Jeudiel Martínez[i]: tradução de Guilherme Bianchi – revisão Lívia Vargas
…de tanto odiar a los militares, de tanto combatirlos, de tanto pensar en ellos, has terminado por ser igual a ellos. Y no hay un ideal en la vida que merezca tanta abyección…
José Raquel Moncada ao coronel Aureliano Buendía (Cien años de soledad).
O que vimos no domingo, 30 de julho, na Venezuela não foi uma eleição, mas sim algo muito distinto: a prova viva não só de uma nova “governamentalidade” ou governança, mas também de todo um modo de dominação que já vinha se incubando desde pelo menos 2005.
É nesse ano que o chavismo começa a se diferenciar de outras forças nacional-populares, como as que chegam ao poder no Equador e na Bolívia, mas também como de outras expressões da esquerda sul-americana, como o kirchnerismo argentino e o petismo brasileiro. Esses governos eram mais ou menos verticalistas, mais ou menos autoritários, mais ou menos corruptos, porém estavam delimitados pelas formas que lhes impunha o estado de direito, sujeitos aos resultados eleitorais. O chavismo tardio, pelo contrário, está mais próximo de governos como os de Erdogan e Duterte, produto de um giro autoritário mais ou menos progressivo.
Assim, o chavismo optou por um caminho semelhante, mas não idêntico, ao levado a cabo em Cuba e na Nicarágua. É algo muito mais regressivo, arcaico, que tem muitas coisas em comum com o stalinismo ao estilo cubano, mas também similitudes com outras tradições autoritárias ou corporativas da Iberoamêrica. As forças autoritárias e democráticas aparecem em todo espectro político, são as péssimas leituras marxistas e liberais que pedem, da mesma forma, que creiamos em uma esquerda que seria, de entrada e por essência, libertária ou autoritária. Uma prova disso é o modelo de partido único cujas variações podem ser encontradas da direita para a esquerda, do franquismo ao stalinismo através do PRI mexicano e do Partido Colorado do Paraguai: de uma forma ou de outra, com ritmos diferentes, o chavismo tenta, desde 2005, metamorfosear em um regime de partido único.
A aversão a todas as formas de diferença, a confusão de todos os discursos com a propaganda, a organização vertical e corporativa dos militantes, a dissolução do estado de direito, isto é, todas as características chocantes do autoritarismo que vemos se formar desde 2005, são próprias de regimes de partido único, sejam de direita ou de esquerda. As razões específicas pelas quais Hugo Chávez começou a dirigir seu projeto nessa direção estão abertas à discussão, mas por enquanto basta dizer que nossa situação atual tem raízes no nascimento de um tipo de militarismo de esquerda na Venezuela que podemos chamar de “comandantismo”.
Embora completamente distintos em sua orientação política em comparação com a dos militares de direita, o “guerrilheirismo” era uma forma extrema de militarismo na medida em que propunha organizar o espaço público segundo o modelo das operações militares e das relações de poder segundo a hierarquia militar. No “guerrilheirismo” já existia um culto aos comandantes, sobretudo aos da revolução cubana. O prejuízo que este militarismo fez a esquerda foi imensurável e, na Venezuela, se fundiu com o militarismo “puro” no momento em que surge um grupo militar que se considerava anti-americano, anti-neoliberal e herdeiro da luta guerrilheira: através do encontro desses dois militarismos, unidos em adoração dos comandantes e a redução da política à guerra, o militarismo de esquerda passa a ser uma espécie de máscara do militarismo mais convencional nascido no quartel, e embora renda-se e entrega-se a isso, também o transforma.
Assim, embora Hugo Chávez tenha ativado um dos mecanismos democráticos mais amplos de nossa história com a constituição de 99, seguiu-se um período de expansão e abertura de seu movimento, mas o mesmo começou a desmantelar após sua vitória no referendo de 2005: a modificação das leis eleitorais, a substituição dos conselhos de planejamento local e assembleias cidadãs pelos consejos comunales, a criação do PSUV e o eclipse do Polo Patriótico, a consolidação do caudilhismo midiático de Chávez, a destruição de instituições que não se encontravam sob o controle do chavismo, a transformação das forças armadas em um partido e todo projeto corporativo e verticalista da reforma constitucional de 2007 eram já indicadores claros de que se começava a gestar uma ruptura profunda com a constituição de 1999.
Tendo falhado em 2007 sua reforma constitucional, Chávez levantou sua aposta na tentativa de transformar a “constituição material” venezuelana, ou seja, a trama dos poderes, dos interesses, por exemplo, ao dar um enorme poder às forças armadas em áreas como o controle dos recursos de subsolo. Mas, na estratégia de Chávez para um maior autoritarismo, era necessária uma maior legitimidade: essas campanhas eleitorais, espetaculares e rituais eram necessárias para legitimar a arbitrariedade posterior do líder. A condição para isso foi a abundância de petrodólares e o enorme poder afetivo, o carisma quase religioso, do comandante que nunca ficou em silêncio ou desapareceu de vista.
No geral, é um design corporativo, “neoarcaico”, como diz Enzo del Búfalo, que parece uma mistura de peônia, falangismo e stalinismo. Se isso tudo parece loucura, é necessário pensar que isso foi criado por uma série de decisões muito pragmáticas, soluções para problemas que a própria liderança chavista criou, a saber:
- A criação de um monopólio econômico estatal de produção e consumo, onde o Estado – já o maior produtor de moeda – também começa a monopolizar as importações direta ou indiretamente. O eixo deste sistema é o monopólio do dólar já que o principal produtor de moeda, o Estado, se converte também em principal distribuidor direto ou indireto de bens. Tal monopólio e o crescimento do setor público é o que vai dando ao Estado esse caráter de administração financeira, onde todos trabalham e de quem compram o que precisam com uma moeda desvalorizada.
- Agrupar, de acordo com o modelo militar, seus seguidores. Ao organizar tudo em termos de divisões, batalhões, frentes, setores, etc., o chavismo “reinventa” o corporativismo de princípios do século XX sem que necessariamente isso esteja abaixo de sua influência direta, de fato, todo corporativismo é uma consequência da organização da vida pública sob um esquema cuasi-militar.
- Colocando como centro um líder inquestionável, indiscutível, quase divino em seu status que garante unidade férrea e obediência absoluta da militância. Comandantismo podemos chamar o caudilhismo que se agrupa ao redor de uma figura militar carismática que, por sua vez, organiza a vida pública como uma operação militar (a formação de reserva em 2007, operação mais proselitista e corporativa do que militar, é o melhor exemplo do comandantismo de Hugo Chávez). É obviamente uma invenção de Fidel Castro que sintetizou o stalinismo soviético com o caudilhismo latino-americano, por isso, a diferença de China ou da União Soviética, onde o partido superou a hegemonia dos fundadores, em Cuba o partido parece incapaz de superar a influência de Fidel, Raúl e dos iniciadores do movimento.
A situação venezuelana tem muito a ver com a crise do comandantismo que foi tudo que guiou e uniu o chavismo: governar “espiritualmente” os venezuelanos graças ao carisma do comandante, materialmente através do monopólio do dólar e organizá-los de acordo com o modelo corporativo foi a fórmula de Hugo Chávez. A crise estava pronta quando, em menos de um ano, o líder desaparece e, com ele, a abundância de recursos. De fato, não restava mais alternativas à direção chavista do que refazer todo o chavismo desde o início (como pedia Marea Socialista) e repensar seu destino em um sistema multipartidário, ou usar seus enormes “ganhos de capital” para se perpetuar no governo pela força.
A partir de dezembro de 2015, eles demonstraram seu caráter e vocação quando deixaram definitivamente o jogo eleitoral político e eliminaram os últimos elementos remanescentes do direito. O salto direto à tirania se deu quando o poder executivo eliminou a divisão de poderes usando o TSJ (Tribunal Supremo de Justicia).
A passagem de Mercal para os CLAP[2], a chegada das OLHP (Operación de Liberación Humanista del Pueblo[3]), a mutilação do poder legislativo, o projeto do Arco Minero do Orinoco, são os signos da nova modalidade de governo que emerge então, completamente divorciada tantos das formas representativas como da democracia, modelo que tem quatro pilares:
- A dependência econômica em grande escala do Estado como importador e distribuidor de bens.
- A servidão intelectual e espiritual de milhões de devotos do chavismo conectados através da mídia.
- As coações localizadas do Estado e do Partido em âmbitos muito bem definidos.
- A repressão focalizada, mas arbitrária, nas formas das OLHP e da “operación tuntun[4]“.
Se o governo, como um todo, substituiu o comandante como chefe do chavismo, agora é a constituinte que parece ser o chefe desse comandantismo sem comandante. É completamente errôneo acreditar que Maduro tenha substituído Chávez. Uma vez que não havia uma única figura que pudesse ser colocada acima de todas as facções do chavismo, o comando caiu em instâncias coletivas que reunia a liderança de um partido cívico-militar que fagocitou ao Estado.
Embora acima do chavismo e inclusive de todas as forças políticas nacionais, o comandante todavia estava confinado pela Constituição: apenas a reformando, a distorcendo, a pervertendo, conseguiu englobar sua permanência no poder por reeleição indefinida e no poder quase absoluto através da colonização de todos os poderes públicos. A constituinte que, de acordo com líderes chavistas, será suprema, legisladora e supragovernamental é o último avatar do comandantismo sem comandante, e também a aposta mais arriscada do chavismo tardio.
A combinação do poder executivo com o TSJ já estava implícita, mas ainda era imperfeita, limitada por um texto constitucional prévio: agora, não apenas os poderes públicos como um todo são tomados, fundidos, apropriados, mas os próprios limites da Constituição desaparecem. Ao se colocar acima da Constituição que criou, a liderança chavista mostra claramente que entra numa nova fase, talvez terminal para eles, mas certamente catastrófica para o país.
Tradução para o português: Guilherme Bianchi
publicação original https://www.elcambur.com.ve/opinion/la-constituyente-comandantismo/ 5 de agosto de 2017
[1] Chamamos comandantismo a uma variante específicamente latinoamericana do “bonapartismo de esquerda” que emergiu durante a luta guerrilheira dos anos sessenta, definido pelo culto a figura de um Comandante que desloca seus domínios, de modo analógico, desde o plano militar à esfera pública e a toda vida social.
[2] Mercal fue una red de mercados populares de carácter público y abierto, quebró en 2016 debido a la corrupción masiva. Fue reemplazada por los Comités Locales de Abastecimiento y Producción en los que se requiere un complicado proceso de inscripción y la aprobación del partido de gobierno para recibir una caja con víveres.
[3] La Operación de Liberación Humanista del Pueblo consiste en redadas policiales efectuadas en barrios peligrosos. No son supervisadas o fiscalizadas por ninguna instancia y abundan los allanamientos ilegales y las ejecuciones extrajudiciales.
[4] Es una variante un poco más suave de la OLHP aplicada a los opositores de clase media.
[i] Jeudiel Martinez é Sociólogo graduado na Universidad Central de Venezuela e professor convidado na mesma.