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A cidade contra a identidade vermelha

Por Renan Porto, para a UniNômade

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Decerto é mais fácil reproduzir que criar. E assim crescemos: imitando referências. Mas também crescemos sendo castrados e disciplinados em nossa criatividade para sermos ensinados a reproduzir os modelos que já estão postos: as identidades. Somos treinados para encenar os papéis dos personagens que compõem a nossa ficção social. Os desejos que não deixam. Inquietos, eles escapam pelas frestas e escrevem outras histórias. “O desejo torna os seres humanos mais inteligentes”, se diz no filme Náufrago na Lua, do diretor coreano Lee Hae-jun, que narra a história de um homem isolado numa pequena ilha que teve de criar pra sobreviver.

Assim nos quer hoje a casta política no poder: isolados. Mesmo que esse isolamento seja num quarto de brinquedos onde se possa pôr uma capa vermelha e brincar de super-herói sob tutela da pátria educadora. E para os que não tem pátria, tem mátria e querem frátria, resta a criminalização – terroristas! – e uma carrada de desqualificações: coxinhas, burgueses, “ah, vocês não tem o que temer se a direita voltar!”, dizem, enquanto a ex-querda deixa aumentar salários de parlamentares, corta verbas da educação e permite (ou faz) que índios e jovens negros morrerem a esmo.

Outros de boa consciência dizem que devemos limpar as paredes da bolha com cuidado para não estourar. Purificar a identidade de esquerda e deixá-la tinindo. Encarnar a doxa e fazê-la conhecida por cartilhas e manuais de “como ser de esquerda”. Os discursos, as bandeiras, coros e gritos de guerra: apenas repita e marche! Cabeças a mudar-se e preencher-se com o que se deve pensar: “Ah, mas, já foi debatido em todas as instâncias, por que você não foi nas plenárias?” Mais uma circular da direção nacional: cumpra-se.

Eu que vim de uma formação cristã um dia aprendi a ler a bíblia sem a ótica das doutrinas totalizantes e ficções da teologia ocidental, que tentam apreender o inapreensível da fé. Descobri na bíblia histórias de povos, tribos e profetas que por volta de 1220 a.C. já lutavam por terra e liberdade, resistiam à poderes imperiais, denunciavam injustiças. Muito antes dos bolcheviques tomarem o poder, estourava há mais de 100 anos antes do nascimento de Jesus a revolta dos Macabeus contra o Império Selêucida. E sabemos também de tantos levantes e revoltas que ocorreram na América Latina e na África nas lutas por libertação da colonização. Todas essas lutas se constituíram a partir do seu contexto e pelas necessidades da situação definiam o que eram e o que queriam.

Mas, depois que Lênin sistematizou o militarismo de Clausewitz numa receita de burocracia autoritária e chamou isso de partido revolucionário, agora há um só modelo de ser um autêntico revolucionário. “Kit militante! Venha e pegue sua bandeira, camisetas e livros. Não se esqueça de ler a nova cartilha: cumpra-se”. O que foge a regra, por mais que também seja uma justa revolta, por mais que sejam clamores por corpos negros caídos no chão, por mais que receba tiro do Estado, corre risco de estar fazendo o jogo da direita.

Ah, a direita… BU!

O ano de 2015 está nos mostrando sua cartilha sendo seguida por nossa presidenta, que, coitada, não pode fazer nada – “É que minha conjuntura não permite”.

Contra a identidade vermelha: a cidade, city, cité.

É nas demandas reais de nossos espaços urbanos e na organização da indignação daqueles que vivenciam todos os dias os serviços públicos que devemos constituir nossas organizações políticas. E nesse mesmo espaço onde se situam e circulam nossos corpos, fazer surgir a democracia com mais presenças que representatividades, deixar vibrar as vozes que não são escutadas, aparecer os corpos que são invisibilizados, e assim irmos produzindo espaços comuns, novas organizações e instituições comuns, o comum. Sem fetiche de fazer cumprir um modelo ideal, transcendente, mas, no plano da imanência, organizarmos nossa luta por aquilo que queremos. E mais do que fazer articulações políticas, ter nesse processo a abertura para a pessoalidade, afetividade e diálogo, pois é mesmo na relação com o outro que nos constituímos a si mesmo e a nós como corpo coletivo. O rosto do outro que nos confronta faz falhar as cartilhas.

 

Renan Porto é estudante de direito da Universidade de Uberaba (Uniube)

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