Por Silvio Pedrosa, UniNômade, professor do ensino fundamental da rede pública municipal
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Desde que o consórcio estado-mercado bloqueou o movimento de junho de 2013, fazendo reconduzir a política ao jogo estrito da representação institucional, as análises à esquerda e à direita voltaram ao terreno confortável no qual descrevem e narram os acontecimentos tal e qual um teatro de segunda categoria, no qual os personagens agem estritamente de acordo com suas representações sociais. As análises, desde então, na maioria das vezes, não foram capazes de superar o apelo ao sociologismo rasteiro, quando não ao maniqueísmo aberto.
O solitário manifestante que pôs-se de pé, ontem, diante do Congresso para exigir a queda de Temer, é a figura que ilumina não só o equívoco das interpretações representacionistas, como abre caminho para que elas sejam qualificadas como a operação policial do pensamento que são. Diante de tantas análises sobre quem representam aqueles “velhos homens brancos” do Congresso, escapa não só o fato de que as eleições são uma obra de engenharia social e política muito eficaz (o que nossos analistas não podem afirmar, sob pena de “criminalizar a política”), como principalmente a questão primeira da ação política e sua consequência lógica: a questão da organização.
Porque, ao fim e ao cabo, não há explicação representacionista ou sociologismo que explique um presidente acossado por denúncias e rejeitado pela esmagadora maioria dos brasileiros não tenha contra ele uma intensa atividade destituinte (que, suprema ironia, ficou a cargo unicamente da Rede Globo e de alguns atores sem expressão representativa e organizativa). A única explicação capaz de dar conta desse silêncio ensurdecedor é aquela que se interroga sobre a razão pela qual nossas organizações (partidos, movimentos e sindicatos, à esquerda e à direita) não agem. Para a inação da direita não é difícil imaginar razões: ela está no governo, é a fração dirigente a manobrar o edifício do fisiologismo pemedebista. Sobre o imobilismo da esquerda, entretanto, é preciso pensar um pouco mais.
Para tanto, voltemos ao dia 24 de maio. Naquele dia Brasília ficou em chamas e Temer atingiu o ponto máximo da ilegitimidade ao convocar as forças armadas contra os protestos por sua saída — sendo censurado por isso à esquerda e à direita. O espetáculo de sua ilegitimidade parecia condenado ao fim. E, no entanto, quase três meses depois, ele parece ter contrariado a lei da gravidade. O debate que se seguiu àquele 24 de maio é ilustrativo: a velha esquerda, do alto das cúpulas sindicais e partidárias, não tardou em condenar os acontecimentos, isolando e criminalizando a mobilização que havia escapado ao seu controle. De lá pra cá, as mobilizações minguaram (incluindo-se aí as paralisações gerais realizadas contra as reformas de Temer) e desapareceram.
É esse desaparecimento que demonstra e esclarece as razões pelas quais não só Temer não começou a cair ontem, como não cairá. À velha esquerda brasileiro, e todo seu aparato representativo, interessa apenas a política na medida estrita segundo a qual as ações são passíveis de serem controladas segundo os fins de suas direções — mesmo que isso contrarie a esmagadora maioria dos brasileiros. “Fique Temer, mas piore” parece ser o lema que garantirá o gancho do marketing eleitoral em 2018. No xadrez do lulismo, o corpo dos trabalhadores é um trampolim para o Planalto e só vale mobilizar-se seriamente por uma razão: não ficar sem sua estrela.
Diante dessas movimentações, seguimos lendo nossos intelectuais afirmarem e reafirmarem seus diagnósticos tautológicos segundo os quais a classe média é a classe média, a direita é a direita, a esquerda é a esquerda, etc. Nossos mestres do pensamento mobilizam sua autoridade para travar a possibilidade do pensamento. Pois pensar a atual situação exigiria esclarecer como a representação se realiza, ou seja, como organizações e indivíduos agem como se estivessem em nossos lugares, e portanto, como a organização se realiza, ou seja, como as nossas próprias ações são organizadas ou, como é o caso atualmente, desorganizadas. Que eles sequer falhem em fazê-lo — pois não tentam –, esclarece o papel dos mediadores intelectuais do poder como fração do establishment político-partidário, tal como se apresenta, por exemplo, a adorniana midiática que, diante das bravatas de Lula sobre punir o Procurador Geral da República por suas denúncias contra Temer, escreve que o primeiro é o “anti-Temer”.
No teatro da representação brasileira pós junho de 2013, construído por uma sucessão de golpes de força destinados a fazer o demônio da multidão voltar para dentro da garrafa, as operações policiais não se resumiram à repressão física, mas se deram também através da mobilização de símbolos, bandeiras e cores para construir “análises de conjuntura” que, a pretexto de explicar uma polarização, acabava por inventá-la (num jogo em que o delírio anticomunista sempre operou em conjunto com o identitarismo de uma esquerda nostálgica). O demônio, enfim, voltou para a garrafa e os artífices da ordem podem se voltar novamente para seus conflitos faccionais, enquanto tentam autopreservar o sistema da última ameaça: uma Lava-Jato já bastante enfraquecida. Iniciada nas eleições de 2014, a guerra aberta do establishment político-partidário contra as sobrevivências de junho de 2013 vai terminar com a paz geral das eleições de 2018.
O homem — André Rhouglas, 56, pedreiro, garçom, pintor e desenhista de faixas de Ponte Nova (MG) — que ontem, sozinho, se prostrou diante do Congresso é o símbolo último da resistência a essa sucessão de golpes que derrotou a rebelião dos irrepresentados, aqueles que diante da tragédia de uma representação meticulosamente construída como fortaleza antipopular decidem agir. Como o bárbaro kavafiano, ele era a redenção, mas já não vem. Porque foi morto em alguma viela ou beco.
Silvio Pedrosa é membro da UniNômade e professor da rede pública municipal.