Bruno Cava
Lula vai ganhar a eleição. Se não ganhar no primeiro, será no segundo turno. E sendo muito sincero: é melhor que acabe logo no primeiro turno. Que acabe logo, porque, tirando aqueles mais diretamente engajados, o esgotamento é geral. A década das grandes mobilizações de 2010 foi repleta de acontecimentos e transformações, mas no meio do caminho havia uma pandemia. Tempo de dessocialização, involucração psíquica, recuo para dentro de si, período difícil para todo mundo, período cujo fim coincide com esta eleição, que será o fim do (des)governo Bolsonaro. Além disso, ocorreu a dupla queda do trumpismo, nas urnas e no tapetão do Capitólio invadido, a consolidação do governo do Partido Democrata nos EUA com Biden, a invasão russa de Putin na Ucrânia e, mais recentemente, a insurreição das mulheres no Irã teocrático. Novos ventos, novas possibilidades.
A candidatura de Bolsonaro não merece nenhum comentário mais elaborado, seria reconhecer-lhe uma relevância e um conteúdo que não tem. Há um congestionamento de textos, debates e até livros inteiros com uma direitologia que está sobrando. Descritivamente, repetir que a direita é a direita ou que o (micro)fascismo é fascismo é ocioso. Performativamente, tampouco haveria muito sentido em tentar convencer as pessoas que fulano ou beltrano é fascista, pois para a pessoa faz mais diferença saber o que será feito dos programas de renda, das oportunidades de trabalho, da inflação dos preços básicos etc. É como chegar a um eleitor de Meloni, na Itália, e dizer para não votar nela porque é fascista. Seria perda de tempo. A resposta à italiana provavelmente seria um “boh”.
Mais importante do que isso, o trabalho intelectual realmente difícil, é continuar desenvolvendo as explicações sobre as passagens e desdobramentos para compreender 1) porque, em 2018, a maioria dos votos válidos foi para Bolsonaro, 2) porque ainda há uma parcela significativa de apoiadores dele, e 3) porque fração de bolsonaristas que antes de 2018 era composta de lulistas voltou a ser de lulistas, que aliás é _a_ transferência decisiva de votos nesta eleição de 2022. Sem recorrer a metafísicos “conservadorismos de fundo”, o que não passa de teologia negativa: haveria um fundo social sinistro que deveria ser continuamente recalcado, controlado, domesticado. Isto não passa da utopia negativa ou pessimismo antropológico, versão secularizada do Katéchon.
A candidatura de Lula não é da mobilização, da recomposição da luta, nem de uma guinada para esta ou aquela direção. É a candidatura da conciliação, da frente ampla, do comitê de salvação nacional. Seu slogan é “Lula ou Barbárie”, uma disjunção cujo grau de acerto se tornou mais convincente depois da gestão negacionista e criminosa da pandemia no Brasil, que todos conhecem. Pela sua história, Lula é a liderança política excelente para o papel de pacificar o país de polarizações e fratricídios, como já compreenderam bem todas as forças minimamente democráticas dos mercados, das instituições públicas, da classe política, dos representantes internacionais.
Com Lula, é pura verdade, não há chance de um golpe depois da eleição. A provável mobilização dos perdedores da eleição terá por função recompor um terreno para a oposição bolsonarista nos próximos anos, mas não para aventuras golpistas, pois golpe de estado é ciência (régia), depende de condições e variáveis mensuráveis, e elas não estarão presentes. Lula vai ganhar e vai levar, isso é bem claro, mas a barbárie seguirá firme. O futuro próximo é Lula e Barbárie. O Brasil não vai voltar a ser feliz de novo, ainda que a saída de Bolsonaro nos dê uma óbvia alegria ou, pelo menos, um descanso efêmero e merecido.
O erro não é declarar voto em Lula logo no primeiro turno, que é mais sinal de cansaço (com todo o processo) do que de esperança. A esperança que vamos viver num mundo sem Bolsonaro é ilusória, porque o fenômeno social continuará atuando, ainda que os ventos globais (ascensão de Biden, derrocada de Putin, lutas das mulheres iranianas) hoje lhe soprem desfavoravelmente. Pelo menos, há a esperança que, nos próximos quatro anos, se possa retornar a uma base institucional minimamente democrática, um padrão básico de liberalismo político e econômico, que os governos liderados por Lula souberam manter até 2010.
O erro seria acreditar que essa eleição simplesmente passa uma borracha sobre o legado da década passada: o fracasso do neodesenvolvimentismo em seus próprios termos, a ideia de um modelo ainda mais predatório e autoritário de capitalismo estatizado, a divisão de Operações Estruturadas da Odebrecht, as revelações dos Panamá Papers, o Petrolão (que não foi invenção da mídia, mas a mais reles safadeza disfarçada de “progressismo”), a campanha permanente de desconstrução da segunda via (uma alternativa possível na centro-esquerda, como Marina ou Ciro) ou terceira via (uma alternativa neoliberal), com recurso a fake news e assassinatos de reputação, tudo isso que contribuiu para desintegrar a arena pública e mergulhá-la na pós-verdade, uma das condições da ascensão do bolsonarismo.
O fato é que o PT majoritário não aprendeu nada nem esqueceu nada, como diria Tayllerand. Considera um grande mérito político ter superado as consequências da crise do governo Dilma, a desconstrução sistemática de Marina, a repressão de Junho de 2013, a desqualificação dos protestos do ciclo anticorrupção e, finalmente, o sentimento antipolítico diante de tantos escândalos e de sua insistente e deslavada denegação. Mas agora não importa, o fato que eles, os petistas, voltem triunfantes para retomar as coisas onde pararam, apesar das condições de contorno mais erodidas. Ainda assim, é preciso declarar o voto em Lula nesta eleição. O mais importante é que as forças democráticas que cerram fileiras, elas não esqueceram. Aprendemos algo e não esquecemos, isto é o mais importante, porque sem redes atentas, atuantes, não há como evitar a repetição das mesmas dinâmicas e mecanismos que nos trouxeram até aqui, ainda mais piorados.
Entendo as pessoas conhecidas e amigos que declaram voto no Ciro ou nulo. Compreendo vocês perfeitamente. É irritante que haja um batalhão de funcionários (muitos pagos ou com expectativa de receber; outros de graça, no espírito empreendedor) que se espalha pelas redes cobrando voto como se fossem nossos credores. Como se tivéssemos contraído dívida com alguém ou conosco mesmos, com um tipo de superego progressista ou esquerdista, para adotar esta ou aquela postura como imperativo categórico. Meu problema com o Ciro é simplesmente que não concordo com as suas ideias. O voto nulo é um voto, mas não contribui para encerrar esse pleito de uma vez, já no próximo domingo, movendo-nos para outros problemas.
No meu caso, garanto, não é por pressão externa ou por cobrança de falsos credores, mas por introspecção, que chego à conclusão que a melhor saída, a saída beckettiana, de um esgotamento que ainda aposta em novas possibilidades, é Lula ganhar logo no primeiro turno.