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A Copa do Amarildaço

Por Rede Universidade Nômade

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Em 2013, o levante da multidão aconteceu no Brasil em meio à Copa das Confederações, evento preparatório para a Copa do Mundo da FIFA. Deflagrado pelos protestos contra o aumento da tarifa do ônibus, o levante se acelerou e massificou com a visibilidade proporcionada pela Copa das Confederações. Em 2013, o país do futebol também foi o país da mobilização democrática por direitos.

“Não vai ter Copa” foi um dos gritos que emergiu no levante do ano passado. Rapidamente, o grito se tornou a hashtag #NãoVaiTerCopa nas redes sociais, eixo ao redor do qual passaram a aglutinar-se os manifestantes. “Não vai ter Copa” brotou espontaneamente das redes e ruas de junho de 2013. Foi gritado com ênfase durante momentos críticos, como aqueles em que as marchas eram atacadas e os manifestantes perseguidos pela repressão policial comandada pelos governos. Foi um grito marcante de um breve período em que o medo mudou de lado, significando o reconhecimento da própria força coletiva. Os governantes se entrincheiravam em mecanismos defensivos da própria identidade e, no limite, por trás das tropas de choque, enquanto milhões de manifestantes iam para as ruas para, diretamente, exigir mais democracia.

É pouco provável que algum dos muitos que, em 2013, engrossaram o coro “Não Vai Ter Copa”, tivessem em mente o desejo de impedir a realização da Copa do Mundo. O grito servia antes de tradução para uma série de demandas que, diante da realização dos megaeventos, podiam ser colocadas em perspectiva. “Não Vai Ter Copa” protestava, por exemplo, contra a prioridade absoluta conferida aos investimentos em estádios, publicidade e segurança para a Copa, num contexto de degradação dos serviços essenciais à população, como transporte coletivo, saúde e educação. Protestava contra a falta de hospitais e escolas “padrão FIFA”. Problematizava, também, o legado de violações de direitos e exclusões dos indesejados da Copa: favelas e comunidades “no caminho” das obras, camelôs, sem-teto, pessoas em situação de rua, dependentes químicos, ocupações urbanas.

Reunindo um espectro variado de demandas e reclamações, #NãoVaiTerCopa conseguiu se firmar, ao longo do ano passado, como uma senha para a amplitude do desejo dos manifestantes, um inequívoco e provocativo dissenso diante do funcionamento estrutural das instituições, dos governos, da democracia representativa brasileira.

2013 passou, mas os ventos de junho continuaram a soprar. Toda uma nova geração de ativistas teceu novas redes e transformou as existentes. Num cenário de baixa atração das formas usuais de mobilização e organização políticas, no movimento estudantil, sindical, partidário, ou nos movimentos sociais tradicionais, as grandes mobilizações de 2013 trouxeram uma injeção de ânimo. Em 2014, com a paulatina sedimentação das redes e coletivos em formas mais organizadas e permanentes, emergiu um campo de lutas autônomas. Para esse campo de contornos maleáveis, em constante mutação, convergiu uma heterogeneidade de forças e atores que, no conjunto, constituíram por assim dizer uma “quarta força”, mais difusa, – em relação à configuração político-representativa de governo, oposição de direita e oposição de esquerda.

Essa “quarta força”, além de insistir na memória viva de 2013, diferencia-se das três outras forças por embutir uma recusa da representação político-partidária. Nisso, o campo autonomista é tributário de vertentes de luta antissistêmica que vinham se desenvolvendo nos últimos anos nas cidades, como os movimentos das ocupas, as assembleias populares e de bairro, arte-ativismos, midiativismos, e que se amalgamaram em junho. Também é tributário do grito “Não nos representa”, signo de um ciclo global de lutas disparado nas revoluções árabes de 2011, passando pelo Movimento do 15-M europeu, o Occupy Wall Street, até as lutas do Parque Gezi em 2013 na Turquia.

No primeiro semestre de 2014, no Rio de Janeiro, dessa “quarta força”, sem qualquer organização “central” ou lideranças, partiram algumas mobilizações, tais como a luta contra o novo aumento da passagem de ônibus, atos em protesto ante a Copa, contra as remoções, e uma ação solidária em prol dos removidos da favela Oi/Telerj. As manifestações reuniram alguns milhares de pessoas, entre estudantes, agrupamentos anarquistas, frentes autonomistas, indígenas, punks, midiativistas, professores, entidades de direitos humanos, advogados populares. Exerceram grande atração sobre a juventude, afetaram outras lutas importantes do período, como a greve dos garis, e se misturaram com parte da oposição de esquerda mais interessada na ação direta. Embora não houvesse alguma diretriz centralizada, era compartilhada a percepção de que a realização da Copa do Mundo da FIFA, com grande visibilidade nacional e internacional, seria um importante horizonte de chegada para as mobilizações.

As forças da configuração representativa estabelecida responderam de diversas maneiras ao levante de 2013 e suas repercussões no ano da Copa. O governo federal investiu basicamente em duas frentes.

Em primeiro lugar, bancou sem qualquer pudor a repressão das manifestações, consideradas como uma ameaça à realização do megaevento de 2014. Através do ministro da justiça, Eduardo Cardozo, prestou inteiro apoio logístico e político aos esforços dos governos estaduais para mapear, espionar e desarticular as redes organizativas precariamente estruturadas. Mas não ficou só nisso. Tem havido uma federalização crescente das ações, com a articulação de vários órgãos da esfera federal, denotando uma estratégia superior que transcende a Copa do Mundo e que sinaliza para um novo sistema de controle de protestos e movimentos sociais. Os únicos escrúpulos do governo federal foram interromper a tramitação do projeto de lei antiterrorismo, que elevaria a intensidade da criminalização dos movimentos, e revisar os termos usados numa portaria do ministério da defesa, que chamava manifestantes de “força oponente”.

Em segundo lugar, através do secretário-geral da presidência, Gilberto Carvalho, o governo fez alguns esforços para abrir “canais de diálogo”, a fim de ouvir as demandas e realizar ofertas a grupos organizados e mesmo diretamente a ativistas, para “intermediar” a rua e o Planalto. Essa tentativa, na linha do “bate-assopra”, levou o governo a concluir que os movimentos sociais e coletivos poderiam ser classificados em duas categorias: os mais convencionais com pautas possíveis de atendimento, passíveis de negociação; e a “turma de Seattle” (G. Carvalho dixit), com as quais o diálogo seria impossível – para estes, a única alternativa seria o monitoramento e o controle. No primeiro tipo, estariam enquadrados movimentos como o MTST, os comitês populares da Copa e boa parte dos grupos que se estruturam com a oposição de esquerda. No segundo tipo, estariam movimentos de estrutura mais precária, autonomistas e anarquistas, como o MPL, a FIP e, em geral, boa parte da “quarta força” que aderiu ao #NãoVaiTerCopa.

Já a oposição de direita, por sua vez, tentou surfar na onda de insatisfação vinda de 2013, de olho, assim como o governo, nas eleições de 2014. Essa oposição está instalada nos grandes meios de comunicação, e também representa parte dos patrocinadores da Copa. Dessa maneira, a oposição de direita não poderia simplesmente embarcar no #NãoVaiTerCopa. Assim como, no ano passado, não embarcou no levante de junho, preferindo tentar sequestrar sua potência para dirigi-la às suas pautas antipolíticas da corrupção, da criminalização de movimentos, e do ódio à esquerda. Neste ano, a linha política da oposição de direita foi atacar a organização da Copa não pela violação de direitos, mas sim atualizando as usuais críticas antiesquerda: incompetência gerencial, corrupção e aparelhamento partidário. Possivelmente, a hashtag que melhor representou essa linha foi #imaginanaCopa. Aludindo ao caos esperado durante a Copa do Mundo, a oposição de direita pretendia desgastar o governo às vésperas das eleições de outubro.

Embora os defensores e os publicitários do governo não deixassem de igualar o #NãoVaiTerCopa à oposição de direita, o fato é que esta em momento algum aderiu às pautas concretas dos protestos, relacionadas às remoções urbanas, tarifa zero, recusa da esfera representativa, falta de democracia real nas instituições, entre outras. O governismo repetiu a mesma linha de desqualificação que, desde junho de 2013, vem atribuindo às jornadas de junho um caráter conservador e protofascista, que só poderia beneficiar a direita partidária. Nesse sentido, não foi tanto a oposição de direita que se aliou ao governo no discurso de descrédito e criminalização do campo #NãoVaiTerCopa. Na verdade, a oposição de direita historicamente adota esse discurso, tão frequente nos grandes meios de comunicação com a divisão entre manifestante “de bem”, “família feliz” e cara-pintada, e os “vândalos”, baderneiros e “black blocs”.

De junho a 2013 até agora, o governo é que se deslocou no campo discursivo e prático, até coincidir com o discurso tradicional da direita, não só se omitindo diante da criminalização dos movimentos, como acionando ele mesmo os mecanismos administrativos e policiais à disposição na esfera federal. Não por acaso, cada vez mais, nos âmbitos de formulação da “quarta força”, se faz cada vez menos distinções entre o governo e a oposição de direita, vistos como um bloco único bipolar cujo efeito final tem sido sempre o fechamento das brechas democráticas, a negação da luta por direitos e a perseguição política.

Por sua vez, a oposição de esquerda teve uma relação ambivalente com o campo de lutas adensado desde junho de 2013. Em parte, principalmente sua militância e alguns mandatos de luta, a oposição de esquerda participou ativamente de vários círculos de organização e mobilização, além de estar presente nos protestos. Essa participação ajudou a reforçar a estruturação ainda precária das novas redes e, em alguns momentos, foi objeto de acusações por parte do governo e da oposição de direita, como ligação cúmplice com “vândalos”, baderneiros e “black blocs”. No entanto, outra fração da oposição de esquerda, sobretudo dirigentes, preferiu desligar-se e marcar a distância daqueles que reivindicavam o legado de junho. As formas de desligamento variaram. Foram desde a insistência em diferenciar-se – rejeitando o #NãoVaiTerCopa (porque “não se poderia impedir o Sol de nascer”), agendando protestos em horários diferentes, ou evitando qualquer estética mais confrontacional etc. – até a crítica direta no coro contra os “vândalos”, discurso no qual parte da oposição de esquerda se igualou às forças alinhadas ao governo e à oposição de direita/grande mídia conservadora.

Nos meses anteriores à Copa, enquanto em algumas cidades se realizavam protestos #NãoVaiTerCopa entre cem e alguns milhares de manifestantes, o governo começou a aderir ao clima grandiloquente de tom nacionalista, promovendo antecipadamente o sucesso da “Copa das Copas”. O mesmo verde-e-amarelo denunciado como protofascismo pelo governismo em 2013 era agora adotado com a desculpa de que ganharia votos. Além disso, o governo mobilizou e financiou aparelhos de movimento, tratados praticamente como funcionários subalternos da “estratégia superior” do Planalto, para uma campanha #VaiTerCopa.

A explícita polarização, contudo, acabou fortalecendo o grupos que pautavam a contestação da Copa. Além disso, a campanha governamental clareou o terreno quanto ao posicionamento do governo federal e da presidenta em relação ao campo emergente de 2013. Enquanto isso, foram mobilizadas as polícias, Judiciário, Força Nacional e até as Forças Armadas, inclusive com a ocupação do complexo de favelas da Maré (Rio) pelo exército, a fim de conter eventuais manifestações. Ademais, aquela estratégia de diálogo com os movimentos, encabeçada por Gilberto Carvalho, restringia-se a apenas um “diálogo” do governo consigo mesmo, voltado meramente a receber reivindicações e negociar caso a caso, isoladamente, sem esboçar qualquer abertura de espaços institucionais para que as redes da “quarta força” pudessem dialogar sem ceder a autonomia. O #VaiTerCopa, na verdade, significava #NãoVaiTerProtesto.

As greves de garis, rodoviários, professores, petroleiros e outras categorias, algumas abertamente por fora das – e até contra os – representantes sindicais, foram a grande tônica das mobilizações nos meses anteriores à Copa. A poucos dias da partida inaugural, os metroviários de São Paulo em greve enfrentaram o jogo sujo do governo de Geraldo Alckmin, aproveitando a visibilidade que sua causa ganhava, dada a importância do metrô para o transporte dos torcedores ao estádio em Itaquera. A repressão foi dura e contou com o apoio velado do governo federal e do PT, mais preocupados em assegurar a lei e a ordem às vésperas da Copa, do que em ficar do lado dos trabalhadores. No dia da abertura, e do jogo Brasil x Croácia, a polícia paulista fez o ensaio geral do que seria a #CopadasTropas, atacando os manifestantes desde a concentração, imobilizando qualquer movimentação, com gás, chuva de bombas, tiros de balas de borracha, pancadaria e prisões ilegais e sem fundamento. O direito à manifestação estava suspenso.

Em São Paulo, as únicas iniciativas de movimento que conseguiram furar o cerco foram o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Movimento Passe Livre (MPL). O MTST se organiza segundo um método mais tradicional, estruturado em militância de base/cúpula, e de caráter preponderantemente reivindicatório: exerce pressão sobre as instituições para conquistar direitos e repasses, concentrado na pauta da moradia. Antes e durante a Copa, conseguiu provar a capacidade de mobilização de milhares de sem-teto, tendo realizado importantes ações, como a Copa do Povo, acampamento nas cercanias do Itaquerão, e a ocupação em frente à Câmara de Municipal de São Paulo. O movimento foi bem sucedido em obter concessões dos governos municipal e federal, que assinaram compromissos de desapropriação de áreas por interesse social, construção de moradias populares, e cadastramento no programa Minha Casa Minha Vida. O lado negativo foi colocar na mesa de negociação a saída das ruas (contribuindo com o projeto governamental de “pacificar” os movimentos durante a Copa), num momento em que, potencialmente, elas poderiam ser preenchidas por mobilizações maiores e mais diversificadas.

Já o MPL, organizado de maneira autônoma, horizontalizada e aberta, conseguiu levar cerca de cinco mil pessoas às ruas de São Paulo num protesto intitulado, sugestivamente, “Não Vai Ter Tarifa”. Um protesto realizado no meio da Copa, preenchido pelo campo autonomista e contemplando as pautas dissensuais do #NãoVaiTerCopa. No final do ato, alguns manifestantes mais exaltados destruíram vidros e danificaram a lataria de carros de luxo expostos numa loja concessionária. A violência contra a propriedade foi, como é usual, super-explorada pela grande imprensa e terminou por dar mais impulso às engrenagens do poder punitivo já azeitadas para a Copa. Nesse caso, a ação direta foi autorreferencial: elaborada e executada sem passar pelas instâncias e espaços do próprio movimento, e terminou criticada por vários outros ativistas presentes.

A fim de servir de exemplo, das mais de 500 detenções realizadas em São Paulo, duas foram convertidas em prisões políticas em regime fechado, com base em provas forjadas e acusações fantasiosas, com a cínica omissão de boa parte do governismo. Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi viriam a se juntar, assim, aos presos políticos do Rio de Janeiro, de Porto Alegre, de Goiânia e outras cidades.

No Rio, um dia antes da final da Copa, 28 militantes foram presos “preventivamente”, somando aos outros três presos políticos existentes: Rafael Braga Vieira, Fábio Raposo e Caio Silva. Nos dias seguintes à final, o vaivém de mandados e habeas corpus resultou, até a data deste texto, em 3 novos presos em Bangu, e outros 18 ativistas com prisão decretada. Nessa operação, culminância de um inquérito secreto que corre há quase um ano, foram emitidos mandados de prisão contra integrantes de vários coletivos e movimentos, numa espécie de amostragem daqueles que se organizaram para lutar na cidade a partir dos protestos de junho, de 2013. As acusações se baseiam em conjecturas sobre o que cada um poderia fazer e não em fatos concretos devidamente verificados – prisões a título “temporário” ou “preventivo”, antes de qualquer julgamento, e que mal escondem a motivação de vingança política. O propósito claro é intimidar as mobilizações e as tentativas de desenvolver formas de organização do movimento.

Em Belo Horizonte, os protestos foram asfixiados com a utilização da tática “caldeirão de Hamburgo”, que imobiliza os manifestantes num perímetro fechado, intimidando-os com um contingente policial desmesurado. O protesto mais significativo foi a ocupação de prédios públicos por cerca de mil manifestantes, numa ação direta coordenada pelas 13 ocupações urbanas da metrópole, com as Brigadas Populares, Movimento de Lutas nas Vilas, Bairros e Favelas (MLB), Comissão Pastoral da Terra e Comitê Popular dos Atingidos pela Copa (COPAC). Os ativistas mantiveram as ocupações durante mais de dois dias, protestando pelos direitos de ocupar, à moradia ao acesso a serviços públicos essenciais. Num dos cercos realizados para sufocar as ocupações dos prédios, as forças do governo impediram por um longo período os ocupantes, inclusive crianças e adolescentes, de alimentar-se. Um ativista foi detido quando tentou atirar pães da calçada a uma janela.

Outros protestos aconteceram em diversas cidades, contra um mar de constrangimentos, apesar da conjuntura de exceção acertada previamente entre as esferas estaduais e federal. Ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro, a rotina assassina da violência policial continuou inalterada nas favelas. Em meio a tudo isso, durante o desdobramento do evento, o governismo batia seus tambores de aprovação e, meio que alucinados, comemorava o fato de estar havendo Copa. O governo e o PT tentaram embalar sua popularidade na corrente “Pra Frente Brasil”, capitalizando a alegria passiva proporcionada pela “paixão nacional” da “pátria das chuteiras”. Essa história é conhecida desde pelo menos 1970. A avalanche midiática ao redor do evento, de fato, impressionava pela captura implacável da atenção, por um momento parecendo jogar para escanteio a possibilidade de conferir visibilidade ao dissenso. Aos trancos e barrancos, a seleção brasileira avançava na competição, mas a atmosfera governista era de ufanismo nacionalista, como se o sucesso dos jogadores em campo significasse o sucesso do governo. Simultaneamente, a presidenta declarava que o #NãoVaiTerCopa tinha sido “enterrado”, enquanto o candidato da oposição de esquerda para a prefeitura de São Paulo decretava arrogantemente o “fracasso” desse campo de lutas. Essa foi basicamente a pauta da esquerda antiprotesto até a derrota para a Alemanha.

O roteiro “ideal” começou a se complicar com a contusão de Neymar, o craque do time. Diferentemente de 1962, não havia um Amarildo para substituir Pelé. “Cadê o Amarildo?” reapareceu curiosamente como a pergunta sem resposta, confusão entre clamor futebolístico e lembrança dos sem-nome corporificados no corpo negro desaparecido, torturado e morto pelos policiais da UPP da Rocinha, em 13 de julho de 2013, exatamente um ano antes da final.

Diante da derrota humilhante por 7 x 1 em Belo Horizonte, a publicidade nacionalista do governismo foi para o beleléu. Os mesmos que juravam amor eterno à seleção e condenavam o #NãoVaiTerCopa como antipatriótico, refluíam em revolta contra a seleção, numa onda de deboche. A nova tragédia do futebol nacional, substituindo o Maracanazo de 1950, não deveria se chamar Minerazo, mas Amarildaço. Naquele momento, o governismo mudou completamente a postura e como que inverteu a lógica do discurso. Agora, era “só futebol”, não tinha mais nada a ver com política, governo e Dilma. Continuavam incapazes, assim, de ver que a maior derrota da Copa das Copas não era o 7 x 1, mas o estado de exceção de violações, remoções e “caldeirões de Hamburgo” rolando do lado de fora dos estádios. Tudo para garantir o “padrão FIFA” dos lucros que, em nenhum caso, foram partilhados com a maioria da população. O governismo continuou preso à dialética do #VaiTerCopa x #NãoVaiTerCopa, com a diferença que, em vez de organizar protestos por suas pautas, limitou-se a tentar colar a imagem do futebol no governo, enquanto debochava dos descontentes e se comprazia com a violência da repressão.

Mas os protestos do #NãoVaiTerCopa, embora atacados por todos os lados, fragmentários, precários e por vezes dispersos, aconteceram. Nas ruas, desfilou outra seleção, aquela das camisas nº “-1” de Amarildo, de Cláudia da Silva, de DG, do menino Luiz Felipe, o incontável de suprimidos para que a democracia não se torne real com a participação de pobres, negros, indígenas, mulheres, LGBTT. Desfilou a seleção dos sem-teto, dos favelados, dos midiativistas, dos advogados populares, dos ativistas dos direitos humanos, dos comitês populares. E de todo um campo de lutas e militância que perseverou em seu esforço comum de existir diferente, singular e pleno, em contraste com o esvaziamento geral da esfera da representação, sua política de alianças, seu rolo compressor contra as manifestações e as “minorias” (que sempre foram a maioria).

O legado máximo da Copa das Copas, além de estádios vazios em Manaus, Cuiabá, Natal e Brasília, foi o inchamento do limiar de exceção que, apesar de 30 anos de processo de redemocratização pós-ditadura, continua existindo no coração das instituições do estado brasileiro. O estado de exceção que veio à tona nas praças e ruas não é novidade para quem mora em territórios onde a exceção sempre foi a norma, em comunidades vulnerabilizadas e favelas. Em 2013, o levante da multidão expressou o desabrochar dos desejos por uma democratização real do Estado de Direito, para contrair o limiar de exceção e realizar outro Direito: como na campanha Cadê o Amarildo?, no fortalecimento de coletivos ligados à luta pela favela, nas pautas da reforma geral das polícias e das instituições de segurança pública, da democratização dos meios de comunicação e da fruição dos bens comuns. A resposta do poder constituído, em vez de atender à demanda por mais democracia que veio das ruas, foi uma política de polícia, uma redução das pautas democratizantes pela intensificação dos mecanismos ditatoriais latentes. Respondeu com a violência e o terror de Estado à constituição do comum, de onde outras instituições e outro Direito poderiam avançar na democratização do país.

Hoje, depois da “Copa que não houve”, os movimentos sociais, mais convencionais ou de novo tipo, têm pela frente, além da urgência da luta contra a repressão, um duplo desafio:

a) por um lado, trata-se de afirmar que a lógica do “menos pior” esgotou-se, porque o “menos pior”, hoje, está comprometido com a interrupção de um ciclo de lutas e sua substituição pela exceção policial e militar; isso significa que o “menos pior” tem sim que aprender do #NaoVaiTerCopa que é preciso propor com força e organizar com inovação “o melhor”, ou seja, o aprofundamento da democracia, voltando a zelar pelos temas dos direitos humanos (nas favelas, com os pobres) e enfrentando de vez a questão da qualidade dos serviços, a começar pelos transportes e a moradia – não mais transportes caros e péssimos, não mais moradia para segregar ainda mais os pobres.

b) por outro lado, é preciso igualmente se contrapor, dentro dos próprios movimentos, à lógica do “quanto pior, melhor”, porque o achatamento das nuances e dos diferentes níveis das instituições e do direito perde de vista a possibilidade de alianças importantes, táticas defensivas e agenciamentos entre movimentos e apoios institucionais, conquanto minoritários.

Não é verdade, compas, que ter ou não ter uma OAB comprometida – mesmo que de modo eventualmente insuficiente – com as liberdades e o “Estado de Direito” seja indiferente! Não é verdade que ter ou não ter o habeas corpus e o direito constitucional de manifestar-se seja indiferente!

Não estamos em uma ditadura. Os pobres das favelas sabem muito bem que a “exceção” é na realidade a regra. Rafael, condenado a cinco anos por porte de água sanitária, sabe que só existe “aplicação da lei” e que a lei não é mesma para ele e para Cabral, pois não usam os mesmos guardanapos. Todo jovem negro sabe que a PM o trata diferentemente, até mesmo nas manifestações, de um colega branco.

A novidade é outra, aquela de junho de 2013: de uma exceção constituinte, de uma brecha democrática para poder lutar, construir democracia radical, dentro e contra as “copas”. É essa brecha democrática das lutas que precisamos manter aberta, inclusive no terreno da invenção de novas instituições. A “revolução” é a conquista da democracia plena e radical e, nesse momento no Brasil, a conquista do direito efetivo dos pobres de fazer política autonomamente.

A consagração do Brasil-Potência não aconteceu. O Brasil Maior falhou, mas falhou porque se ampara em uma síndrome de déficit de civilização: sempre perseguimos um modelo e uma medida que não construímos, e que nos é insignificante, enquanto, com a outra mão, desprezamos e afastamos o que realmente temos de singular. Desprezamos o que temos de selvagem e indômito para abraçar a civilização normalizadora que, como fantasma colonizador, nos escapa e nos esnoba.

Acusam os descontentes de “vira-latismo”, mas “vira-latismo” é achar que tudo está bem porque turistas estrangeiros elogiaram os aeroportos e aprovaram a festa. Fora e dentro de campo, entretanto, seja protestando, seja sucumbindo de forma ridícula diante do rolo compressor alemão, os muitos brasis se revelaram insuprimíveis. Não somos mais apenas o país do futebol. O rodrigueano complexo de vira-latas foi superado fora dos gramados. Ou talvez as ruas tenham revelado uma outra acepção, superior e insubordinável, do “vira-latismo”: o ser livre, sem coleira nem dono. Como os gatos que já nascem pobres, porém já nascem livres, sem reconhecer senhor, senhora ou senhorio, na lição dos Saltimbancos de Chico Buarque. Parecemos ter aprendido, com o Nietzsche de Oswald de Andrade e Paulo Leminski, que o lugar mais importante, o “habitat dos grandes problemas é a rua”.

 

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