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Entrevista com Bruno Cava

por: João Vitor Santos do IHU-OnLine, 14 Agosto 2017

 

<<Nos últimos anos, contudo, essa dupla de pensadores começou a dar sinais de cansaço, com concessões demais a certo afeto que clama por unidade das esquerdas contra o avanço das direitas, afeto que foi a carne do estalinismo e que provoca um entrincheiramento perigoso do pensamento>>

 

IHU On-Line – Que aproximações e distanciamentos podemos fazer entre as perspectivas teóricas e movimentos de Ernesto Laclau e Antônio Negri ?

Bruno Cava – Uma diferença decisiva do modo como Laclau e Negri põem os problemas consiste na questão da unidade. Ambos reconhecem a realidade contemporânea em que predominam as multiplicidades, decorrente da virada da composição social do mundo capitalista, no final do século 20, e ambos são críticos incansáveis do reducionismo de análises do capitalismo que adotam uma relação mecânica entre classe, partido e determinação material, bem como de uma esquerda missionária que se restringe a fabricar narrativas-slogans, numa vulgar batalha ideológica. Se Laclau escapa dos objetivismos predominantes no socialismo (real ou de oposição) através de uma recuperação bastante particular do populismo latino-americano, especialmente do peronismo argentino, associada a uma teoria neogramsciana do discurso, com pitadas de Foucault e Lacan, Negri faz o seu êxodo através da transposição política da teoria das singularidades, retraçada desde a monadologia leibniziana e a microssociologia de Gabriel Tarde, nas atualizações criativas de BergsonSimondon e Deleuze.

Ao colocar o problema das multiplicidades, Laclau ainda persegue a formação de uma unidade do múltiplo. Essa unidade, contudo, não se dá mais de maneira dialética entre infra e superestrutura, pela via régia da economia, núcleo duro da racionalidade moderna. O pensador argentino prefere teorizar uma unidade de novo tipo, recheada de contingências e precariedades, por meio do conceito de linguística estrutural de “significante flutuante”. O rendimento dessa teorização se dirige para a constituição de um novo terreno de antagonismo que leve em conta a fragmentação e a dispersão da sociedade capitalista pós-crise do fordismo. Não confundir Laclau, entretanto, com teóricos nostálgicos da comunidade perdida, pois ele reconhece que a classe trabalhadora virou suco e este é um processo irreversível. O terreno dessa recomposição laclauliana é político e é o lugar por excelência da construção do povo, mas ao mesmo tempo assimila o caráter inorgânico, dinâmico e precário dessa arquitetura, mediante o conceito de “cadeia de equivalências”.

Negri, especialmente na trilogia que escreveu com Hardt , prefere afirmar as multiplicidades enquanto tais, como pluralismo que não admite unificação sequer à maneira mitigada de Laclau. O autor aponta em Laclau um resquício do programa da modernidade da reductio ad unum, tão presente no direito público europeu e seu princípio de soberania, ainda que nacional-popular. Isto leva o pensador argentino a sobrevalorizar a dimensão nacional da luta política, perdendo de vista que na passagem da era dos imperialismos para a do Império a dinâmica de poder no processo de globalização se alterou fundamentalmente. A questão candente para Negri consiste em pesquisar e elaborar o modo de funcionamento da multiplicidade, sem a necessidade do salto para o momento político ou de construção do povo (populismo), ou seja, a multidão, que é um processo, um fazer. Não é que instituições e multiplicidades estejam em relação de oposição dicotômica, mas sim que a construção de instituições é uma atualização, uma determinada cristalização de um campo polar de individuação, para falar com Simondon, que subsiste ao lado dos estados atuais (este coletivo, aquele movimento etc.). A multidão é um conjunto de singularidades nômades, ou seja, é composta por tendências não-individuadas e pré-subjetivas.

IHU On-Line – Como seus pensamentos contribuem para pensarmos a política na contemporaneidade?

Bruno Cava – De La razón populista em diante, Laclau se engajou na experiência latino-americana dos governos ditos progressistas, de que a Venezuela chavista hoje configura o signo de seu total desmoronamento. Esse acoplamento teórico-político levou o autor a valorizar ainda mais a dimensão nacional de construção dos governos, inclusive na forma de lideranças carismáticas, como Chávez, Evo ou Cristina, que pudessem encadear as equivalências segundo um projeto comum de poder. Nos últimos tempos, Laclau também se tornou uma referência central dos professores-dirigentes do Podemos madrilenho, como Iñigo Errejón e Pablo Iglesias. Iñigo, por exemplo, escreveu a sua tese a partir de uma copesquisa no interior do experimento constituinte boliviano da década passada.

Dessa e de outras pesquisas implicadas na construção de uma alternativa de poder na América Latina, os podemitas formularam o núcleo de sua teoria política da transição, o “populismo 2.0”, que consiste na necessidade de dar o salto à política, com sua lógica própria, que os movimentos e lutas por si só não são capazes. A fim de superar os impasses da fase destituinte das lutas, impasse que pode precipitar-se numa restauração dos poderes ameaçados, é preciso elaborar um projeto propriamente político, afirmativo, de domínio das instituições para reinventá-las de dentro, o que inauguraria a fase constituinte.

Hoje, quando boa parte das conquistas dos governos progressistas foi revelada como propaganda, a sua produção de novas instituições como nulidade, quando o próprio progresso do progressismo foi posto em xeque, caberia inquirir se a teoria do discurso de Laclau, que está no centro de sua concepção de disputa política, não contribuiu para alargar o campo cego sobre os movimentos e as transformações que ocorreram nas bases sociais. Já o “populismo 2.0” errejoniano, caberia perguntar se não foi levado com demasiado literalidade, especialmente quanto ao caráter centralista da cúpula de comunicação, terminando por catalisar o processo de desaceleração e então retraimento da hipótese Podemos no cenário espanhol, depois da primeira arrancada em 2014-15.

A trilogia de Negri e Hardt  (Império, Multidão, Commowealth), sem dúvida, é o principal texto político do ciclo global de lutas alterglobalização, da insurreição zapatista em Chiapas aos dias de Ação Global (1994-2003). A debacle do bloco soviético e das grandes narrativas do socialismo no mundo inteiro não deram lugar a um horizonte sem-horizonte, o “flat horizon” do fim da história, em meio ao que só haveria condições para revoltas desconjuntadas e antipolíticas. Negri e Hardt foram os melhores intérpretes de uma nova imagem do movimento, uma nova constelação global das lutas, não mais fundada na unidade nacional, no salto político ou na representação ideológica e eleitoral. Ouvidos novos para uma música nova que já estava tocando. O que os nostálgicos da modernidade chamam de desorganização e espontaneidade, Negri e Hardt mostraram ser multiplicidades de direito próprio, com organização de novo tipo, capacidade estratégica e criatividade institucional. Nesse escopo, Negri e Hardt se mantiveram antenados, graças a uma rede transnacional de pesquisa, com as transformações da subjetividade que aconteceram nas últimas duas décadas, inclusive quando essas transformações dinamitaram por dentro o experimento latino-americano dos governos progressistas, como no levante de junho de 2013 no Brasil.

Nos últimos anos, contudo, essa dupla de pensadores começou a dar sinais de cansaço, com concessões demais a certo afeto que clama por unidade das esquerdas contra o avanço das direitas, afeto que foi a carne do estalinismo e que provoca um entrincheiramento perigoso do pensamento. Por não encontrar estados atuais e individuados ou nomes corporeificados de movimentos, que pudéssemos identificar como filhos dos eventos constituintes do último ciclo global de lutas (no Brasil, a quimera de quem seriam os “filhos de Junho“), dá-se uma regressão desesperada de método, na direção de atores já destituídos e de espaços anacrônicos, como defesa mínima de valores ameaçados. Como não ver que tal mecanismo defensivo diante do avanço do katechon termina por secretar uma atmosfera de pânico moral (nojo disto x beijo no coração daquilo) que é o avanço conservador ele mesmo.

Isto levou Negri, por exemplo, a reaproximar-se de setores da velha esquerda welfarista europeia, como David Harvey e, no Brasil, a continuar prestigiando setores socialistas do PT da grande São Paulo, como trincheira de uma possível recomposição não só na escala nacional, como continental, uma curiosa reedição escarlate da velha máxima bandeirante “primeiro em São Paulo, depois…”.

IHU On-Line – Negri tem como um de seus conceitos básicos a Multidão. Já Laclau tem uma das bases do seu pensamento no conceito de Povo. Como compreende os dois conceitos?

Bruno Cava – A multidão é uma multiplicidade intensiva. Interpretar o conceito de multidão como um sujeito dado, um substrato apriorístico, uma espécie de petição de princípio, seria colher peras de um olmo. Por definição, a multidão não pode ser individuada, circunscrita num estado atual e delimitado. O conceito de multidão supriu uma deficiência notável das ciências sociais. A mais elaborada teoria dos movimentos sociais do século 20 ainda enunciava uma metafísica do século 19, enquanto a mais penetrante filosofia do século 20 ainda fazia a crítica das ciências como se na prática elas estivessem presas a uma epistemologia do século 19. Era um quiproquó.

O conceito de multidão de Negri e Hardt dota a teoria dos movimentos de uma metafísica à altura, ao mesmo tempo que faz os movimentos contemporâneos suscitarem conceitos para a filosofia. Há um paralelo no Brasil com Éder Sader, em seu livro que um amigo estudioso do autor, Alexandre Mendes, considera ser comovente. Estou falando de Quando novos personagens entram em cena , que ao contrário do senso comum não é um livro que descreve sociologicamente a formação dos novos movimentos sociais na crise da ditadura. Os novos movimentos sociais são apenas *uma* atualização de um impulso criativo maior, que não se exaure em seus resultados mais perceptíveis e delineáveis.

O brilhantismo de Éder consiste exatamente em ter conseguido remontar à gênese dos movimentos, movimento no sentido ontológico, como tendências internas, polares, que se espraiavam por uma sociedade brasileira em convolução, mostrando as autonomias em movimento nas mobilizações da saúde na periferia, no movimento das mulheres, na autoconstrução de moradia popular, na cauda longa de atos de insubordinação e sabotagem que propeliram as novas oposições sindicais. Já há aí, no brasileiro Éder Sader, um lampejo do conceito de multidão, que Negri irá elaborar com Hardt por outra via, a partir de Simondon [17] e Deleuze [18].

Já Laclau pensa o povo como multiplicidade extensiva e trabalha teoricamente para reconstituir um encadeamento, sempre árduo, sempre periclitante, de identidades, demandas e particularidades dentro de um invólucro transcendental, o Povo. É um populismo para as condições pós-modernas de fragmentação, quando a classe virou suco, um tipo de povo “pós-estrutural”, povo que falta. A teoria de Laclau não reconhece as singularidades nômades de Negri, que ele trata como Kant [19] trata a coisa em-si, algo incognoscível e, em última análise, passível de metafísica dogmática.

A analogia na história da filosofia entre Negri e Laclau não seria, então, entre um idealismo pré-kantiano de metafísica dogmática e o criticismo kantiano, mas entre Kant (Laclau, ocupado com as condições de possibilidade) e Salomon Maimon (Negri, elevando-se às condições da experiência). Laclau opera uma síntese transcendental que vai preencher o terreno do populismo, terreno de uma falta constitutiva ao modo lacaniano, que lembra também a parte dos sem-parte de Rancière, terreno por excelência para o antagonismo político que opõe um “nós” a um “eles”, fazendo funcionar assim a cadeia de equivalências. Pode ser os pobres versus as elites, como no populismo latino-americano. Pode ser a gente versus a casta, como no Podemos espanhol.

O “populismo 2.0”, ultramidiatizado e digitalizado, do Podemos, ou do movimento 5 Stelle na Itália, por exemplo, se apresentou como um populismo inorgânico, com intelectuais que mais parecem celebridades do que militantes que se embrenham na carne viva do popular, um populismo não mais assentado sobre uma forte identidade orgânica, como no caso do Partido Comunista Italiano, da época de PalmiroTogliatti, ou de uma sociedade fortemente corporativizada como nos casos de Vargas ou Perón. Há algo de verdade nessa formulação do populismo se pensarmos que, hoje, figuras tão díspares quanto Trump, Putin, Maduro, Erdogan, El-Sisi, Grillo, Le Pen, todos são classificados como líderes populistas. Porque não estamos mais falando de um populismo com forte enraizamento social e institucional de valores nacional-populares ou francamente fascistas, como na Itália de Mussolini.

IHU On-Line – É possível pensar na ideia de complementariedade entre um conceito e outro? Como?

Bruno Cava – Em geral, dois filósofos são incompossíveis, não porque as respostas e soluções divirjam, mas porque colocam as suas perguntas de maneira diversa, têm inquietações e problemas qualitativamente diferentes. Máquina-Negri, Máquina-Laclau, operam diferente, fazem coisas diferentes, outros usos e funcionamentos. Agora, claro que se pensarmos que para a ação precisamos dispor de uma caixa de ferramentas, as teorias de Negri (e Hardt) e Laclau (e Mouffe) têm a sua relevância relativa. Mas não sejamos salomônicos. Isto não impede de avaliarmos as conclusões políticas que um e outro tiram de acontecimentos específicos e conjunturas particulares, sem com isso validar ou invalidar a respectiva máquina de guerra conceitual.

Num artigo recente à Revista Lugar Comum, Roberto Andrés sugere um possível acoplamento virtuoso das teorias da multidão e do populismo pós-estrutural, a Laclau. Segundo o ativista da plataforma municipalista Cidade que Queremos – CQQ [36], uma das experiências mais vibrantes no Brasil em termos de renovação da representação, o terreno do populismo deve ser encarado como o terreno da luta, no contexto de crise das mediações políticas e teóricas. Nesse embate, a rede de contrapoderes sociais assume o papel de força motriz para tensionar os mecanismos representativos, impedindo de maneira dinâmica o fechamento numa zona de conforto típica dos aparelhos partidários e de arranjos institucionais. A proposição exige-nos consideração, se pensarmos que populismo parece ser um dos nomes da crise de mediações hoje.

Em Quando a trama da terra treme, texto coletivo da Universidade Nômade, são postas em tensão duas linhas, uma linha de multidão e uma linha de hegemonia, exatamente para metabolizar a relação entre movimentos e governos, entre lutas e instituições, como uma relação dinâmica e em oposição polar.

Outro que, recentemente, escreveu sobre o caráter não-excludente entre as teorias de Negri e Laclau, uma “disjunção possível”, foi o filósofo Rodrigo Nunes. Eu diria que, concordando substancialmente com cada um, que essa tentativa de comparação é um falso problema e tende a se tornar um dilema escolástico.

IHU On-Line – Quais as divergências entre Negri e Laclau no que diz respeito ao entendimento que têm sobre o capitalismo contemporâneo? E como observam a incidência do capital do século XX e XXI no campo da política?

 

Bruno Cava – Não prescindir de uma análise do capitalismo em que todos estamos é uma condição sine qua non se não quisermos incidir diretamente no risco do idealismo teórico, ou seja, de desacoplamento crônico em relação às dinâmicas reais de produção da vida e transformação do mundo. Esse é um ponto cego na teoria política de Laclau, que parece apreender a realidade dispersiva e fragmentária do pós-fordismo como dado de fato e não condição de direito. Marx não faz uma análise do capitalismo meramente para interpretar leis objetivas de funcionamento do real, mas para deslindar da processualidade determinadas tendências que, tensionadas desde dentro na contingência das lutas, levam-nos para além do capitalismo, para lá de seus limites internos e externos.

Negri avança nesse programa ao concordar com o “Manifesto Comunista”, de 1848, teorizando que a motricidade implícita do capital de “desmanchar tudo o que é sólido no ar” se ultimou na última virada do modo de regulação capitalista entre o fordismo e o pós-fordismo, hegemonizado (enquanto tendência) pelo trabalho imaterial, a financeirização da vida e a forma-Império da globalização. Isto implica transpor o dinamismo e a fluidez do processo para a teoria, os próprios conceitos devem repercutir o caráter aéreo ou gasoso. Podemos voltar ao exemplo de Éder Sader: quando o autor reconduz as teorias sociológicas à gênese do movimento de que certos grupos (o PT mesmo) são atualizações, ele vai estudar as transformações do capitalismo no Brasil no fracasso do último modelo nacional-desenvolvimentista e a nova fase da globalização, em meio às migrações do campo para a periferia, do norte para o sul.

Tudo isto não significa que se deva sobrevalorizar os elementos genéticos e diferenciais que dão vitalidade aos movimentos, em detrimento dos elementos atualizados e individuados que podem ser identificados numa análise restrita à conjuntura. O caso, como extensivamente alertado pelo próprio Negri, é metabolizar na teoria a dupla articulação, a pressuposição recíproca e não-dialética entre um e outro, entre potestas e potentia, o que a seu passo não exclui o fato que há uma diferença forte, de natureza, uma distinctio realis, entre o movimento enquanto tendência intensiva e o movimento enquanto estado atual, mais ou menos institucionalizado e identificável pela sociologia.

O problema é que, quando essa dupla articulação entre análise do capitalismo e análise política aparece nas análises de conjunturas entre os idealismos das esquerdas, como criticado desde os petardos de Marx contra os jovens hegelianos e os socialistas utópicos, ela é transformada na Lagosta de Mil Platôs [40], num “double bind” do tipo pinça, num duplo impasse: a crise dos sujeitos é remetida ao Capitalismo (com maiúscula), à deturpação de uma frase deleuziana de que “não pode haver governo de esquerda” (conforme Giuseppe Cocco em “A rede com ‘r’ minúsculo e as reformas”), enquanto a crise do Capitalismo é remetida à ascensão dos populismos, à onda fascista e outras confusões analíticas.

 

IHU On-Line – Antonio Gramsci [41] é lido tanto por Negri como por Laclau. Como compreender a apropriação de cada um sobre esse autor?

 

Bruno Cava – Paradoxalmente, Negri está mais próximo de Gramsci do que Laclau depois de Hegemonia e estratégia socialista, escrito com Chantal Mouffe. O gramscismo de Negri, contudo, é ambíguo. Em primeiro lugar, porque Negri se criou teórica e politicamente abrindo dissidência contra o eurocomunismo do Partido Comunista Italiano, que tinha o neogramscismo como um dos principais fundamentos analíticos. Se, nos tempos da liderança de Togliatti, o caráter nacional-popular do projeto do PCI fosse, nas palavras de Negri, apenas um ‘pecadillo’, com a aliança entre o partido e a Democracia Cristã na década de 1970, o “Compromesso Storico”, todo o discurso da hegemonia terminou sendo instrumentalizado para justificar a repressão daqueles movimentos que não se enquadravam numa estrita disputa político-partidária e eleitoral organizada desde cima pelos dirigentes do PCI.

O Movimento da autonomia italiana, cujo ápice foi em 1977, de que Negri era um intelectual insider, terminou esmagado pelo peso desse compromisso escandaloso com as forças oligárquicas. Gramsci, portanto, era o filósofo de cabeceira de seus inimigos, exigindo sempre a ativação de um Gramsci menor, de um Gramsci além de Gramsci. Segundo, porque a teoria negriana costura vários elementos com o estruturalismo althusseriano que não só amputa Hegel [45] em sua releitura de Marx, como procede a uma liquidação de Gramsci, o que só viria a se alterar no último Althusser, do materialismo aleatório.

A diferença decisiva na apreensão de Gramsci por Negri e Laclau está no papel daluta de classe como força dinamizadora dos conceitos. Laclau lê a virada medular da sociedade capitalista como deslocamento do discurso de classe, exigindo a reconstituição de um terreno político não mais articulado por um antagonismo de classe, mas pelo de um populismo, por assim dizer, pós-estrutural. Isto encontra ressonância com a afirmação de grupos minoritários que emergiram ao longo do ciclo anticolonial e sessentaoitista, no sentido de contestar a tentativa de unificação dos movimentos pelos partidos comunistas e operários em nome do que seria a contradição fundamental, a divisão de classe.

Negri não vai de encontro a esse alargamento de horizontes dado pelas transformações do capitalismo, mas em vez de renunciar à classe, entende que ela mudou de natureza, distribuindo-se ao longo do tecido social na mesma medida da dispersão subjetiva do pós-fordismo. Isto é, para Negri, não é que o antagonismo de classe tenha dado lugar a uma multiplicidade extensiva de identidades e demandas, que conviria à teoria populista reorganizar precariamente na forma num encadeamento de nós equivalentes, como em Laclau, mas sim que o antagonismo de classe se molecularizou junto com a relação do capital de maneira que a própria multiplicidade intensiva – a multidão – é um conceito de classe.

Hegemonia

Nessa lógica, enquanto Laclau atualiza a importância da luta contra-hegemônica, engendrada por Gramsci para as sociedades civis avançadas do americanismo fordista, para as condições pós-modernas da dissolução da classe, Negri o faz evocando uma espécie de “pós-modernismo forte”, um conceito organizativo e criativo de manejar a luta por dentro dessas próprias condições. A hegemonia, em Negri, tem muito mais a ver portanto com a criatividade institucional que emerge de dentro da multiplicidade intensiva (um institucionalismo sem estado, um direito público não-estatal etc.), enquanto para Laclau, sem o mesmo grau de análise do capitalismo guiada pela força motriz da luta de classe, resta apontar para teorias do discurso, num mix fino deFoucault e Lacan.

 

IHU On-Line – Como pensar na constituição de uma frente nacional-popular a partir de Negri?

 

Bruno Cava – Em Cinco lições sobre o Império, Negri desenvolve o método marxiano como apresentado nos “Grundrisse“, em seu caderno introdutório (a Einleitung). Nesse texto formidável de Marx, ele prenuncia toda uma operação conceitual que, mais tarde, viria a ser chamada de pós-estruturalismo. Marx introduz ali, justamente, o método de reconduzir a análise à gênese do movimento real de transformação, às tendências em estado não individuado. Evidentemente Marx não poderia se exprimir com esta linguagem, tendo que falar com a língua filosófica de seu tempo, num hegelês subversivo, falando assim em abstração determinada e retorno ao concreto. O movimento do conceito em Marx para que se torne concreto passa, portanto, por três níveis.

Um primeiro nível que consiste em identificar os movimentos atuais existentes, as lutas como se apresentam, os sujeitos sociais, políticos, econômicos etc. A originalidade de Marx é neles identificar uma mistura mal analisada, um misto confuso de tendências e movimentos que são efeitos e contraefeitos de um processo maior e coexistente, o processo do capital. O método então procede à abstração, isto é, à recondução das categorias sociológicas aos elementos genéticos e diferenciais.

Esse campo não individuado e habitado pelas singularidades é o campo da luta de classe, onde a classe existe enquanto estado magmático, incandescente: como trabalho vivo ou “plasma criador”, para usar os termos do próprio Marx. O capitalismo é um ponto de subjetivação no sentido que enquadra esse campo de plasma ativado num sujeito identificável e qualificado, isto é, como força de trabalho, incorporada assim ao metabolismo de vampirização do capital. Classe, portanto, não pode ser delimitada como classe social ou sociológica, nem como categoria da economia política. Classe é sempre pré-subjetiva e nômade, noutras palavras, é primeiro luta de classe, como teorizado por EP Thompson ou Negri. Este último articula o nível da luta de classe por meio de um segundo nível, um nível intermediário, que é a análise da composição de classe, da análise do capitalismo “pelo avesso”. Negri, no entanto, não pode parar por aí, tendo que avançar até o terceiro nível, o dos elementos genéticos, o do “movimento dos movimentos”, isto é, um movimento que só é perceptível de direito, como tendência, como polo intensivo das transformações.

Então, dito isso, se poderia perguntar, como Éder perguntou na franja dos anos 1980, qual é o “movimento dos movimentos” de Junho de 2013? Das primaveras árabes? Independente da existência de estados atualizados ou novíssimos movimentos sociais decorrentes daquele evento de eventos? Aí que entra o que Marx chamava de “retorno ao concreto”, função que Negri atribui à copesquisa (“conricerca”, em italiano, parente da pesquisa-ação e das cartografias afetivas). Não basta elevar-se sobre o empirismo cego das conjunturas para as condições do movimento, para o campo das singularidades nômades e selvagens. É preciso fazer o caminho de volta, ou seja, as linhas de atualização que permitam deslocar os problemas, abrir os impasses e evitar os mistos mal analisados por teorias fincadas sobre os estados atualizados e individuados, digamos, subproletariado (Singer), classe dos batalhadores (Jessé), nova classe média (Neri), nova classe trabalhadora (Pochmann), a própria categoria amorfa da ‘classe média’, tudo isso que, no fundo, exprime uma multiplicidade de tendências, isto é, são atravessadas por singularidades que ensejam outras camadas de análise.

O evento de junho de 2013 foi um momento de emergência que disparou tendências que rotacionaram todos esses mistos, sem que a emergência tivesse se atualizado num sujeito único ou nomeável: transformou-os contudo a todos. Junho de 2013 subsiste como conjunto de efeitos sobre os sujeitos preexistentes, um imperceptível das análises que não levem em consideração o regime intensivo das singularidades, que também é real. Afinal, precisamos de soluções! Em Cinco lições do Império, Negri propõe a tarefa de elaborar uma nova Einleitung, uma metodologia de copesquisa que esteja à altura das transformações objetivas e subjetivas do capitalismo, da composição de classe.

É nesse aspecto, o do retorno diferenciante que cabe à pesquisa atuante, que, me parece, Negri e Hardt bateram no teto. No último livro, Assembly, ainda no prelo, os autores fazem uma leitura do último ciclo global, das primaveras árabes, concentrado em pontuar discordâncias em relação ao caráter horizontalista, “leaderless” e anti-institucionalista dessas lutas, como se fossem causas de sua derrota pela operação restauradora generalizada que se seguiu às acampadas e ocupas. É pouco a acrescentar, em relação à trilogia seminal já citada, e flerta com o frentismo de pensamento entrincheirado que citei.

Em vez de apontar populismos de direita e de esquerda, como repercussões de uma crise inassinalável de que se conhecem apenas os efeitos, opondo Syriza e Le Pen, ou Lula e Bolsonaro, menos paralisante é renunciar à ideia de saída da crise (à direita ou esquerda, ou pelo projeto nacional-popular etc.), para entrar nela, entrar nos impasses. Um bom lance inicial para uma compreensão mais nuançada do ciclo de lutas pode ser encontrada no extensivo trabalho de copesquisa de Paolo Gerbaudo (em The mask and the flag, 2017), que sintetiza o movimento como o nascimento de um anarcopopulismo, um híbrido disforme entre as tendências antipolíticas e anticorrupção que opõe o cidadão à casta (do tipo Laclau) e as tendências anarquistas e autonomistas que se exprimiram nas práticas de democracia direta, ocupação constituinte e tecnopolítica (mais afeitas às teorias de Holloway, Negri ou Castells). Daí o título do livro, que evoca a interpenetração das máscaras de Guy Fawkes, adotadas por black blocs e pelo grupo Anonymous, e das bandeiras nacionais onipresentes nas passeatas de milhões.

Mesmo assim, Gerbaudo me parece muito apressado em delinear o cidadanismo, resultante político dessa composição, como resposta contra-hegemônica ao “momento populista”, faltando concluir o percurso até os elementos genéticos, de que Marx falava nos Grundrisse.

 

IHU On-Line – E como pensar na constituição de uma frente nacional-popular segundo Laclau?

 

Bruno Cava – Diferentemente de Negri, Laclau pensa do ponto de vista da recomposição de um povo enquanto momento político dos antagonismos, inclusive através da figura de um líder carismático, ou seja, pensa do ponto de vista da formação de uma nova maioria social capaz de colher a ocasião da crise e institucionalizar uma alternativa de poder, a partir de um encadeamento de identidades e demandas não-representadas na vigência estruturada. Embora nada disso se assemelhe, em sua teoria, a uma nostalgia de uma comunidade orgânica ou organização corporativa do tipo nacional-popular, cujas condições por sinal não existem mais.

Esse “salto político”, apesar dos inúmeros considerandos e ressalvas, ainda permite pensar em Laclau, particularmente a partir de “La razón populista”, num novo projeto progressista de governo, que venha a nascer de um novo arranjo das equivalências reunidas na unidade nacional ou de uma nova esquerda. O problema aí, me parece, não é a pretensão jurídica da teoria em reformular conceitualmente esse projeto, mas a capacidade de análise das condições de direito.

Sem um conceito de classe, sem uma teoria das singularidades, como compreender a dinâmica de poder que conferiria a tal projeto a subjetividade necessária para impulsioná-lo? Porque uma teoria do discurso sem levar em consideração a potentia que lhe animaria (conforme conceito de discurso em Foucault, indissociável das relações estratégicas de poder), corre o perigo de converter-se num videogame de narrativas, numa culture war que passa a disputar simbolicamente à revelia das transformações reais. O conceito de hegemonia aí se despe de qualquer materialidade e se torna uma mera disputa comunicativa, que passa a pressupor, de um lado, um inefável poder hegemonizador (a Globo, Hollywood, a CIA, George Soros), de outro, massas de manobra à deriva das pulsões midiáticas ou de consumo. Isto parece ser um problema grave não na teoria de Laclau, onde o caráter líquido das flutuações traça uma nova linha de firmeza teórica, mas nos atuais projetos de recomposição institucional na crise, em termos de uma nova esquerda, um novo programa ou frente nacional-popular. Como certa vez alertou Giuseppe Cocco: os neoliberais frequentemente são mais materialistas do que as esquerdas, mesmo as que invocam autores materialistas, como Marx ou Negri.

 

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