Antonio Negri nos deixou neste último sábado, 16 de dezembro. A Universidade Nômade presta uma pequena homenagem ao mestre que nos trouxe imensas contribuições. Com Toni, rimos, bebemos, escrevemos, publicamos: parte desse trabalho se encontra no site da Universidade Nômade (https://uninomade.net/?s=Antonio+Negri)
Grazie, Toni!
“Ti xe Dotor in tea Sorbona” | Giuseppe Cocco
O afastamento político e pessoal, que aconteceu no final de 2014, poderia ter relativizado o choque de sua partida. Na realidade o impacto é meio paradoxal, pois agora que a ausência se tornou efetiva um turbilhão de souvenirs me vem à cabeça, um monte de episódios, frases e sobretudo gargalhadas que tinha até esquecido. Um monte de situações “pessoais” que agora tomam uma outra dimensão.
Quando cheguei em Paris, no início da década de 1980, além de meus companheiros da autonomia de Pádua, tinha duas “frequentações”: por um lado, um circuito de exilados chilenos (e alguns argentinos) que frequentavam um bar-restaurante chamado Rayuela no bairro do Sentier; pelo outro, um companheiro de Turim, Carlo Vercellone (que vinha de um outro segmento de movimento, Lotta Continua e hoje é um professor de economia da Universidade de Paris 8). Com os amigos de Pádua, tínhamos que resolver as questões imediatas de sobrevivência: encontrar algum trabalho e alguma fonte renda. Com Carlo, passávamos muito tempo circulando por Paris como náufragos à deriva, um radeau de la Méduse feito de muitas solas de sapatos e inúmeras taças de (péssimo) café parisiense para poder usar as toilettes. Depois de um tempo, Carlo e eu conseguimos voltar a estudar: ele foi terminar economia e eu ciências políticas. Juntos, passamos a frequentar a chamada escola francesa da regulação, as aulas de Benjamin Coriat, Alain Lipietz e sobretudo o seminário do Cepremap animado por Robert Boyer. Carlo era muito estudioso e nas conversas com ele eu me atualizava sobre autores, bibliografias. As reflexões teóricas e as pesquisas dos regulacionistas tinham como marco, por um lado, a modelização da trajetória de crescimento que tinha emergido depois da grande depressão, com o New Deal nos Estados Unidos e, no segundo pós-guerra, na Europa Ocidental e no Japão: eles falavam se um regime de acumulação taylorista articulado a um modo de regulação no cerne do qual estava uma relação salarial dita “fordista”: a repartição dos ganhos de produtividade permitia o crescimento de produção e consumo em massa. Pelo outro, eles tentavam apreender as dinâmicas do regime de acumulação que estava se afirmando na crise do fordismo e procuravam novos modos de regulação. Para Carlo e para mim, isso era extremamente estimulante e ao mesmo tempo nos incomodava: nossa vivência não se encaixava nessa visão do fordismo como um período “regular”. Inspirados no livro de um demógrafo (Jean Fourastié) eles consideravam as 3 décadas fordistas (1945-1975) como os “trintas (anos) gloriosos”. Nós achamos “gloriosas” nossas lutas, apesar da maluquice do desfecho. Para nós o motor do fordismo não eram os ganhos de produtividade, mas a dimensão conflitual da relação salarial. Era o paradoxo que tinha acendido a intuição de Mario Tronti: as lutas operárias eram mais fortes nas democracias liberais do que nos países socialistas onde elas eram banidas.
O fato é que nós tínhamos lutado dentro e contra o fordismo que os regulacionistas estavam preocupados em reconstruir em outros termos, nas novas condições: no novo regime de acumulação.
Por um lado, os regulacionistas mobilizavam toda uma série de ferramentas conceituais oriundas da macroeconomia keynesiana e da sociologia; pelo outro, podíamos enxergar uma série de pontos de contato sobre como o operaismo (Tronti) tinha se apropriado da noção americana de Progressive Era. Trabalhamos assim essa ideia de que entre a regulação e o operaismo havia muitos pontos em comum, pois as duas escolas se concentravam a estudar a relação entre o regime de acumulação taylorista (de fábrica) e o modo de regulação (fordista) como integração da pressão operária dentro do desenvolvimento do capital. As duas colocavam no cerne a relação entre trabalho e capital: o operário- massa (taylorista) no caso do operaismo, a relação salarial fordista no caso da regulação.
Ao mesmo tempo, víamos um grande diferencial de método: os regulacionistas procuravam por um novo regime de acumulação (na época os candidatos a esse estatuto eram o Toyotismo (japonês), o modelo californiano ou os distritos da terceira Itália). Nós dizíamos buscávamos pelas lutas de novo tipo. Sobretudo, nós dizíamos que a “regularidade” do período fordista era fruto de uma visão a posteriori do que se sua dinâmica real. A priori, em sua dinâmica, o fordismo tinha sido um período de grandes lutas e foram essas lutas que mantiveram viva sua dinâmica. Fomos assim escrevendo um texto (meu primeiro texto académico). Encontramos o apoio de Benjamin Coriat e o apresentamos numa sessão do seminário do Cepremap. Para desempenhar o papel de discussant, chamamos Yann Moulier-Boutang.
Quando Yann recebeu do Cepremap nosso paper, ele não associou nossos sobrenomes aos “italianos” que tinha cruzado em alguma reunião e assim ele ligou para o Negri, dizendo que havia dois “novos” pesquisadores italianos que usavam uma abordagem “operaista” para discutir a crise do fordismo no âmbito do prestigioso laboratório do CNRS.
Assim, em algum dia de novembro de 1988, Yann e Negri apareceram no dia da apresentação. Foi uma situação meio engraçada: por um lado, ficaram até decepcionados porque os “novos italianos” eram apenas jovens, mas velhos e conhecidos militantes; pelo outro, eles ficaram superfelizes de ver nosso trabalho. O resultado foi que passamos a trabalhar mais juntos com Negri (e Yann) nessa procura por uma leitura do pós-fordismo que não se enquadrasse nas explicações em termos de neoliberalismo, nem se limitasse à procura por regulação. O desafio era duplo: explicar a crise do fordismo como algo determinado pelas lutas dos operários fabris e apreender o pós-fordismo (onde o neoliberalismo era apenas um regime discursivo) como um regime de acumulação que reconhecia essas lutas e exatamente por isso visava dominá-las.
O que nos interessava era entender essas formas de cooperação social produtiva que fugiam à fábrica e à relação salarial e apreender a produção de subjetividade (as lutas) que iam se formando diretamente na sociedade, nos serviços, na reprodução. Negri era, nesse sentido, um gigantesco coeficiente multiplicador pela profusão de leituras e de conceitos: o trabalho imaterial, o general intellect, a multidão e depois veio Império.
Nessa fase, Negri não aceitava a doxa da esquerda que remetia tudo ao “neoliberalismo”. Nessa esteira, vieram alguns artigos publicados na Futur Antérieur e minha tese. Quando a defendi (em 1993), a única pessoa que chamei para o público, foi Negri. Lembro ainda de como foi engraçado o almoço de comemoração, nós dois num restaurante perto da Sorbonne, e ele me dizendo em dialeto veneto que agora “ti xe dotor in tea Sorbona”.
Barbara Szaniecki
O conheci em 1992. Com Giuseppe passei a acompanhar seus seminários aqui mesmo em Paris. Em 2003, no início do primeiro ano do governo Lula e primeira viagem após sua saída da prisão, Toni veio ao Brasil a convite de Beppo que organizou mil e uma atividades. Encontrou-se com muitos de nossa Universidade Nômade recém-nascida, conversou com ministros, e falou sobre Império (já publicado) e Multidão (ainda por vir). Foi por conta desse diálogo que Toni se interessou pela América Latina e mais especificamente pelo Brasil, até então fora da rota. E assim, com Beppo escreveu Glob(AL) : biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Heterodoxa, sua proposta teórica (e militante) não era naturalmente bem vinda no campo da esquerda, havia uma enorme desconfiança com relação a pensamentos e práticas não submissas a partidos entre outros aparatos poderosos. Ainda assim, no fluxo do Fórum Social Mundial e manifestações altermundialistas, alguns percebiam o potencial de renovação desse campo.
Para mim, essas trocas trouxeram a mais total inversão de perspectiva teórica e prática da minha vida, abria-se uma visão totalmente livre e libertária, motivo pelo qual sou muito grata a ele. Creio que aquele era um momento de total reinvenção de Toni: não apenas aquele balanço típico de quem chega aos 70 e sim, verdadeiramente, uma reinvenção da vida, da sua e daqueles que estavam a seu lado. Contagiante, constituinte. A Toni dediquei meus modestos escritos (Estética da Multidão, Civilização Brasileira, 2007; e Outros Monstros Possíveis, AnnaBlume, 2014). A filosofia e teoria política não eram de fácil entendimento, procurei apreender algumas de suas propostas a partir do que ocorria nas ruas nas manifestações, nas assembleias, nos momentos constituintes. Uma contribuição de um ponto de vista estético. Muitos amigos e amigas se inspiraram nesse momento de intenso diálogo.
Dez anos depois, a partir de 2013, e mais especificamente com as Jornadas de junho 2013, a divergência se instalou. Houve um enorme estranhamento: afinal de contas, era a sua teoria que agora se materializava nas ruas. A partir daquele ano, o desmoronamento do ciclo progressista latinomaericano passou a colocar em cheque, na prática, muitas daquelas propostas teóricas e segue colocando-as em cheque neste ano de 2023 prestes a se encerrar em um estado de polarização constante e guerras no horizonte. Essa distância fez-se e faz-se ainda necessária, portanto, para seguir tentando entender e transformar o mundo mas resistindo também à homogeneização do pensamento (e resistindo aos invejosos, claro). Um método imanente à vida. Apesar do estranhamento diante do alinhamento à hegemonia vigente… grazie, Toni, grazie!
(Acima, foto em nossa casa, no Rio de Janeiro, qualquer ano entre 2003 e 2013).
Talita Tibola
Fiquei comovida ao saber da morte de Toni Negri. As primeiras palavras que li de Deleuze eu as li a partir das perguntas de Negri: “como pensar uma comunidade sem fundamento mas potente, sem totalidade mas, como em Espinosa, absoluta?” Esse é um recorte de uma das perguntas dessa entrevista que foi nomeada Controle e Devir no livro Conversações, traduzido por Peter Pal Pelbart. Pra dar uma dimensão pra quem não me conhece: Deleuze e Guattari marcam todo o meu percurso como psicóloga e a minha relação com a arte-pesquisa-escrita. Já a leitura de Toni Negri, a partir da noção de Comum, alimentou uma rede de relações em Santa Maria – RS com desejo de coletividade e que fabulou e mobilizou o que no início chamávamos de Território Independente, uma rede de pessoas interessadas na criação e vida comum, e que depois se institucionalizou como Macondo Coletivo. O coletivo enquanto constituído, não existe mais, mas enquanto constituinte a rede reverbera até hoje. Essa rede não é a que me traz ao Rio, mas aqui reverbera, quando conheço pessoalmente Barbara Szaniecki e a Rede Universidade Nômade, de quem líamos e debatíamos os textos que partiam do pensamento de Negri e que hoje é uma rede muito importante pra mim também. Eu conheci o Negri pessoalmente, se me lembro bem, eu fiz a tradução simultânea de uma conversa com ele na PUC-Rio inclusive. Ele é um ótimo companheiro de mesa de bar pra tretar e com quem tretei mesmo, mas quando penso na partida dele o que me toca é o poder de mobilização do pensamento dele e que na minha insignificante mínima vida teve um efeito de conexão com grandes pessoas da minha vida.
Bruno Cava: ELE FOI MEU MESTRE
Haverá inúmeros obituários, balanços, ensaios, mas me permito uma nota personalíssima.
O Toni Negri de meados dos anos 2000, quando o encontrei, pela primeira vez, em uma fala numa casa do morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, foi o mais próximo que conheci em minha vida de um homem da Renascença.
Uma inteligência viva, voraz e universal, era essa a minha impressão. Anos mais tarde, ao resenhar “Commonwealth”, aludi a essa ocasião sob o título “Amor e pós-capitalismo”. Por que, sim, Negri naquela ocasião falava da dimensão política do amor, amor cupiditas, que se recria e reinventa a partir da solidão, da pobreza, do deserto.
Nas intervenções, razão e ‘passione’ em Toni se misturavam sem jamais perder a serenidade equilibrada do conjunto, sem flertar com obscuridades ou equivocidades. Como G. Bruno ou Galileu, Toni não permitiu em passagem alguma que a experiência dolorosa de seus piores momentos se infiltrassem no pensamento. Não se deixou envenenar com os dissabores da vingança ou do rancor, não hesitou em metabolizar as transformações do tempo. Era um filósofo atravessado de cabo a rabo pela tessitura histórica, dizia-se apenas um leitor e revolucionário de seu tempo, e de fato transitou e se banhou pelo húmus das lutas de rua, dos debates de púlpito e dos calores de assembleia, como Maquiavel ou Gramsci, mas nem por isso ficou pesado ou carrancudo. Os anos de chumbo, ao fim, lhe foram leves, o que exige arte e manha. Seguia vivendo assim mundanamente, tomando seus vinhos, discutindo em mesa de bar, fofocando sobre cupinchas e desafetos, teimoso, orgulhoso, alegre a toda prova.
Todos os períodos de derrotas e tribulações que atravessou, e foram alguns — a perda de ‘compagni’, o esmagamento político, a amargura das falsas acusações, a ascensão ao poder de quem mais desprezava — não insuflaram nele, tampouco, qualquer derrotismo. Desafio quem ler com atenção a sua obra monumental a encontrar uma única passagem que exale melancolia.
Preso a primeira vez em 1979, depois em presídio de segurança máxima, reinventou-se, antes de qualquer coisa, pelo estudo. Recriou seu pensamento a partir das fontes que conseguia contrabandear para dentro da cela, em condições de extrema insegurança, humilhação e falta de perspectivas. A trajetória de Toni Negri testemunha, para mim, a grande potência do estudo, a sua força de salvar-nos das piores condições. É mesmo capaz de mudar uma vida.
Atrás das grades, Negri estudou intensamente Spinoza, um Spinoza em boa medida filtrado por Deleuze, mas nem por isso menos original, em particular, quanto à tese da segunda fundação do spinozismo. Um Spinoza inusitadamente marxiano, e um Marx que se tornava ao mesmo passo spinozano. Desse estudo en abîme, vieram pelo menos três livros, a começar pela quebra de paradigma nos estudos spinozistas em geral, que foi “Anomalia Selvagem”.
Na mesma temporada no inferno, estudou o bíblico “Livro de Jó”, a partir do que surgiria o livro “A força do escravo”, e também estudou com afinco a obra do poeta Giacomo Leopardi. Por assim dizer, o Hölderlin “italiano”, embora para Negri o que interessava era o Leopardi europeu e iluminista, e não o poeta nacional reconstruído pelo Risorgimento. Posição especial para Negri é ocupada pelo poema de resiliência e pessimismo alegre, “La ginestra” (ou “Flor do Deserto”), de resto magnífico, eu só pude apreciar mesmo depois de imergir no idioma. Essa obra poética de Leopardi, do século XIX, serviu ao filósofo encarcerado para um longo e virtuoso livro, publicado quando em liberdade, em 1987, não por acaso intitulado “Lenta ginestra” (lamentavelmente ainda sem edição brasileira).
Quando presenciei a fala de Toni em meados dos anos 2000, acabava de ser lançado, em português, o seu “Alma Venus Multitudo”, que escrevera na segunda estação na prisão italiana, por causa de acusações requentadas. As provas se resumiam a delações premiadas de ex-companheiros arrependidos. O recém-lançado livro, em 2003, se desdobra ao modo geométrico, em proposições, à semelhança da Ética de Spinoza.
Àquela altura, no limiar dos setenta, Negri bem podia voltar-se às memórias, a transmitir com sabedoria o legado das lutas autonomistas que culminaram no Movimento de 1977, dos entrelaçamentos com os ‘soixante-huitards’ (Guattari, Deleuze, Foucault, seus amigos…), da espantosa (e insuperada) reelaboração do sistema-mundo em “Império” e “Multidão”, mas não. Tudo nele era projeto, construção, senso de urgência. Tudo continuava em aberto, prestes a.
Sempre discordei de François Zourabichvili, quando escreveu que a ausência de projeto é a condição negativa do que Deleuze chama de “crer no mundo”. Como se sabe, o deleuziano Zourabichvili demarca os pensamentos de Deleuze e Negri ao atribuir ao primeiro um viés político puramente tático de escaramuças e desestabilizações locais, enquanto o segundo apostava (ainda? resíduo voluntarista?) em um ‘telos’, uma marcha avante dos movimentos, a multidão.
Pois, como já escrevi noutra parte, não enxergo essa linha divisória forte, me soa quase como um rótulo preguiçoso do Zourabichvili, não. A multidão é tão conceito “otimista” quanto o proletariado em Marx, ou a democracia absoluta em Spinoza, e o que em Deleuze é ‘pessimisme joyeux’ também pode ser encontrado por toda parte em Negri, na incessante criação apesar de tudo, na inquietação insuprimível diante da reabertura do tempo histórico, na imaginação da obra, e na reimaginação de si pela obra. Tal como um humanista renascentista realizava a síntese entre passado e presente apontando para o novo, a exemplo, entre outros, de Pico della Mirândola (citado por Negri e Hardt em “Império”).
A multidão, limiar problemático e horizonte insuperável da filosofia política no século XXI. Daí, mais rigorosamente conceitual, mais “problematizante”, do que o conceito de ‘Comum’, fácil e rapidamente recapturado pela doxa antineoliberal vulgar.
Mas nem por isso o conceito é teoricamente otimista: multidão quando devém Uno se torna populismo; quando o medo muda de lado, devém Estado; e multidão pode inclusive desembocar no fascismo, quando devém polícia (neste caso, se dá em dois tempos: primeiro as singularidades devêm todo mundo e depois todo mundo vira polícia). De toda sorte, para começar, se ainda há capitalismo operativo hoje, se ele ainda funciona, habemus multidão, o conceito de classe à altura.
Definitivamente, Toni não apreciava o barroco. Era um temperamento de meridiano classicismo, o que explica, aliás, parte do êxito estrondoso na parceria com Michael Hardt. O encontro com Hardt levou Negri a encontrar a si mesmo, na fluência de uma prosa clara e certeira. Quando, certa vez, lhe confidenciei sobre o sabor neobarroco da conjuntura pós-Junho (de 2013), me alertou que o barroco era a exaltação do poder e a internalização da crise. Depois fui achar, em “Anomalia selvagem”, que Toni tinha por paradigma o Seiscentos holandês, em detrimento do italiano, justo porque aquele não conhecia o barroco — como se sabe, na arte é o século de Caravaggio, Bernini, Borromini ecc.
Nas Províncias Unidas em que viveu Spinoza, a grande crise do tempo não se internalizou na forma de uma teoria do poder e suas mediações transcendentes, como ocorrera nos êxtases e agonias da Roma barroca ou, bem mais tarde, no Romantismo Alemão (interiorização exasperada da Revolução Francesa).
Toni não aceitava, portanto, que a multidão fosse qualificada como barroca, pois aí já não havia mais. A multidão era de um classicismo pleno, luminoso, o mesmo de seu Spinoza, seu Marx ou seu Leopardi.
Não tenho nenhum pudor em reconhecer que Toni foi meu mestre, que soube me tocar com uma novidade radical, que me impactou nas maneiras de pensar e viver. A mim e a muitos outros. Como escreveu Deleuze a propósito de Sartre, triste a geração que não tem mestres. Os da nossa foram Negri, Graeber, Butler, Haraway, Holloway… Corresponderam à modernidade que viríamos a nos tornar e lograram fabular um sentido aos nossos entusiasmos difusos, que assim puderam se derramar no mundo, como práxis.
Fabricio Toledo
Compartilho com muitos dos amigos que tiveram no pensamento e nas obras de Antonio Negri uma grande interlocução, a grande tristeza nesta despedida. Mas, assim como a maioria deles, tomo esta oportunidade para uma celebração à vida e à potência da vida. A essa alegria que Negri imprimiu em seus trabalhos, que sempre foram obras que abriam portas ou desvios ao menos. Evidente sua curiosidade pelo mundo, pelos acontecimentos, pelas pessoas. Uma curiosidade que parecia renovar seu pensamento, recriar uma vontade de estar junto. Poder Constituinte é um dos livros mais bonitos que já li. E neste livro, além da erudição enorme, se pode notar essa mirada voltada para a potência da vida. Através de bons amigos cheguei a Negri . E por causa de Negri, conheci tantos outros.
Priscila Pedrosa Prisco
Uma singela homenagem ao mestre Toni Negri que foi minha maior referência política e teórica. A tristeza insiste em chegar enquanto escrevo e recordo quantas marcas seu pensamento deixou em minha vida.
O primeiro contato que tive com sua filosofia no ciclo de lutas no Rio de Janeiro, em 2013, foi através do professor Giuseppe Cocco, meu grande professor a quem devo quase toda a minha formação intelectual.
O contato com a filosofia negriana não foi somente uma experiência teórica, foi uma descoberta de que a ação política era também uma paixão do comum em um contexto de revolta.
Era Junho de 2013, estávamos marcados por uma crise durante a preparação dos grandes eventos no Brasil, a classe trabalhadora chegava ao limite do que podia suportar dentro do contexto político, social e urbano que se apresentava. A corrupção, a especulação imobiliária, a privatização dos espaços públicos, as remoções etc. Ali, os velhos esquemas de organização da esquerda não eram mais suficientes, vimos o Brasil explodir com força, como aconteceu em 1968.
O aprofundamento das revoltas urbanas de 2013 não podia ser compreendido por chaves conceituais diferentes daquelas abordadas por Negri: autogestão, reapropriação dos espaços públicos, enfim, um novo ativismo nascia e uma nova forma de ação política conectava a multidão ao comum.
Seu pensamento não é um dogma e Negri não é um líder, é um mestre cujo poder está no método, se reapropriar de sua teoria e ir além, como ele fez com Marx, e arrisco dizer que ele também desejaria que esta fosse a interpretação da sua própria teoria. É uma lição e tanto, o que fica é poderoso, indestrutível e revolucionário.
Através do seu pensamento lancei um novo olhar sobre o mundo, sobre as relações com o mundo, o compromisso com o comum, mas principalmente, um comunismo “além dos limites das condições dadas ao resistir”.
Com esse ímpeto de rejeitar determinadas lógicas indefensáveis, muitas delas impostas pelo meu campo político, que passei por um longo período de conflitos e rupturas. O país polarizado e a recusa de ceder a um partido ou organizações políticas foi a lição mais libertadora, permitiu afirmar minha singularidade, minha autonomia.
Assim mantive meu ativismo, depois, na academia, entendi o peso de se afirmar “negriana” no ambiente acadêmico. Não foram poucos os deboches, as indiretas, as tentativas de desqualificação dos conceitos negrianos dentro do curso de sociologia: “pós-moderno”, “pouco marxista”, “interpreta Marx errado”, “é maoísta”, “pago pela CIA”, “neo-liberal”, “mentor intelectual do fascismo de junho de 2013” e milhares de adjetivos e juízos pejorativos de pessoas que sequer leram a orelha de Império.
Mas foi contra tudo que eu mantive minha linha epistemológica, tanto no mestrado como no doutorado, perdi a minha orientadora do doutorado pois o maldito e herege pensador italiano não era digno para a tradicional masturbação de Marx.
Negri foi capaz de apresentar um diagnóstico preciso, muitos são ainda tabus dentro da esquerda brasileira, seu pensamento me treinou para fazer as coisas com autonomia, para não ter medo de inventar, mas sem me separar da capacidade de compartilhar em todos os lugares, seja de contar um dia na de Manifestação na Maré ou escrever um texto na internet ou, ainda, inventar formas de se organizar.
Combinar conhecimento teórico, paixões, desejos, comportamentos, experimentações, linguagem e comunidade foi o melhor que a teoria negriana me deu.
Por esse caminho eu até pude sonhar com outros mundos, experimentar formas, lutar e saber que é possível “assumir a derrota sem ser derrotado”. As lições de Negri me aproximaram dos meus companheiros da Universidade Nômade e estes me mostraram a importância do debate, do pensamento crítico e da amizade.
Salvador Schavelzon | O adeus a um militante comunista
Fiz o ensino médio na educação pública argentina da época do Menem. Os dois grandes partidos nacionais estavam desmoralizados, surgia um progressismo da dissidência peronista que buscaria chegar à presidência em 1995 e acabaria mal. Aliado em 1999 da União Cívica Radical e envolvido em escândalos de corrupção, o progressismo proto kircherista do Frente Grande mostraria já os limites para superar o consenso neoliberal.
Entre os estudantes crescia a esquerda independente e autonomista simpática dos movimentos de desempregados e os protestos sociais de sindicatos não pelegos. Era nesse espaço onde se sentia a Influência do zapatismo, dos movimentos latinoamericanos e de leituras como a do Negri y Hardt, sendo a autonomia o conceito que guiava uma imaginação política de ruptura que não tinha respostas mas sim intuições que afastavam das velhas esquerdas partidárias, do leninismo organizativo, e desse progressismo morno e impotente. A degeneração política do peronismo e falta de respostas do poder frente a crise, permitia fugir do desencanto crítico de quem achava que não era possível fazer nada. A força dos movimentos latinoamericanos acumulavam poder social e anunciavam um fim de época contra o governo neoliberal que tinha se imposto com a democratização pós ditadura.
Negri era leitura obrigatória na faculdade e nos grupos que militavam nesse espaço movilizado. Depois do Império, o Poder Constituinte e os textos sobre o trabalho imaterial. A luta das comissões de fábrica nos anos 60 e 70 aproximavam a experiência europeia da dos operários argentinos e brasileiros. A militância que, longe das fábricas, lia Negri nos anos 2000 gerava uma associação indireta e bastante livre entre a autonomia indígena zapatista; a autonomia operária das fábricas; a militância de esquerda “independente” e autónoma não partidária na universidade, os espaços de militância em bairros e territórios e até a crítica libertária do estado na época da globalização neoliberal.
Eu estudava antropologia na faculdade de Filosofia e Letras. Houve em 2000 uma ocupação da faculdade de vários meses com interrupção de aulas. O maoísmo controlava formalmente o centro acadêmico e grupos horizontais filo anarquistas formavam grandes grupos de discussão e ação com inspiração foucaultiana, questionando os micropoderes que circulavam entre nós. As marchas contra os ajustes do Menem se reiniciavam contra o governo do De La Rua, que havia convocado novamente o Domingo Cavallo no Ministério da Fazenda. Eu comecei a colaborar com o periódico das Mães de Plaza de Mayo e a militar no El Mate, onde todas essas referências se encontravam e alguns companheiros entrevistaram Negri, ainda na prisão domiciliar da Itália.
Os filhos de desaparecidos (H.I.J.OS) organizavam escrachos contra repressores em territórios, com atos com coordenação territorial e participação de grupos artísticos e militantes. Movimentos de desempregados nas periferias urbanas, um novo sindicalismo com força entre docentes e trabalhadores estatais e uma classe média frustrada com a classe política e a falta de soluções daria lugar às mobilizações de final de 2001 com o grito “Que Se Vayan Todos” e a queda do governo com o programa econômico Menem-Cavallo com default e uma forte devaluação monetária. Fábricas recuperadas pelos trabalhadores, assembleias de bairro, organizações piqueteras e de direitos humanos eram nesse momento militantes de autonomia antes do que qualquer proposta de reforma do Estado.
O que seria a base social do kirchnerismo não via naquela época ainda nenhuma alternativa política estatal. Nenhuma esquerda militante apoiou a candidatura do Nestor Kirchner, que chegava como ex governador que vinha de apoiar as leis do menemismo no congresso e era apadrinhado pelo Duhalde, presidente de transição que governou com repressão e uma desvalorização do peso que aumentou amplamente o número de pobres. Essa distância e vazio de poder representacional fica clara numa anedota: o atual governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, principal cargo político mantido em mãos kirchneristas após a eleição do Milei em 2023, fez parte em 2001 de um movimento chamado de 501, porque propunha viajar 501 km da cidade de Buenos Aires, para não votar (na eleição parlamentar), atendendo a distância onde a lei permite justificar o voto.
Macri era nessa época presidente do clube Boca e ninguém podia imaginar chegando ao governo nacional. Ernesto Laclau diria antes da sua eleição em 2015 que Macri na presidência era algo mais difícil de acontecer do que imaginar o próprio Laclau como imperador do Japão. Mas se a operação populista do Laclau se ativaria criando um ciclo de opções eleitorais com Lula, Kirchner, Evo e Chavez, a leitura do Negri permitía nessa época manter aberta uma hipótese política que não se fechava nacionalmente e que para além do povo como sujeito político clássico, pensava em termos de multidão, como pensamento não de Estado, crítico dos caminhos dos socialismos democráticos e transformismos da esquerda.
O livro do Negri e Hardt tinha sido também um sucesso editorial. Lembro uma resenha de duas páginas do caderno cultural do jornal conservador La Nación dedicado a ele. Era uma esquerda que saía do sectarismo autorreferente e se conectava com o movimento antiglobalização, que chegava com as imagens de Seattle, Praga e Gênova e dava voz a um movimento relevante que dizia respeito da atualidade do Capital. Negri era um autor que permitia vincular o passado recente de luta armada, luta operária de inspiração marxista e comunismo internacionalista derrotado, com um novo panorama de Black Blocs, comunicação independente por Internet, Chiapas e o 19 e 20 de dezembro de 2001.
Após dezembro de 2001 a esquerda autonomista como senso comum da época construiu assembleias populares, fortaleceu com interesse os movimentos territoriais de desempregados e camponeses, e viria a organizar o Fórum Social Mundial. Nesses encontros o espírito autonomista, zapatista e antiglobalização conviveria com Chavez e a chegada ao governo do progressismo. Negri & Hardt tinham buscado propositalmente falar para um público amplo, do lado de vozes como Naomi Klein, o movimento ATTAC de imposto às transações financeiras e Le Monde Diplomatique, esquerdas no governo e intelectuais próximos do novo poder.
Como “vitórias que significaram derrotas”, segundo a frase ouvida no Equador quando o movimento indígena entrou no palácio de governo por poucos dias, junto com a chegada ao governo de líderes de esquerda próximos de movimentos sociais, algo que estava aberto nesses anos e que teve a ver com o diálogo do Negri com o movimento político latinoamericano se fechava. Ao mesmo tempo, o momento político mudaria rapidamente, encurtando o espaço para pensar política autônoma que não passasse pela política do Estado, e iniciando um processo de governo marcado mais pelo signo do populismo do que da multidão.
Em 2003 fui para o Rio de Janeiro fazer a prova para entrar no mestrado e coincidiu com uma das primeiras visitas do Negri, senão a primeira, em que falou no Hotel Glória. Conheci a Uninomade nesse momento, rede de pesquisa e ativismo, com um pé na universidade, mas buscando a política da multidão nas favelas, na cultura, nas lutas urbanas, conversando nesse então também com setores específicos do governo petista. A situação política tinha mudado. Na época do mensalão a rede Uninômade apoiava o governo Lula, algo ousado ou irreverente demais, se pensamos que a esquerda estava mais preocupada em criticar as reformas neoliberais do Lula (como a da previdência), a aliança com o agronegócio e os bancos, numa virada para o centro sem as mudanças esperadas, que nunca viriam.
O progressismo latinoamericano foi esvaziando e capturando boa parte da militância e subjetividade autonomista. Eu fui fazer pesquisa do doutorado na Bolívia onde Negri também foi convidado. O Império, do Negri e Hardt foi seguido dos livros Multidão e Comum, com referências às lutas do período anterior ao progressismo na região: guerra da água de Cochabamba, piquetes da Argentina e Chiapas. O Comum também se referia ao perspectivismo multinaturalista e à mobilização indígena do continente. O diálogo do Negri com América Latina era mais do que o diálogo de um intelectual europeu com seus leitores, era um diálogo militante. Os textos e reflexões com Giuseppe Cocco, a rede Uninômade e os participantes das inúmeras atividades organizadas, o tornaram um autor que escrevia e opinava sobre a política latinoamericana. Se até o 2000 Negri foi leitura obrigatória e escolhida pelo ativismo; agora era Negri quem lia as lutas latinoamericanas com predileção e algo de encantamento.
Nas suas visitas Negri queria ouvir mais do que explicar. Mas era bom ouvi-lo na sua eloquência militante. Falava de amor e lutas com temperamento intenso e apaixonado que cativava. Sua força vinha do encontro entre uma ontologia materialista orientando o pensamento e lutas concretas do presente, do passado e do futuro que iam além do Estado e da propriedade. Foucault, Marx, Deleuze e Spinoza percorriam esse pensamento fértil.
A crise política do progressismo criaria uma cisão entre os leitores e amigos do Negri em América Latina. Era a mesma separação que dividiu a esquerda após 2013 no Brasil enquanto o progressismo de governo mostrava seu compromisso com o neoliberalismo, o desenvolvimentismo e as políticas dos grupos de poder. Não que Negri não reparasse neste processo, mas como boa parte da esquerda, se fechou na defesa dos governos progressistas. A aparição de uma extrema direita fortaleceria mais a polaridade, com uma condescendência a respeito das esquerdas do poder diferente do que tinha sido sua leitura na Europa da socialdemocracia e esquerda formando parte de governos.
Eu sinto que Negri se aproximou das posições políticas que ele próprio tinha combatido. A disputa com o eurocomunismo e da social-democracia europeia representava por ele no passado, agora se deixava levar por um “there is no alternative” progressista, mesmo quando o levante de junho de 2013 e as lutas dos anos 90 e 2000 que ele acompanhou com proximidade, tinha mostrado os limites desses governos junto com a possibilidade de uma insurgência multitudinária que os superasse. Com progressismos que faziam tudo para representar a ordem, criminalizando o movimento indígena no Equador, no Chile e na Bolívia, prendendo ativistas contra a copa do mundo no Brasil, e enxergando o extrativismo como caminho obrigatório, Negri abandonava esse lugar para além do Estado e aquém do comunismo, como espaço de imaginação de possíveis onde ele tinha militado e como pouco antes tinha sido lido.
Digamos na sua defesa que os próprios militantes autonomistas que o liam dessa maneira, e boa parte dos movimentos que foram protagonistas dessas lutas, também enxergaram como inevitável esse passo para dentro da soberania do Estado, no apoio dos progressismos e governos que não souberam ou puderam pensar além do consenso neoliberal.
A rede Uninômade que fez de anfitrião do Negri nos primeiros anos após a prisão na Itália, viu se afastar alguns membros que, igual do que Negri, mantiveram o apoio do PT, enxergando a perda do governo em mãos da direita e posterior tentativa por retornar como as principais batalhas políticas a serem assumidas. Alguns membros da Uninômade apoiaram Marina contra Dilma Rousseff na eleição de 2014, vitória cuja possibilidade teria derivado em movimentos políticos imprevisíveis, mas que foi reprovada por Negri. Antes do retorno atual da Marina ao governo Lula, eu desconfiava dessa terceira via, apostando antes por caminhos militantes que acreditam na possibilidade de uma política autônoma em diálogo com a insurreição de 2013, com dezembro de 2001 e com as lutas dos movimentos que na Europa e na América Latina demonstraram que a luta pelo comunismo ainda faz sentido.
Clarissa Moreira
Conheci o Negri urbanista, o que dialogou de forma frutuosa com Rem Koolhaas em seu texto Metrópole Biopolítica e que veio visitar o Porto em pleno processo de destruição/ reconstrução, a convite de Barbara Szaniecki. Nesse breve encontro o que me tocou foi sua gentileza, a atenção dada à criança presente, o humor com certa exasperação em relação aos processos…foi um encontro rápido, intenso e movimentado. Conversamos sobre o rosto de um dos removidos da Providência imediatamente patrimonializado no Museu. O que explica tanto sobre a (in)sensibilidade contemporânea capaz de em um mesmo gesto ameaçar de expulsão 1/3 de uma comunidade, retirando mais de 150 famílias de suas casas e hoje sabemos que foi mesmo em vão, e, em ato contínuo patrimonializar a própria violência governamental.