, de Charles Dickens, é o dono da fábrica, Thomas Gradgrind, que acredita poder racionalizar a vida submetendo-a à medida econômica em todos os seus aspectos, inclusive “assuntos do coração”, como os relacionamentos com seus filhos. Contudo, como o leitor rapidamente antecipa, Gradgrind aprende no curso do romance que a vida excede qualquer medida. Hoje, mesmo o valor de atividades e bens econômicos excede e escapa das medidas tradicionais, uma vez que o comum é progressivamente central para a produção capitalista.

No domínio ecológico, igualmente o valor do comum é imensurável ou, pelo menos, não obedece às medidas capitalistas tradicionais de valor econômico. Isto não é dizer que a medida científica, como a proporção de dióxido de carbono ou gás metano na atmosfera, não é central e essencial. Claro que é. Meu ponto é, na verdade, que o valor do comum desafia a mensuração. Considerem-se, como um contraexemplo, os bastante difundidos argumentos de Bjorn Lomborg, sobre agir para limitar o aquecimento global. Como o Sr. Gradgrind, a estratégia de Lomborg é racionalizar a questão, calculando os valores envolvidos de modo a estabelecer prioridades. O valor estimado da destruição esperada pelo aquecimento global, ele conclui com um ar de implacável lógica, não justifica os custos de combatê-la. Um problema óbvio com esse argumento, no entanto, é que não é possível medir o valor das formas de vida destruídas. Que quantidade de dinheiro poderíamos consignar à submersão de metade de Bangladesh, a seca permanente na Etiópia, ou a destruição de modos de vida tradicionais dos esquimós? Mesmo contemplar tais questões causa o tipo de náusea e indignação que você sente quando lendo sobre aquelas tabelas de seguradoras sobre como calcular quanto dinheiro será reembolsado por perder um dedo no trabalho, quanto por um olho ou um braço.

A inabilidade de captar o valor do comum com medidas tradicionais capitalistas sugere um modo de se aproximar de várias propostas de esquemas de compensação de carbono, tanto discutidas nos encontros oficiais de Copenhague. Os esquemas de compensação de carbono geralmente envolvem um teto para a produção de dióxido de carbono e outros gases do efeito estufa, a fim de criar um mercado limitado, em que a produção desses gases pode ser dada por valores econômicos determinados e, desta forma, negociados. Esses esquemas, assim, não tentam diretamente medir o valor do comum, mas reivindicam fazê-lo indiretamente, ao consignar valores monetários à produção de gases nocivos ao comum. Não deve surpreender que consignar determinados valores a mercadorias imensuráveis, e assumir que a racionalidade de mercado vai criar um sistema estável e benéfico têm levado no passado, em muitos casos, ao desastre — ver, por exemplo, a presente crise financeira. E essa lógica proprietária e o esquema de mercado tendem não a diminuir, mas a exacerbar as hierarquias sociais globais marcadas pela pobreza e exclusão. Em nosso caso, parece claro que as propostas que contam em medidas capitalistas de valor e na racionalidade de mercado não podem captar o valor do comum e enfrentar o problema da mudança climática em seu nível fundamental, mesmo através de meios indiretos. Formas de vida não são mensuráveis ou, talvez, obedecem a uma escala radicalmente diferente baseada no valor da vida, uma escala que talvez ainda não tenhamos inventado (ou uma que, talvez, tenhamos perdido).

Meu ponto principal, aqui, é que tanto como as formas diferentes de comum se insurgem contra as relações de propriedade, elas também desafiam as medidas tradicionais da racionalidade capitalista. Essas duas lógicas compartilhadas constituem uma base significativa para compreender as duas roupagens do comum, e lutar por sua preservação e ampliação. As qualidades compartilhadas do comum dos dois domínios, que analisei até aqui, devem constituir o fundamento para conectar as formas de ativismo político dirigidos para a autonomia e a gestão democrática.

As lutas pelo comum nesses dois domínios operam, em alguns aspectos, no entanto, de acordo com uma lógica conflituosa, ou mesmo de oposição. A antinomia central de que uma série de outras decorrem tem a ver com a escassez e os limites. O pensamento ecológico necessariamente se concentra na finitude da Terra e seus ecossistemas. Alguns argumentam, por exemplo, que o comum só pode suportar um determinado número de pessoas vivendo na Terra e ainda poder ser reproduzido com sucesso. A Terra, outros insistem, especialmente nos espaços selvagens, deve ser defendida contra os danos do desenvolvimento industrial e de outras atividades humanas. Os discursos científicos sobre a mudança climática estão cheios de limites e pontos críticos, — tal como o que vai acontecer se continuar ocorrendo uma concentração de 350 ppm (partes por milhão) de dióxido de carbono na atmosfera. Uma política do comum no campo econômico e social, em contraste, geralmente enfatiza o caráter ilimitado da produção, embora conceba a produção primariamente não em termos industriais, mas biopolíticos. A produção de formas de vida, inclusive ideias, afetos e assim por diante, não tem limites fixos. Isto não significa, à evidência, que mais ideias seja necessariamente melhor, mas que elas não operam sob a lógica da escassez. Ideias não se degradam necessariamente por meio de sua proliferação e compartilhamento com outras pessoas — pelo contrário. Existe uma tendência, portanto, para discussões em um domínio serem dominadas por chamados à preservação e aos limites, enquanto no outro elas se caracterizem por celebrações do potencial criativo sem limites.

O conflito conceitual entre limites e ilimitação se refletiu em slogans aparentemente incompatíveis dos movimentos que se encontraram em Copenhague. Uma reivindicação favorita dos movimentos sociais anticapitalistas em anos recentes tem sido: “Queremos tudo para todos”. Para aqueles com uma consciência ecológica dos limites, é claro, isto soa um absurdo, uma noção inconsequente que nos impulsionará ainda mais na rota da destruição mútua. Ao revés, um cartaz proeminente nas demonstrações públicas em Copenhague, alertava: “Não existe planeta B.” Para os ativistas anticapitalistas, isto também estreitamente ecoava o mantra neoliberal popularizado 30 anos atrás pelo governo de Margaret Thatcher: “Não há alternativa.” De fato, as lutas contra o neoliberalismo das décadas passadas têm sido definidas pela sua crença na possibilidade de alternativas radicaism aparentemente sem limites. Em suma, o lema do Fórum Social Mundial, “Outro mundo é possível” pode ser traduzido, no contexto dos movimentos da mudança climática, como algo assim: “Este mundo é ainda possível, talvez.”

Em termos simplistas, realmente simplistas, pode-se dizer que enquanto o pensamento ecológico se orienta contra o desenvolvimento econômico, ou para instalar guias nele, os defensores do domínio social e econômico do comum são resolutamente pró-desenvolvimento. Isto é muito simplista porque o desenvolvimento em questão nos dois casos, como disse, é fundamentalmente diferente. Os tipos de desenvolvimento envolvidos na produção social do comum diferem significativamente do desenvolvimento industrial. De fato, uma vez reconheçamos, como mencionei antes, que no contexto biopolítico as divisões tradicionais entre produção e reprodução desabam, é mais fácil ver que chamados pela preservação num caso, e criação no outro, não estão realmente opostos, mas se complementam. Ambas as perspectivas se referem fundamentalmente à produção e reprodução de formas de vida.

Um segundo conflito conceitual básico entre lutas pelo comum nos dois domínios tem a ver com a extensão a que os interesses da humanidade servem como quadro de referência. Lutas pelo comum no domínio social e econômico geralmente focam na humanidade e, de fato, uma das tarefas mais importantes é estender a nossa política com sucesso para toda a humanidade, ou seja, superar as hierarquias e as exclusões de classe, propriedade, gênero e sexualidade, raça e etnia, e outras. Lutas pelo comum no domínio ecológico se colocam muito mais, em contraste, em prolongar seus quadros de referência além da humanidade. Na maioria dos discursos ecológicos, a vida humana é vista em sua interação com (e no cuidado ante) outras formas de vida e ecossistemas, mesmo nos casos em que a prioridade ainda seja conforme os interesses da humanidade. E em muitas plataformas ecológicas radicais, os interesses de formas não-humanas de vida recebem a mesma ou mesmo maior prioridade em relação às humanas. Esta é uma diferença real e conceitual, me parece, que implica diferenças políticas significativas, mas terei de prorrogar para outra ocasião a exploração mais completa delas.

Deixe-me em vez disso retornar à antinomia conceitual entre limites e ilimitação para explorar algumas das diferenças da estratégia política que derivam disso. A primeira delas pode ser chamada de antinomia da governança entre autonomia e ação estatal. Um objetivo central dos movimentos sociais anticapitalistas e antineoliberais tem sido promover formas de autonomia e autogoverno como meios de desafiar e destruir as hierarquias sociais. As comunidades zapatistas vêm servindo como um exemplo poderoso para mostrar como podemos desenvolver o nosso poder de governar a nós mesmos mediante a experimentação de formas democráticas de governança. No discurso dos movimentos da mudança climática, em contraste, a estratégia política geralmente foca menos na autonomia do que na necessidade de compelir os estados a agir. Isto em parte é devido à natureza global do problema. Comunidades autônomas podem reduzir seus próprios níveis de emissão de dióxido de carbono, por exemplo, mas isso fará pouco para gerar algum efeito na mudança climática, se os maiores poluidores não forem parados. Os estados parecem ser os únicos atores capazes de obter sucesso nisso, junto com, talvez, as maiores empresas e instituições supranacionais como as Nações Unidas. O apelo para os estados com relação ao aquecimento global se deve também à urgência do problema. Parece ter pouco tempo para a experimentação ou medidas parciais antes de ser tarde demais para enfrentar os fatores críticos que causam a mudança climática. A antinomia política não é absoluta, é claro. Movimentos autônomos também têm sempre sido dirigidos aos estados: em alguns casos, para contestar o controle estatal, em outros casos para cooperar com governos progressistas. E, ao revés, vários movimentos da mudança climática valorizam a autonomia como um princípio e mesmo parte de sua estratégia. Mas ainda permanece uma diferença significativa de prioridade e ênfase.

Outra antinomia política tem a ver com a questão do conhecimento. Projetos de autonomia e autogoverno, bem como a maioria das lutas contra as hierarquias sociais, agem na pressuposição que todos têm acesso ao conhecimento necessário para a ação política. Trabalhadores na fábrica, negros numa sociedade branca, mulheres numa sociedade patriarcal são dotados da experiência cotidiana de subordinação que é a semente da rebelião. Um longo treinamento é requerido, evidentemente, para transformar a indignação em projeto político, mas a premissa é que todos têm acesso ao conhecimento básico. Isto parece ser algo como a premissa básica de Spinoza em De Intellectus Emandatione, que habemus enim ideam veram, isto é, nós temos uma ideia verdadeira ou, melhor, nós temos pelo menos uma ideia verdadeira, que serve como fundamento para subsequentemente podermos construir o edifício do conhecimento. Essa pressuposição de acesso geral à experiência e conhecimento da subordinação ocupa um papel similarmente fundacional. Sem esse conhecimento básico acessível a todos, os projetos horizontais e democráticos de autonomia e autogoverno seriam inconcebíveis. A relação com o conhecimento nos movimentos da mudança climática parece ser, a mim, bem diferente. Certamente, é invocada a grande importância conferida a projetos de educação pública sobre a natureza da experiência climática, bem como à experiência das pessoas sobre as mudanças de seu ambiente. Porém, a experiência individual sobre a mudança climática é muito pouco confiável. Invernos podem ser mais severos numa área ou ano e mais ameno em outros; as chuvas podem intensificar numa parte do mundo, e diminuir noutra. Nenhuma dessas é uma base adequada para entender a mudança climática. Na realidade, uma vez que qualquer um de nós puder experimentar os efeitos da mudança climática de uma maneira verificável, aí será tarde demais para interromper os seus efeitos. Os fatos básicos da mudança climática — por exemplo, a proporção crescente de CO2 na atmosfera e seus efeitos — são altamente científicos e abstratos em relação a nossa experiência cotidiana. Projetos de pedagogia pública podem ajudar a difundir esse conhecimento científico, mas, ao contrário do conhecimento baseado na experiência da subordinação, esse é fundamentalmente um conhecimento especializado.

A terceira antinomia política, que talvez seja a mais determinante, marca a distancia entre duas temporalidades. É verdade que os movimentos anticapitalistas e antineoliberais sempre empregam uma retórica da urgência — insistindo, por exemplo, que suas demandas devem ser atendidas — mas a temporalidade da formação comunitária autônoma e organização democrática é constitutiva. O tempo é determinado, noutras palavras, pelo próprio processo de organização. A urgência das demandas é realmente secundária a sua temporalidade constitutiva. Em contraste, a urgência é a temporalidade primária da política da mudança climática. Em breve será tarde demais para salvar o planeta e talvez esse momento já tenha inclusive passado. A urgência enfatiza ou exacerba as lacunas apontadas pelas duas antinomias políticas anteriores. Se não há tempo a perder, não podemos esperar por conhecimentos generalizados a desenvolver, nem comunidades autônomas a florescer. Nós precisamos agir agora com os especialistas e os poderes dominantes que existem.

Esta antinomia da temporalidade molda os dois movimentos como duas faces do apocalipse. Os movimentos anticapitalistas estão dentro da longa tradição de grupos milenaristas e revolucionários que lutam para precipitar um evento de transformação radical. O fim dos dias é o começo de um novo mundo. A imaginação apocalíptica dos movimentos da mudança climática, diversamente, vê a mudança radical como a catástrofe final. A mudança do clima da Terra vai diminuir enormemente, senão destruir as formas existentes de vida. O fim dos dias é apenas o fim.

Penso que é útil reconhecer a profundidade dessas antinomias, de modo a entender os desafios que enfrentamos. Não quero com isso sugerir, contudo, que essas diferenças tornam impossível o encontro entre os movimentos anticapitalistas e os da mudança climática. Recordar que há dez anos, no tempo dos protestos de Seattle, estivemos diante de uma antinomia política semelhante, entre globalização e antiglobalização. Os manifestantes se declararam contra as formas atuais de globalização mas, corretamente, resistiram ao rótulo midiático de ativistas “antiglobalização”. Levou tempo um grande esforço coletivo para desenvolver conceitos e práticas de alterglobalização que despedaçassem essa antinomia. É tarefa dos movimentos hoje captar as antinomias do comum, trabalhar através delas, e criar novas plataformas conceituais e práticas. O trabalho começado em Copenhague abriu o caminho para uma longa jornada a frente.

 

i Traduzido por Bruno Cava, a partir de Two faces of Apocalypse: a letter from Copenhagen, in CANAVAN, Gerry; KLARR, Lisa; VU, Ryan. Polygraph n.º 22 – Ecology and Ideology (2010), disponível online em http://www.duke.edu/web/polygraph/hardt.pdf

 

ii Michael Hardt é professor de literatura da Duke University (Durham, EUA) e filósofo político, co-autor de vários livros com Antonio Negri, destacando-se a trilogia Império (Record, 2001), Multidão (Record, 2006) e Commonwealthi (Harvard press, 2009).

 

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