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100 anos da morte de Lênin: Lênin e Bogdanov em Capri

Bruno Cava

Duzentos e cinquenta euros. É o valor da diária para se hospedar na Villa Krupp, motivo pelo qual só pude contemplá-la à distância quando visitei Capri, em 2013 e 2021. A sacada dessa pousada oferece uma das vistas mais estonteantes da ilha que é conhecida, desde a Antiguidade, por “Pérola do Mediterrâneo”.

Capri não esperou as estrelas de Hollywood e os magnatas americanos para ser glamourosa. Por séculos, lhe foram assíduos imperadores, senadores e poetas latinos, que vinham gozar do clima ameno, ora como refúgio contemplativo, ora antro erótico.

O mar azulíssimo contrasta com as rochas cinza-escuras e o verde profundo de ciprestes, murtas e aroeiras. A luz do poente exalta as paisagens de Capri, que por toda parte transmitem uma paz soberana e apolínea. Na primavera, a ilha desabrocha em amarelos e lilases, alcançando uma beleza impossível.

No verão de 1908, Lênin visitou Capri pela primeira vez. Como se sabe, a repressão do regime czarista à revolução de 1905 levou à diáspora dos revolucionários russos. Lênin passou uma década no exílio, alternando entre países europeus. Outro subversivo emigrado foi Máximo Gorki, à época já aclamado mundialmente. Depois de uma passagem pelos Estados Unidos, onde foi ciceroneado por Mark Twain, o escritor russo escolheu se refugiar em Capri. Ao chegarem ao porto da Marina Grande, em 1906, com sua esposa e um par de empregados, uma turba de admiradores e curiosos os recebeu. De imediato, Gorki virou mais um morador ilustre da ilha.

O casal alugou a Villa Blaesus, que se tornaria, muito depois, a pousada Villa Krupp (em referência à mansão vizinha). Nada mal: ao lado dos Jardins de Augusto, a casa tem vista para os Faraglioni, a dramática formação rochosa que desponta do mar, inspiração para um sem número de poemas sobre a ilha.

Ali, entre 1906 e 1909, Gorki escreveu diversos contos, artigos e finalizou o romance “A mãe”, entre caminhadas, banhos de mar e esplêndidos cafés da manhã à italiana, desfrutados na citada terraza.

Com seus vinhos vulcânicos, abundantes frutos do mar e laranjas ultradoces, o sul da Itália era frequentado pela aristocracia do norte da Europa, espaço tradicional para desanuviamento mental e clandestinidade amorosa. A intelectualidade de regiões frias não faltava à cena. Basta lembrar como, mais tarde, nos anos 1920, por ali residiram e perambularam em seus anos formativos, amiúde com as respectivas amantes, Walter Benjamin, T. Adorno, A. Sohn-Rethel, Karl Kraus e B. Brecht (ver “Adorno en Nápoles; cómo un paisaje se convierte en filosofía”, de Martin Mittelmeier).

Todo ano, a partir de abril, Capri se tornava palco agitado para a feriados da alta burguesia, da nobreza em todos os níveis, e de medalhões das artes, letras e ciências. Na primeira década do século XX, a ilha já estava pontilhada de butiques, ateliês, cafés e iates atracados, que transpiravam do ócio luxuoso do final da Belle Époque. Havia vários spots memoráveis. Os fregueses do café Zum Kater Hiddigeigei, por exemplo, podiam degustar cervejas bávaras geladas, recém-chegadas de Munique, enquanto discutiam Nietzsche, Freud ou Avenarius.

A villa em que Gorki se instalou era vizinha à imensa propriedade da família Krupp. Os Krupp mandaram construir uma mansão em estilo neoclássico, em que recebiam para soirées sofisticadas e noitadas báquicas a alta casta militar prussiana. Ambiente propício para fechar contratos milionários de armas e munições. O iate da família, um dos maiores do período, ficava baseado em Capri.

Os Krupp eram donos do império tentacular do aço da Europa continental. Dominavam não só o mercado da siderurgia e da metalurgia, como também a indústria bélica. Na gestão do presidente Friedrich Alfred Krupp (1854-1902), tornaram-se líderes na fabricação de canhões, os mesmos que foram usados para esmagar a comuna de Canudos, em 1897. Com Alfred Krupp, a holding passou a investir na produção de encouraçados, U-boats e motores a diesel.

Em 1902, quatro anos antes da chegada dos emigrés da Rússia, Alfred se matou em Capri. Informantes infiltrados na mansão vazaram para a imprensa napoletana as preferências efebófilas do patriarca, em particular, com respeito ao que acontecia com convidados adolescentes do sexo masculino.

Seguiram-se reportagens estrepitosas que circularam rápido pelas rodas da sociedade do Velho Mundo. Na semana anterior a quando tirou a própria vida, dá pra sentir o grau de pressão exercido pelos tabloides, através de uma das manchetes sobre o caso: “Sodoma Caprese”.

Alfred foi sucedido pela filha Bertha Krupp, que daria o nome ao maior obuseiro já empregado na guerra, a “Grande Bertha”, com 42 cm de calibre e 43 toneladas de massa.

Lênin chegou a Capri no verão de 1908. A essa altura, a casa alugada por Gorki tinha se tornado um núcleo de exilados notórios, que incluíam Alexandre Bogdanov, Anatóli Lunatcharski e Vladimir Bazarov, apenas para ficar nos mais célebres. Desse encontro, sobreviveu uma sequência de fotos que mostra o grupo de Gorki na sacada, observando uma partida de xadrez entre Lênin e Bogdanov.

Uma das fotos contava sete personagens no plano, mas ao longo do período estalinista ela foi mutilada, sendo sucessivamente apagados aqueles que iam sendo condenados ao ostracismo pela máquina repressiva da URSS. Se procurar, o leitor vai encontrar algumas versões da referida foto, cuja antiguidade e autenticidade podem ser aferidas pelo número de pessoas no enquadramento.

Bogdanov só não foi suprimido da foto porque seria ridículo deixar Lênin jogando contra um oponente fantasma. Apesar disso, o reconhecimento da autoria de Bogdanov pela tradução laboriosa dos três tomos de “Das Kapital”, ao russo, misteriosamente desapareceu das edições soviéticas do livro de Marx, de 1928 em diante.

Não se sabe quem ganhou a partida capturada na foto. Nenhuma planilha de transcrição de alguma partida de Lênin sobreviveu. No site Chessgames, consta um jogo entre Lênin e Gorki, que teria sido ganho pelo último. Mas só pode ser falso, pois a variante jogada da Defesa Alekhine não era conhecida em 1908 e Gorki tampouco sabia jogar. Bogdanov, sim, era considerado um enxadrista forte, além de médico, filósofo, militante e escritor de ficção científica. Um polímata.

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O primeiro racha do partido foi em 1903, dividido entre bolcheviques e mencheviques. O segundo racha foi interno ao partido bolchevique e ocorreu em 1909, entre leninistas e bogdanovistas. Quando viajou a Capri, em junho de 1908, Lênin já tinha remetido à editora a primeira versão dos manuscritos de “Materialismo e empiriocriticismo” (publicado em 1909). Com retórica inflamada, o livro de mais de 400 páginas justifica a ruptura com a facção bogdanovista devido ao desvio da linha materialista. A heresia dos bogdanovistas teria sido fruto envenenado da obra de Ernst Mach, que nessa época era professor na Universidade de Praga.

No que se tornaria um tropo de caça aos desviantes da ortodoxia, Lênin acusou os seguidores russos de Mach (também chamados de “Makistas”), capitaneados por Alexandre Bogdanov, de se renderem a um subjetivismo burguês e idealista, no limite solipsista, contrariando frontalmente a linha básica do marxismo, que era materialista. Uma capitulação teórica e prática.

No marxismo, segundo essa leitura de Lênin, em última instância, o mundo das coisas determina o mundo das ideias, em vez de a consciência determinar a realidade, como no idealismo.

Qual a diferença filosófica na teoria?

Na verdade, o problema tinha sido mal colocado por Lênin em sua obra apressada. Ao reivindicar um conceito unidimensional de matéria, a matéria enquanto densidade inerte do substrato, Lênin terminava por incorrer ele mesmo em um idealismo dualista, que faz da matéria algo transcendente e absoluto. O coquetel tem sabor menos de Marx do que do Engels de “Anti-Düring”. Desse esquema, decorre a separação entre o mundo objetivo da realidade, lá fora, independente, e o reino do subjetivo, aqui dentro.

Essa divisão vai se decalcar a seguir no interior da crítica da economia política, com a separação entre infraestrutura e superestrutura, ou entre forças/relações de produção e arcabouço ideológico/cultural. Em qualquer caso, conferindo primazia de determinação ao primeiro termo.

Já na obra de Bogdanov, bem mais elaborada e trabalhada em sua trajetória como autor, é preciso superar a dicotomia entre objetivo e subjetivo, assim como entre infra e superestrutura. Toda essa discussão sobre o que veio antes: a matéria ou o espírito, está sobrando, e mais se presta a argumentos de autoridade do que embasamento filosófico.

Materialismo (vulgar) e idealismo tropeçam na mesma pedra, a saber, a hipostasiação de uma realidade última, seja ela a matéria e o espaço, seja a consciência e o sujeito. Daí Bogdanov propor a superação do dualismo realidade/ideologia por um monismo que parta dos fenômenos que se apresentam, no que o bolchevique estava sintonizado com os desdobramentos filosóficos da virada do século, com E. Mach, Bergson ou Husserl.

Para Bogdanov, a natureza existe externamente, claro que sim, mas é caos. E caos que resiste às tentativas de organização, que oferece plasticidade e que demanda técnicas e ciências atrás de eficiência e integração. O trabalho é a maneira com que o ser humano confronta o caos dotando-lhe de formas organizativas econômicas; assim como a cultura o faz com formas ideológicas; e o poder, com políticas. E assim por diante, em múltiplos âmbitos.

A relação sujeito/objeto (espírito/matéria) passa a ser dinâmica, e funciona por limiares adaptativos, em que o organismo busca o equilíbrio energético e informacional com o ‘milieu’. Menos do que substâncias absolutas, trata-se de relacionismo e jogo de fronteiras variáveis.

Em vez de um dualismo transcendente, como no texto leninista de 1909, que corre o risco de culminar numa dialética enfeixada pela instância de poder, Bogdanov desdobra um esquema monista que é ao mesmo tempo pluralista (monismo = pluralismo). Pluralista porque se deixa conduzir pela progressiva organização das múltiplas dimensões do campo da experiência – individual, coletiva ou social, diante das resistências e plasticidades do real (caos).

Não é difícil encontrar na teoria da organização de Bogdanov um antecedente para a Análise de Sistemas no século XX ou então a Cibernética de N. Wiener, com suas gradações de energia e entropia, como notado por James D. White (na monografia sobre Bogdanov, intitulada “Red Hamlet”).

Ao aplicar suas ideias no espaço projetivo da ficção científica, nos dois livros ambientados em Marte, Bogdanov descreve o drama de uma civilização defrontada com o caos sistêmico decorrente da exaustão dos recursos. No fim, os marcianos socialistas se precipitam ao umbral da extinção. Entre muitos assuntos, Bogdanov fala de desflorestamento e matriz energética. Recentemente, em “Molecular Red” (2016), McKenzie Wark escreveu que a atualidade de Bogdanov consiste em ter formulado o problema do Antropoceno, isto é, a era geológica hodierna, em que os humanos se tornaram uma força geofísica planetária e a Terra ela própria uma vasta força social, desestabilizando as condições-limite da vida.

Ok, mas qual a diferença entre Lênin e Bogdanov em 1908, para a prática em seu tempo?

Ambos os revolucionários se veem constrangidos a reelaborar o marxismo, em face das lições aprendidas com a Revolução de 1905 e seu rescaldo. Mais do que disputas por protagonismo ou querelas individuais, se digladiam duas concepções distintas da construção do socialismo.

A partir de 1905, em seus escritos, Lênin aperta o nervo da luta política. Lênin entende que a autonomia do político assume primado vital para ação bolchevique e que somente uma vanguarda aferrada à tomada do poder do Estado é capaz de dar consistência à revolução. Uma vez colocada em marcha a revolução, somente essa vanguarda profissional, militarizada, vai assegurar a sua sobrevivência, diante do cerco que certamente virá. Lênin, o jacobino.

Já Bogdanov entende que apenas um processo englobante e multíplice, que poderíamos chamar de civilizacional ou Kultur, pode conduzir a revolução na direção da utopia. Não significa a ausência da relevância da luta política, mas não lhe confere a centralidade atribuída por Lênin. Ao contrário, chez Bogdanov, sem revolução social e cultural (poderíamos acrescentar: e ecológica), não há revolução política e vice-versa.

O problema é mesmo de organização, mas esta depende de princípios imanentes de formação das consciências e ideologias a partir da ambiência concreta da vida comum. A ciência e o cientista viram comutadores de mundos. E não vem de fora, por meio de um partido-guia das massas. Ao partido cabe a pedagogia, porém não ocupar o centro de poder de maneira perene. Bogdanov, o paideuta.

É certo que o racha entre Lênin e Bogdanov foi vencido pelo primeiro, ao constatarmos como o partido bolchevique assimilou a linha leninista e suprimiu a segunda. Embora limitado enquanto filosofia, “Materialismo e empiriocriticismo” se tornou a cola do marxismo-leninismo, isto é, do que se tornaria a ideologia oficial do Estado, um livro escolar obrigatório. Já a polivalente obra de Bodganov terminou eliminada do cânone socialista e virou cult, com talvez uma dúzia de especialistas no mundo.

Não tenho qualificação nem estudo para passar um veredito sobre o quanto o realismo (nada) ingênuo de Lênin viria a impactar o futuro do partido e da União Soviética, depois da revolução de 1917. O quanto o tom autoritário e sectário de sua “filosofia”, fundado em verdades veementes e absolutas, desaguaria na DiaMat estalinista. Do citado libelo anti-Makistas Russos, em “Materialismo e empiriocriticismo”, se pode depreender que Lênin meramente tolerava heterodoxias e modernismos, enquanto não colocassem em risco a unidade política de sua liderança pessoal. A vulgata materialista convertida em cânone decerto contribuiu para a entronização do Realismo Socialista em compulsória estética de estado, a partir de 1934, no qual Stálin ominosamente incluiu Gorki na posição de patrono. Já o empiriomonismo de Bogdanov fornecerá insumos para o Proletkult (“Cultura Operária”), as vanguardas russas e o cinema de um Dziga Vertov, pelo menos até serem todos devidamente reenquadrados na ortodoxia.

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Em 1908, Lênin não viajou para Capri para buscar um acordo com os bogdanovistas, como desejado por Gorki, que se ofereceu como mediador. Naquele momento, o dissídio era irreconciliável, as engrenagens do bote pela ala leninista estavam engatilhadas para mais um defenestramento. O próprio Lênin resistia à ideia de passar alguns dias do verão em Capri, como relatado nas memórias de sua esposa Krupskaya, escritas em 1933. A seu passo, Gorki conta que, ao chegar em sua villa cinematográfica, Lênin foi taxativo em informar que não entraria em polêmicas políticas ou filosóficas.

Mas se não foi para buscar uma reconciliação, qual o motivo real da viagem do líder bolchevique?

Em “Scacco allo zar” (2012), Gennaro Sangiuliano apresenta duas hipóteses alternativas para a visita de Lênin à pérola mediterrânea. Uma é plausível. A outra, pura especulação.

A hipótese plausível é que, independente do que viria a acontecer, Lênin queria reunir informações sobre aqueles que, em breve, se tornariam inimigos. Queria ouvi-los, queria medir pessoalmente o estrago a ser causado pelo racha do ano vindouro. Entrementes, Lênin se entregou ao mundano. Passou seus dias em Capri com a amante, em veleiros pela costa, jogos de xadrez e tertúlias regadas aos vinhos da Campânia.

No livro em italiano, Sangiuliano explica como o retrato de um Lênin totalmente voltado à revolução, zoon politikon arquimilitante em tempo integral, é um mito fabricado pelas hagiografias pós-revolucionárias. Não abandonou seus modos aristocráticos em momento algum: esquiava, praticava alpinismo, pescava, caçava e frequentava óperas e restaurantes finos. Afinal, a grande maioria dos revolucionários da modernidade vinha mesmo de camadas elitizadas e intelectualizadas da sociedade. Seus admiradores mais idólatras sempre vão dizer que, no fundo, Lênin praticava esportes ao ar livre exclusivamente para se preparar à revolução, emulando o personagem Rakhmetov, do romance de Nikolai Tchernichevski.

A segunda hipótese sobre a viagem a Capri em 1908, segundo o cap. VI de “Scacco allo zar”, é que ali Lênin já procurava a interlocução com o estado prussiano, para forjar as boas relações com os bolcheviques que, mais tarde, resultariam em Brest-Litovski (e por linhas tortas, décadas depois, no Molotov–Ribbentrop). A ilha de Capri era epicentro de espiões de várias agências de potências imperiais, interessadas com a grande movimentação de autoridades e ricaços. Talvez por coincidência, no mesmo verão em que Lênin esteve na casa de Gorki, ninguém menos do que o marechal Paul von Hindenburg (então coronel-general) estava hospedado na mansão ao lado, na Villa Krupp.

Na narrativa que lembra novela de espionagem, um obscuro revolucionário bielorusso chamado Helphand-Parvus teria amarrado as pontas desse encontro secreto entre Lênin e os alemães.

Essas são conjecturas com grande teor especulativo pelo autor. Mas não de todo inverossímeis, nesse quebra-cabeça intrincado de manobras táticas e filosóficas entre as duas revoluções russas, de 1905 e 1917.

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