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Que significa orientar-se no Brasil hoje?

Bruno Cava

A vitória da frente ampla encabeçada por Lula é um circuit breaker, a interrupção da elevação acelerada da voltagem que ameaçava queimar os circuitos das instituições. Esta eleição pode ser sintetizada entre o disjuntor lulista e o curto-circuito bolsonarista. A coalizão lulista não é volta de ciclo progressista das marés rosadas, nem uma reversão do ciclo das novas direitas globais, mas um deslocamento lateral, um fora momentâneo ao processo tresloucado de fluxos de pós-verdade agônica e altas cargas emocionais.

Por isso, noutro artigo, falo em desmobilização oportuna. Junho de 2013, enquanto acontecimento, foi primeiro de tudo uma desmobilização geral. A ocupação da metrópole provocou uma parada nos fluxos de mobilidade urbana, no cotidiano acelerado das grandes cidades, na confusão de tempo de vida e tempo de trabalho. A greve dos caminhoneiros de 2018 teve a mesma lógica, mas atuou na hinterlândia brasileira, emperrando a cadeia logística flexível da economia just in time. Em Junho de 2013, não havia déficit de pautas, propostas ou “organização”, ao contrário, havia sim um sistema articulado de demandas, ideias e linhas organizativas, certo modo próprio de se ligar a redes de solidariedade social, mas tudo de novo tipo. Daí eu discorde de interpretações, digamos, hidráulicas de 2013, que aquele evento teria sido um momento de explosão de energias, porém sem precisão, ou seja, com baixa tensão de pensamento.

Foi o contrário: as operações de contra-ataque a Junho é que borraram as diferenciações e recuperam-no como movimento do indiferenciado. Parte da esquerda ressente-se por não ter sido capaz de recuperá-lo pela esquerda, assim o tingindo de vermelho. Contudo, na realidade Junho expôs as cumplicidades entre direita e esquerda no governo da metrópole e excedeu essas divisões internas ao jogo político. Depois de Junho, algo como uma esquerda só faria sentido se fosse junhista ou, ao menos, refundada por Junho, tocada por sua interpelação. O que se deu foi a recuperação de Junho à direita, o que duplamente o negou, como diferença em movimento e como democracia das minorias. A democracia cujo despertar Bolsonaro e o bolsonarismo defendem é o oposto de junho: o curto-circuito das diferenciações, em que os polos se dissolvem numa mesma zona confusa dominada por estímulos binários em agitação permanente. Aí se constitui o fato majoritário anti-Junho. Nesse sentido que expus, a eleição de Lula atualiza um devir de Junho, que é reintroduzir uma pausa intensa na torrente que virou a normalidade, reintroduz um lag qualitativo, um intervalo para a retomada do pensar e do perceber noutros termos, para além da democracia superestimulada que  favorece a constante dissolução das nuances e do poder da diferença e do diferente.

 

O principal desafio agora são as forças vitoriosas reinventarem-se e serem capazes de deslocar o jogo político e institucional cujas coordenadas ainda permanecem francamente favoráveis ao bolsonarismo, enquanto fenômeno que se institucionalizou e se tornou uma força social poderosa. Houve uma quebra do movimento, mas por inércia ele tende a se reinstalar. Por um lado, é preciso revisar todo o período do Longo Junho brasileiro, sobretudo o panorama complexo de erros ao longo dos últimos dez anos. Para ao menos, errar melhor. É um momento que pede mais teoria, ponderação e pensamento, do que propriamente uma remobilização nas ruas, uma ocupação de instituições. O imperativo não é nem tanto de autocrítica, como se fosse expiação de culpas, mas da coragem da verdade. Nada faz mais o jogo dos oponentes do que negar a realidade ou contorná-la com raciocínios veleitários e autoenganos reconfortadores.

O Brasil novamente está no cerne de um impasse global que opõe duas alternativas ruins: saídas conservadoras que não fazem mais do que atrasar o colapso tendencial da democracia como terreno de formulação dos antagonismos, e uma constelação de regimes antidemocráticos e antiliberais, em nome de um capitalismo ainda mais predatório e oligárquico, que se afirma como único “outro mundo possível”. No Brasil, incide e se reconfigura a principal tensão no interior da crise da globalização neoliberal: entre a falta de imaginação das elites capitalistas, como estamos vendo no Reino Unido ou como ocorreu na Itália com a Agenda Draghi, e a escatologia superexcitada da Internacional Bannonista, como na Hungria orbanista ou nas forças do trumpismo. As novas direitas enxergam-se no fim dos tempos e almejam pela Grande Batalha, contra hordas indiferenciadas, conspirações pervasivas e anticristos ocultos. Todas estas são manifestações da indiferenciação em movimento, o que guia a tomada das democracias liberais pelas novas direitas e dá corpo à sua própria concepção curto-circuitante de democracia.

O pior que pode acontecer seria responder à imaginação das novas direitas repaginando-a como imaginação do bem, a nossa ou de esquerda, buscando uma face humana para o capitalismo autoritário e predatório que lhe serve de economia política. Parte da juventude pós-moderna “tankie”, assim como neoestalinistas de todas as idades, estão numa busca por totens ideológicos, bandeiras nostálgicas e líderes másculos porque não acreditam mais que exista sociedade capaz de reformular, por processos endógenos, suas demandas e antagonismos. Haveria apenas indivíduos e Estado, tudo o que não emerja daí seria obra de outros Estados e, portanto, suspeito. A doutrina geopolítica de Putin é uma tentativa de formar uma nova governamentalidade, baseada contra as “revoluções coloridas”. Isto é, não haveria mais positividade no campo social, não haveria mais classe em meio ao neoliberalismo contemporâneo, apenas estriamentos estatais, por sinal, de certos estados, as Grandes Potências. É a versão tankista do teorema Thatcher, que nos anos 1980 dizia só acreditar na existência de indivíduos e Mercado, mas não existiria sociedade. As tentativas político-eleitorais de reestruturar um populismo de esquerda foram um fracasso, pois entre um populismo de esquerda e de direita, o eleitor tende a ficar com o de direita, que é mais autêntico, que promove o pacote completo: não só emprego e ordem, mas também família, pátria e “verdadeiro cristianismo”.

Outro erro com repercussões sérias, quanto ao papel do Brasil na globalização, seria reeditar corolários do terceiro-mundismo, caindo num cultural-relativismo a título de posição do “Sul Global”, em vez de se guiar, por exemplo, pela insurreição feminista em curso no Irã. No seu curso canônico sobre o neoliberalismo (“O nascimento da biopolítica”, de 1979), Michel Foucault alerta sobre como o neoliberalismo, em vez de ser mera ideologia do capital, é uma materialidade do funcionamento relacional do poder, um regime de verdade e de produção de subjetividade, o que ele chama de governamentalidade. Os regimes do socialismo real, segundo Foucault, não foram capazes de desenvolver uma governamentalidade socialista. O maior desafio, portanto, continua sendo desenvolver uma alternativa ao neoliberalismo, algo ainda sem nome, o “enigma do disforme”, título do livro que escrevi com Giuseppe Cocco ao redor disso. O tamanho do desejo com a eleição de Lula não pode se restringir à política da utopia negativa ou catechon, a querer mais um entrincheiramento, mais um mal menor. É preciso aproveitar a pausa constituinte que a eleição de Lula nos proporcionou, e preparar-se para reconstituir os problemas do governar na crise.

Vivemos um tempo úmido, sem certezas e prognósticos seguros, em que, como em 2013, muitos tempos se sobrepõem e se conflagram. É um momento crucial de reorientação.

 

 

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