Universidade Nômade Brasil Blog Sem Categoria A crise da identidade política: reinventar-se ou morrer
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A crise da identidade política: reinventar-se ou morrer

Por Gigi Roggero, em Commonware (editorial), 8/1/2014 | Trad. UniNômade Brasil

telescopio

“Hoje é 10 de janeiro de 1610. A humanidade escreve em seu diário: aboliram o céu”

“Galileu: quem vê o pão só quando está sobre a mesa não quer saber como foi feito. A canalha prefere agradecer a Deus mais do que ao padeiro? Mas quem faz o pão sabe que nada se move que não tenha sido posto em movimento.”

“Ludovico: ficarão escravos das suas paixões.”


B. Brecht,

Quem são os populistas? Protagonistas de uma nobre tradição revolucionária que, na segunda metade do Oitocentos, buscou derrubar o czarismo (expulsando também o odiado Alessandro II). Eram intelectuais radicais que caminhavam no meio do povo, de quem exaltavam formas de vida, em desaparecimento ou profunda mutação (antes de qualquer coisa, da pequena comunidade rural, a obščina). Mitificado, o povo frequentemente assim terminava tornando-se abstrato ou desencarnado: o único sujeito concreto do populismo acaba sendo próprio o intelectual revolucionário. Nesse aspecto, não nos interessa tanto uma reconstrução historiográfica ou etimológica do termo “populista”, do que um ponto político prenhe de atualidade: existem categorias (populismo é uma destas, mas não certamente a única) que se continua a usar amplamente, segundo uma espécie de coação repetente, de preguiça conceitual, do medo da perda da própria zona de conforto. Seria hora de superar estes tiques nervosos e aposentar definitivamente o doutor Strangelove que se abriga dentro de nós? Seria hora de se tocar que, se não servem mais para interpretar e, sobretudo, transformar a realidade, tais categorias devam ser jogadas no lixo ou reinventadas completamente? Isto é, para nós, o princípio fundamental de um realismo materialista, que nada tem a ver com aquela realpolitik sempre fedendo a oportunismo.

Se começamos pelo populismo, é porque tem um motivo: nos últimos vinte anos, a etiqueta “populista” tem sido um tipo de sentença inapelável de condenação, que atinge de maneira transversal. Mas o seu uso — secundário na ordem do discurso dominante — se deteriorou com o desenvolvimento da crise. Se, para além dos sujeitos abstratos exaltados pelos populistas russos, déssemos um nome diverso ao fenômeno, selecionando-o do amplo repertório conceitual usado nos últimos anos para identificar os sujeitos-que-esperamos, ou os espaços das lutas contemporâneas, o campo semântico do populismo se arruinaria de modo surpreendente. Aqui, o problema, porém, consiste em que, se não serve de nada jogar fora o “populismo” que, hoje, tenta compreender condições de vida e comportamentos subjetivos das figuras do trabalho vivo contemporâneo; nos arriscamos por outro lado em submergir em suas expressões bastardas, em navegar por suas fronteiras ambíguas, em tentar orientar-se e agir dentro de movimentos impuros e, por vezes, chafurdando na lama. Diante disso, a simples pergunta que colocamos é: existe uma alternativa a correr o risco de emporcalhar-se? E se a alternativa for um refúgio no céu de certezas identitárias dúbias e léxicos já-famosos, que aquecem os nossos corações e nos isolam na marginalidade política; nesse caso, a isso preferimos o perigo — duramente terreno — da porcaria ideológica.

Annus horribilis?

A esquerda [italiana] não morreu nas últimas eleições: o seu falecimento remonta, pelo menos, ao fim dos anos 1970. Em nome do interesse geral, quer dizer, o interesse capitalista,  escolheu a tese da “autonomia do político”, atirando às prisões os movimentos e a composição da “segunda sociedade”. Primeiramente, a esquerda até hoje não entendeu nada sobre as transformações do trabalho e das subjetividades, e continua desfiando acusações de novecentismo, protofascismo, provocadores e todos quantos. Hoje — se, pelo menos neste caso, um paralelismo histórico nos seja permitido — podemos aparentemente vislumbrar traços similares. Nada a ver, realmente, entre o contexto social de agora e a densidade de antagonismos da época, como se tinham expresso nas duas décadas precedentes. A similaridade pode, no entanto, ser identificada pela mesma exigência: hoje como naquela época quem não perceba as transformações profundas, e se repense dentro delas, provavelmente não entenderá nada. O 2013 italiano não virá incensado aos anais da história das lutas, sobretudo aquelas com que seríamos contentes ou que buscamos animar, mas certamente algumas indicações importantes essas lutas nos forneceram.

Assinalamos, a seguir, algumas delas, de maneira grosseiramente esquemática:

— Uma fração consistente do precariado cognitivo se exprimiu politicamente através da forma-Movimento CinqueStelle [1]. Não vamos repetir aqui análises e considerações que já desenrolamos alhures, sobre as ambivalências desta forma de expressão, sobre o pastiche de irrepresentabilidade e verticalização autoritária, cooperação reticular e recuo proprietário, reivindicações de renda e fechamento corporativo, pesquisa da liberdade e rancor justicialista. Uma parte desses sujeitos já tinha um background de mobilizações, através ou nas proximidades dos movimentos estudantis, a partir da Onda [2]; enquanto outros se agregaram de maneiras até aqui impensadas para nós. Com gradações e intensidades muito diversas, características e contradições deste tipo de expressão política se podem encontrar noutros movimentos na crise (por exemplo, entre os indignados espanhóis).

— O rebaixamento da “classe média” se tornou, além disso, uma percepção difusa, a ponto de orientar escolhas e comportamentos. A partir da análise da dupla crise, da universidade e econômica, antecipamos a linha de tendência. Hoje, no momento em que se realiza, limitar-se a relatá-la seria muito pouco. O 2013 — até chegar à mobilização do 9-D e seu entorno (o tomamos mais vezes em consideração como um evento controverso e contraditório, extremamente diversificado, não massificado e provavelmente não paradigmático, mas certamente sintomático) — nos indica o alongamento e o estriamento de processos de rebaixamento social, com as suas diferenciações temporais e de perspectiva. Urge, portanto, dar um passo adiante, entender quais sujeitos estão definitivamente proletarizados ou subproletarizados, quais estão em vias de rebaixamento, quais estão lutando contra o rebaixamento, e quais se beneficiam do rebaixamento dos outros. Não se trata de mera sociologia, conquanto tenhamos a impressão que, nesta fase histórica, se sinta mais necessidade de boa consciência, também somente descritiva, e menos de filosofia política. O ponto não é, porém, “disciplinar”, mas inteiramente político: desses diferentes sujeitos se trata de compreender quais comportamentos exprimam ou poderiam exprimir, quer dizer: — para não findar prisioneiro do feitiço da heterogeneidade — quais poderiam ser os possíveis terrenos comuns?

— Como já aconteceu em alguns feixes de lutas, a partir do outono de 2010, a mobilização dos precários de segunda geração se revela decisiva para a intensidade, radicalidade, sua recusa quantitativa e qualitativa. Além disso, ela está consolidando nos movimentos dos estudantes secundaristas, em particular, através dos precários imigrantes de segunda geração. Fizeram a diferença no 9-D, em Turim, expressões que outrora seriam mais usuais de um proletariado das periferias, com quem dificilmente entraremos em contato em nossos ambientes militantes. A definição de precário de segunda geração engloba aqueles que são imediatamente socializados num contexto definitivamente privado de futuro: também esta categoria, inicialmente útil e provavelmente certeira num nível global, deve agora ser desenvolvida e aprofundada, sob pena de tornar-se demasiado genérica para municiar a intervenção militante. Existe uma diferenciação a entender-se na maneira como os sujeitos são privados de futuro e vivem o eterno presente da precariedade, bem como na crença da possibilidade de fuga em direção a um fora mais ou menos mítico, ou na consciência da inexistência desse “fora”, e também diferenciação quanto ao grau de cognitivização do trabalho de que participam, e em meio ao que podem ocasionalmente revender no mercado de trabalho.

— Não nos interessa retomar os debates, amiúde ambíguos, sobre a emergência de uma “questão setentrional”. Nos interessa, em vez disso, raciocinar sobre a renovada centralidade política do ex-triângulo industrial, em formas completamente diversas e, certas vezes, revolucionadas em comparação ao passado. Enquanto Milão reflete a crise do capitalismo cognitivo, Turim e Gênova, ou melhor, Piemonte e Ligúria, são hoje lugares duramente atingidos pelo empobrecimento e pela substancial falência do projeto de construção de uma economia pós-industrial. Ao lado da abertura de novos “horizontes meridionais”, é esta geografia social e política do norte que precisamos levar em conta, se quisermos compreender as formas de mobilização e conflito articuladas na caminhada da crise na Itália.

— Espaços e tempos da metrópole se afirmaram plenamente como coordenadas fundamentais para a ação política. Não é uma novidade, mas certamente o dado está se consolidando. Apenas para ficar nos eventos recentes, pense-se nos trabalhadores do transporte de Gênova: a luta deles contra a terceirização dos serviços, num processo em que público e privado se tornam cada vez mais indistinguíveis; pois, embora parta de uma especificidade setorial, essa luta investe imediatamente o espaço urbano como um todo. É fácil prever como a batalha ao redor do bem estar metropolitano, como sucedeu no Brasil, constituirá uma característica central das lutas por vir. Quem, além disso, interpretou tout court os ditos “forconi” [3] como uma reedição da Vendeia não se deu conta dos comportamentos completamente metropolitanos que, pelo menos nalgumas situações, caracterizaram a mobilização. E dizendo isto, pensamos obviamente também no uso da rede e das mídias sociais, ademais inseparáveis do tecido relacional e comunicativo que atravessa e compõe os espaços urbanos. Depois de tanto termos falado a respeito, alguma forma de greve metropolitana finalmente sucedeu, ainda que muito diversa de como a havíamos imaginado ou sonhado. Mas, em vez de perder tempo resmungando, é melhor arregaçar as mangas e experimentar lugares comuns metropolitanos, de modo a agregar e compor figuras do trabalho vivo e do conflito urbano, retalhando e recombinando pertencimentos setoriais e fragmentos biográficos.

Em suma, a nós parece que também este ano difícil em que nos recostamos (apesar de tudo difícil para nós e nossa incapacidade) indica não uma “anomalia” negativa do contexto italiano, um tipo de isolamento territorial. Isto que vimos, ao invés, são expressões específicas de uma dimensão europeia e transnacional, também quando comunicadas com linguagens e símbolos nacionais. O “todos em casa” que mancomuna as várias figuras supramencionadas soe talvez muito mais “populista” do que o exótico “que se vayan todos!” das praças argentinas ou do “dégage!” das insurgências árabes, e é menos politicamente correto do que o “não nos representa” pronunciado nas mobilizações estudantis ou nas acampadas espanholas. E, todavia, força, ambivalência e ambiguidade nos pareçam ter muito em comum.

Entre paixão de objetivismo e objetivismo das paixões: a subjetividade é um campo de batalha

Com o aprofundamento da crise e o seu caráter permanente, no debate teórico circunvizinho ou dentro do movimento, há a tendência de reforçar uma polarização um tanto problemática e, às vezes, enjoativa. De uma parte, exista quem explique porque a composição de classe, como é feita na Itália, não possa levar a êxito o M5S ou os “forconi”. O resultado é de uma inutilidade substancial de ação política, ou melhor, a possibilidade de salvação viria de longe, por exemplo, de operários de países que se presumam neotaylorizados. De outra parte, exista quem, compartilhando plenamente a avaliação do caráter unilateralmente reacionário do M5S e dos “forconi”, lhes faça uma leitura aparentemente oposta, plasmada de uma espécie de taxonomia das paixões. Desde que o glossário spinozano entrou na moda, têm sido irremediavelmente condenadas as “paixões tristes”. Mas estamos certos que um sujeito que se debate na triste vida de exploração e empobrecimento possa experimentar somente paixões alegres e lutar somente em nome delas? Não se corre o risco de chamar paixões alegres aquilo que, para os ideólogos armados de outro glossário, aquele do marxismo ortodoxo, era a “consciência de classe”?

Trocando a ordem dos fatores, de qualquer modo, entre os dois polos o resultado não muda: o agir político não pode nunca dar-se por meio da transformação da subjetividade, ou ainda assumindo-a como campo de batalha; mas somente a partir de alguma subjetividade já constituída, uma conscientemente classista ou puramente alegre. E, como as únicas subjetividades conscientes e alegres somos nós próprios, é melhor refugiar-se dentro de famílias tradicionais e pequenas comunidades que se coçam entre si com os mesmos léxicos e formas de vida, confiando a um muito além — da China à Europa — as próprias esperanças revolucionárias. Esta polarização deve ser destroçada e desarticulada. Que sentido tem, de fato, falar de uma composição revolucionária ou reacionária, como se esses atributos estivessem objetivamente inscritos nos corpos e modos de agir das figuras sociais?

Façamos alguns exemplos concretos. Quem hoje abre um pequeno negócio com altas chances de fechá-lo depois de alguns meses, é objetivamente um reacionário? Quem se endivida até o osso para comprar um utilitário e trabalha até vinte horas por dia para pagá-lo, como pode ser definido? Quem tem uma barraca no mercado e é estrangulado de impostos de que não vê destinação em termos de bem estar e serviços, é um contrarrevolucionário ou potencial desertor a jogar na masmorra? Um jovem das periferias é, pela sua própria natureza, portador de um niilismo triste e ressentido? E ao redor de um tema como a corrupção, escorregadio porém comum a todos os movimentos na crise, é de verdade, assim linearmente simples, de defini-lo entre o rancor contra os corruptos e o ódio de classe contra um sistema que produz ele próprio a corrupção? Por ironias deste tipo, depois de despender tanto tempo criticando a Diamat [materialismo dialético ortodoxo] marxista e a combater a esquerda, ante o impasse teórico e político tantos se mostrem afinal marxistas e de esquerda. É também para evitar esse desventurado fim que insistimos em processos de contrassubjetivação ou subjetivação autônoma, ou melhor, sobre a necessidade imprescindível de romper os processos de formação capitalista. Ou, para dizê-lo de outra maneira, insistimos sobre o fato que o capital não nos indica mais um sujeito já pronto para a revolução, que poderia ser banalmente ativado em sua “consciência de classe”, ou que pudéssemos confiar misticamente nas alegres paixões. A dimensão espúria e bastarda das lutas, que tende a amplificar-se na crise, encontra aqui o seu cerne material.

Tudo bem, se dirá, mas esses aí brandem bandeiras nacionais! Abertamente, por quem agita o símbolo fazendo-o com objetivos políticos conscientes e é explicitamente fascista, mas também por muitos outros, — entre eles vários imigrantes, — para quem a bandeira italiana é um objeto de consumo como tantos. A sua especificidade mercadológica consiste em vender identificação: são as mesmas bandeiras que, há três anos, “decoravam” os balcões das periferias proletárias de Turim no centésimo quinquagésimo aniversário da unidade italiana, naquela ocasião benditas pela esquerda e pelo Napolitano, o pai-tutor da amada constituição. Digamo-lo de chofre, brincando ainda com a história: se a mutação antropológica da primeira guerra mundial tinha transformado o proletário em “ardente”, aquelas dos últimos trinta anos pouco gloriosos os transformou em “homem mediatizado”. Usa a mídia e é usado por ela: trata-se aqui ainda outra vez de campo de batalha. Os comportamentos devem ser consequência disso: limitar-se a adulá-lo e encorajá-lo a usá-la é democracia míope, ignorá-los e condená-los por usá-la é míope dogmatismo. É o mesmo esforço que fizemos para entender que coisa havia atrás das bandeiras brasileira e turca, ou daquelas faixas e estrelas agitadas pelos latinos na mobilização de 2006, cujo significado formal tínhamos a mesma falta de simpatia que agora nutrimos pelos panos tricolores. Romano Alquati nos lembrava como, fora da hagiografia, o “mais salário e menos trabalho” servia por vezes ao operário-massa para ir jogar no cassino ou dedicar-se a formas de consumo “destrutivo”, isto é, tudo isto que fazia dizer aos marxistas e à esquerda que esses se tratavam de provocadores ou sujeitos sem consciência de classe e, portanto, facilmente presas para agendas reacionárias. Isto significa que este problema não exista? Nada a ver. Mas é preciso reconhecer que esteja inscrito num problema maior, qual seja: a produção de subjetividade da parte do capital, essa que frequentemente prestamos demasiado pouca atenção.

Do mesmo modo, não temos simpatia pelos sentimentos antieuropeus. Se devemos julgá-los, do ponto de vista da racionalidade política, os temos por insensatos e neles enxergamos traços extremamente perigosos. Contudo, a ruína simétrica deles, o europeísmo, não somente não consegue combater as posições antieuropeístas, como também termina por entregar de mão beijada a elas partes significativas da composição social em crise. Ambas as posições são atalhos, uma armadilha a escapar, porque se esfumam inevitavelmente na dialética entre veneno demagógico e autonomia do político. O ponto está, então, em compreender o platô sobre o que se move a racionalidade dos sujeitos em carne e osso. O que significa, por exemplo, a Europa para um caminhoneiro em dificuldades?, senão as normas que lhe impedem de usar o caminhão, para cuja compra aliás se endividou? Não o dizemos para comprazer ou subscrever os comportamentos do trabalho vivo (mais do que populismo, seria estupidez), mas para entender como transformá-los e combiná-los sobre um platô diferente. O tema da Europa deveria ser reafirmado de cabeça para baixo: não a partir da má autonomia das “classes políticas”, institucionais ou de movimento, mas sim da boa autonomia das experiências de luta, de seus traços comuns, arrancando-as assim de problemáticas meramente territorialistas. Este processo, contudo, se pode fazer somente desde o interior ou, se o leitor prefira, na imanência da composição de classe historicamente determinada. E aqui dentro individuar tendências e centralidades, linhas de força subjetiva, de ruptura e revolucionamento constituinte, de abertura recompositiva contra o fechamento corporativo. No entanto, exista quem — e provavelmente esses aumentarão nos próximos tempos — se recuse de ver, propondo remeter Galileu à fogueira. Se a realidade não é como gostaríamos que fosse, basta não encostar o olho no telescópio e continuar a pensar que o mundo gira em torno de nós e nossas certezas.

Fazendo assim, entretanto, terminamos por sermos nós os verdadeiros reacionários — em senso técnico, isto é, enquanto defensores de um mundo de ideias que não existe mais. Não é caso, então, que o 2013 nos indique também fraturas dentro do movimento, sobre a questão da esquerda e da herança de seu cadáver. Não é uma simples questão de autodenominação, nem de perspectiva eleitoralista (conquanto seja evidente que a iminente virada europeia oriente opções e tonalidades de discurso). O buraco é mais embaixo, está em jogo a escolha entre a defesa da própria identidade em via de extinção, com sua bagagem de léxicos, práticas e categorias, e a construção de novas formas de militância, agir político e ferramentas conceituais adequadas. Conservação ou revolução, por conseguinte. Começamos a por e a pôr-nos os problemas: parece-nos já um ótimo propósito e, talvez, uma proposta concreta para o ano que se abre. Façamos agora um esforço, companheiros e companheiras, nada hemos de perder senão os grilhões de nossas ideologias.

 

Gigi Roggero é militante de Commonware e do movimento autônomo na Itália, escreveu vários livros nas lutas e sobre as lutas

Tradutor: Bruno Cava.

NOTAS DO TRADUTOR:

[1] – Movimento Cinco Estrelas ou M5S foi o grande vencedor das últimas eleições italianas. Embora não tenha formado maioria absoluta, ficou na frente dos outros partidos no pleito, podendo assim, segundo a lógica do regime parlamentarista, indicar o primeiro-ministro. O escolhido foi o líder Beppe Grillo, um comunicador e comediante. O M5S abriga no interior diversas tendências, com as bandeiras da “nova política” e da recusa à representação tradicional. No entanto, trata-se de um movimento bastante ambíguo em que o “novo” nada garante por si, quando não vem acompanhado de elementos materiais de crítica e transformação do sistema político e social, no contexto de um capitalismo financeirizado em crise por toda a Europa. Além das tendências personalizantes (estilo ‘celebrity’) e o discurso redentor “além da política”, o movimento não parece capaz de firmar-se como terreno para uma recomposição de classe entre precários, estudantes, imigrantes, árabes e outros sujeitos políticos em luta, apesar de seu sentido ainda estar aberto a tendências variadas.

[2] – A “Onda” foi uma sequência de mobilizações predominantemente estudantis, no final da década passada, de forte recusa à representação política, pleiteando outras formas de organização e comunicação, e preparando em certa medida o terreno para a gestação do M5S e outros grupos que se propõem a renovar o engessado cenário partidário e eleitoral da Itália.

[3] – “Forconi” são os microempresários e empreendedores do pequeno comércio,  artesanato ou agricultura familiar, geralmente cidadãos brancos italianos, na base da composição social de protestos pela Itália, no final do ano passado, com uma pauta agudamente ambígua e problemática, misturando a crítica à representação política e à crise econômica, com sentimentos mesclados antipolítica, antipartido e “contra a corrupção”, e em meio ao que algumas análises “mais à esquerda” imputaram devires reacionários e fascistas, especialmente na reivindicação de um bom capitalismo e um bom mundo do trabalho, protecionismo e nacionalismo. O nome “forconi” deriva dos garfos de feno usados em manifestações por pequenos agricultores e pecuaristas da Sicília, em 2012, e acabou colando, posteriormente, para esse tipo de manifestação em toda a Itália. Ver, a esse respeito, um editorial anterior de Commonware, traduzido pela UniNômade BR: O céu em desordem se abateu sobre a terra.

 

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