Por Bruno Cava | 10/02/2023
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1. Conjuntura
A tentativa de integração regional da América do Sul está num impasse. Se as iniciativas da União das Nações Sul-Americanas (UnaSur) e do Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosur) racharam internamente e, na prática, morreram; o Mercosul sobreviveu, embora respire através de aparelhos, às sucessões de governos de direita e esquerda (com os seus golpes e contra golpes e vaivéns econômicos), à recessão de quase uma década na maioria dos países sul-americanos e à paralisia resultante da pandemia da covid-19. A alternância de anomia e casuística das políticas conjuntas do Mercosul esvaziou o horizonte estratégico do bloco, agravando a falta de medidas comuns para fomentar a segurança social, reduzir as desigualdades regionais e harmonizar a legislação sobre os direitos das minorias. Em termos de infraestruturas de transporte, logística e produção de interesse mútuo, destaca-se a fragmentação acelerada que já se inicia dentro dos países, orientada para encadear e desaguar a produção de commodities agrícolas, minerais e energéticas, para fins de exportação. Quanto aos grandes reveses políticos do Mercosul, podemos citar: a deserção iminente do Uruguai em nome da abertura unilateral de negociações comerciais com a China; a suspensão da Venezuela desde 2016 por descumprimento da cláusula democrática (Protocolo de Ushuaia); e a não-entrada em vigor do acordo de liberalização do comércio entre o Mercosul e a União Europeia, devido à violação dos compromissos ambientais, especialmente por parte do Brasil.
É curioso que a retomada da discussão sobre a moeda comum, com o nome provisório de ‘peso-real’ (outra possibilidade é chamá-la ‘sur’), tenha sido abraçada tanto pelo antigo super-ministro do governo de Bolsonaro (2019-22), o economista neoliberal-chicaguista Paulo Guedes, quanto pelo novo ministro da economia do PT de Lula, Fernando Haddad, que retomou explicitamente essa agenda em janeiro, embora repaginada. De toda sorte, tanto a direita neoliberal quanto a esquerda nacionalista parecem convergir quanto à recolocação da agenda de integração regional, embora com diferentes objetivos programáticos. Os primeiros, livre-cambistas, vêem o Mercosul como uma alavanca de maior poder de negociação, maior proteção contra choques externos e ganho de credibilidade internacional. O segundo grupo, os nacionalistas, rumina antigas teorias anti-imperialistas dos anos 1970, procurando coordenar políticas para a formação de um mercado interno inter-bloco, massa crítica de investimento e concatenamento das vantagens comparativas para a industrialização endógena, e uma redução da dependência em relação à moeda imperial, o dólar.
De fato, a causa imediata da aproximação governamental entre o Brasil e a Argentina está relacionada com a dificuldade deste último em refinanciar-se com hard currency, o que acaba por congelar os investimentos devido à falta de crédito externo. Até agora, a China ainda não conseguiu ocupar a posição de uma moeda transnacional alternativa ao dólar. Como resultado, a mera restrição em dólar do Tesouro argentino compromete o seu comércio externo. A rediscussão de uma moeda comum com o Brasil está ligada à ativação de um mecanismo de moeda contábil bilateral (unidade de conta), um sistema de pagamentos que permitiria viabilizar o comércio dentro do bloco sem o recurso direto ao dólar, por meio de contratos de câmbio indexados localmente. Do lado brasileiro, com o terceiro mandato de Lula (2023- ), trata-se de uma manobra publicitária para vender a imagem da reinserção do Brasil como protagonista de um bloco regional e participante dos BRICS, de modo que o presidente recém-inaugurado prometeu também ressuscitar a Unasul. Assim, menos do que uma nova arquitetura financeira à altura dos desafios da globalização financeira do século XXI e das cadeias de valor flexíveis e algorítmicas, o nível do debate intergovernamental sobre a moeda comum oscila atualmente entre o slogan e a medida provisória.
Neste cenário de dificuldades estruturais e casuísmo, é natural que a proposta tenha sido mal recebida pela imprensa, em especal pelos colunistas econômicos. Argumenta-se que a presente proposta para uma moeda comum seria apenas mais uma moda, uma ideia sazonal efêmera, que não toca o nervo dos problemas de cada país e, ao contrário, levaria a uma maior desorganização sistêmica, elevados custos operacionais de implementação e ainda mais sacrifícios para os mais pobres. Um dos memes em circulação mostra uma pessoa vulnerável a comprar pão com uma pilha de pesos-reais — referência à taxa de inflação galopante que, em 2022, fechou no Brasil em cerca de 6%, quase o dobro da meta do Banco Central brasileiro de 3,5%, enquanto no mesmo ano a argentina estava perto dos 100%, já podendo ser considerada uma situação de sobreinflação inercial.
Como se poderia passar para uma moeda comum, o que pressupõe uma autoridade monetária crível e segurança jurídica, com tal falta de controlo inflacionista?
2. Aposta
É necessário deslocar todo o debate em torno da moeda comum. Os impasses e obstáculos brevemente discutidos acima, numa palavra, a crise do precário eixo Sul-Sul, devem ser entendidos como uma oportunidade para a ocupação do terreno pelas lutas e a criatividade dos movimentos. A tarefa teórico-política consiste em fazer a transição ativa da crise para a constituição de alternativas. A estagnação tem uma causalidade tripla, que deve ser abordada, inclusive na sua interdependência.
Em primeiro lugar, a crise resulta do fato de a condução das políticas de integração regional sul-americanas serem dirigidas pelos Estados, à discrição dos governos envolvidos. Os Estados são entendidos como entidades unitárias, com estratégias para a afirmação da soberania no contexto das tensões e conflitos renovados da globalização, onde a disputa interestatal entre os EUA, a UE, a China e a Rússia se intensifica. Perdemos assim de vista a forma como os conflitos e tensões permeiam os estados como clivagens internas que se relacionam em múltiplos níveis — por exemplo, o ressurgimento trumpista no bolonarismo americano e brasileiro; ou entre a direita xenófoba europeia e Putin. Ao mesmo tempo, as lutas também têm lugar num ecossistema transnacional, por meio de contágios ou redes desterritorializadas, como no ciclo da Primavera árabe, as jornadas de Junho de 2013 no Brasil, ou o movimento 15-M em Espanha e Catalunha. Neste sentido, vale a pena reconstruir fóruns e instâncias a meia distância, entre governos e movimentos, retomando o legado dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e os momentos mais criativos da desaparecida Maré Rosada – e sem a nostalgia da epígrafe “populismo de esquerda”. Face ao vácuo estratégico manifestado pelos governos, na sua coordenação dependente de estados de espírito ideológicos, cabe às mobilizações nas diferentes esferas alterar a correlação de forças e reimaginar a integração.
Em segundo lugar, a crise está enraizada na própria dinâmica de desenvolvimento adotada: o neo-extrativismo. Por um lado, o neoextrativismo significa ancorar o poder da moeda na exportação de commodities, o que vincula as decisões sobre a construção de infraestrutura e parcerias governamentais com empresas “campeãs nacionais” e multinacionais capazes de mobilizar grandes capitais. Por outro lado, neoextrativismo implica a priorização de políticas sociais orientadas somente para a assistência (linha de pobreza) e a restituição da classe trabalhadora ao espaço da concorrência, sob o paradigma do “capital humano”. Perde-se assim o horizonte emancipatório de uma integração impulsionada por uma agenda de proteção sócio-ambiental e de segurança alimentar. Embora o Mercosul contenha uma cláusula democrática (Protocolo de Ushuaia) e compromissos programáticos para reduzir as disparidades, nunca foi dada qualquer atenção real à coordenação das políticas sociais. Existe um importante espaço de formulação a ser ocupado, por exemplo, com a experiência brasileira de transferência direta de rendimentos, na direçao do Rendimento Básico Cidadão, com efeitos multiplicadores, aumentando os ganhos e fortalecendo as condições de negociação da nova classe trabalhadora (nos setores de serviços, informais, precários etc). A cláusula democrática não faz sentido sem uma fundação materialista da própria democracia. Trata-se de fazer da política social do Mercosul a base da política de estabilização econômica e não o contrário, e fazer da cidadania regional o nexo da produção e da constituição, o que envolve não só acordos monetários, fiscais e comerciais conjuntos, mas também commonfare (governança do comum, dos bens comuns). O dinheiro, além de ser uma instituição do Estado e a forma geral da mercadoria, tem uma vida própria, como o filósofo Pierre Klossowski vislumbrou em La Monnaie vivante.
Em terceiro lugar, a crise deve-se ao fracasso de projetos de desenvolvimento ainda inspirados pela industrialização do século XX. Tanto os neoliberais quanto os desenvolvimentistas tropeçam na mesma pedra ao reduzir a monetização do espaço regional a um instrumento, ou seja, um meio para alcançar os seus objetivos: seja a inserção competitiva no mercado globalizado (Mercosul das empresas), seja a superação de obstáculos e resistências ao mercado interno e à industrialização endógena (Mercosul das soberanias). O fenômeno monetário é poliédrico e, para além da sua função como unidade de conta efonte de capitalização, neste estágio da crise do capitalismo global, o dinheiro tornou-se um meio de meios. Ao longo do século passado, as lutas dos trabalhadores provocaram crises nos modos de exploração e valorização, que por sua vez levaram a uma profunda reestruturação do Estado e do mercado. Esta tríade luta-crise-estruturação, no entanto, atingiu um impasse geral no neoliberalismo, por duas razões. Primeiro, devido à extrema fragmentação das cadeias de valor e segmentação produtiva, uma vez que já não existe qualquer forma política que possa conter os antagonismos sociais e as forças produtivas dentro dela, em crise aberta que pode mesmo culminar numa guerra civil global. Após as primaveras, o sistema político está enfraquecido e obsoleto, as forças produtivas e sociais já não cabem nele, cujo subproduto — frequentemente mistificado — é uma rejeição contínua da esfera representativa, da “casta” dos profissionais da representação ou da própria política. Segundo, os tramados sociais produtivos fagocitaram a fábrica: em vez de uma “fábrica social”, a fábrica é hoje um apêndice da hegemonia do trabalho imaterial (ou biopolítico). Assim, a financeirização generalizada corresponde ao novo modo de capitalização ao ar livre, no Fora, uma vez que, na maior parte, o capital já não rege a produção: limita-se a capturar o produto, extraindo dele uma renda parasitária. A colossal expansão dos produtos financeiros corresponde à colossal produtividade biopolítica de uma sociedade que escapou da fábrica. Como consequência, a vida do dinheiro sofreu um deslocamento fundamental, deixando de ser um elemento dialético da relação entre trabalhadores e capital, para tornar-se um excedente — a ser reapropriado.
Nos seus momentos mais utópicos, a construção de uma moeda do Mercosul animou os idealistas no propósito de reforçar a democratização, a paz, o desenvolvimento e a segurança monetária e geopolítica do bloco. Mas aquela concepção permaneceu limitada: orientada pelo Estado, deslumbrada com o “ouro dos tolos” das commodities e reducionista quanto à gama de potenciais do fenômeno monetário, reduzido apenas às trocas. Tal concepção resultou não só de miopia ideológica, como também de uma situação de impasse objetivo, dada pelas contradições, contingências e turbulências que permearam, de diferentes formas, mas com interferências e contágios, cada um dos países envolvidos. A saída só pode ser a criação política, mas uma Política do Comum, a partur dos movimentos, e sem prescindir das brechas abertas nos governos.
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