Democracia

A folha branca e as mechas de cabelos onde escrevemos o futuro do mundo

Lanfranco Caminiti

As meninas iranianas são as melhores nas disciplinas cientificas (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). É um ‘detalhe’ importante para entender o que está acontecendo no Irã, em Teerã e nas universidades iranianas – que são um dos centros de protesto, como foram em 2009, durante a ‘onda verde’ e nas outras rebeliões subsequentes.

E a universidade de Tsinghua, em Pequim, onde os protestos dos últimos dias irromperam, está entre as primeiras do mundo no ranking das universidades.

Os protestos no Irã estão mobilizando não apenas a raiva das mulheres jovens, humilhadas pela “polícia moral” do regime, mas também vastos setores populares, começando pelos comerciantes dos bazares e terminando com trabalhadores precários, que são fortemente afetados pela crise econômica.

Assim como na China – se o estopim, já aceso antes dos dias do congresso, foi acionado pela política “zero covid” do regime, com medidas altamente restritivas para cidades inteiras de milhões de habitantes – concentram contra o lockdown os protestos dos trabalhadores sobre as condições de exploração. E, em geral, os protestos dos cidadãos e dos comerciantes.

Mas são os jovens – de Teerã a Pequim – que desafiam a repressão com suas próprias mãos. E na linha de frente, são os estudantes universitários – a futura nova classe dirigente. É esta ruptura vertical que é o fato mais dramático para estes regimes, cuja continuidade só pode ser baseada na repressão e uma “seleção” baseada no servilismo. Não por acaso, na Rússia, essa é o FSB, a antiga KGB, que “forja” os novos quadros dos líderes partidários e, portanto, da sociedade. Aos “mais brilhantes” sobra o enriquecimento privado, sob os olhos do regime, desde que não estejam interessados na política, movendo seu dinheiro para o exterior.

O protesto na China remonta à acampada da praça Tienanmen (em 1989) – embora não possa haver continuidade: naquela época, o protesto era ‘cercado’ e isolado, as contradições do partido foram logo superadas e o exército – que enviou tropas do interior que nem sequer falavam o mandarim dos estudantes, mas apenas seus dialetos – fez o trabalho sujo.

Da mesma maneira o protesto no Irã remonta à ‘primaverados jasmins’ – aquela extraordinária onda de revoltas no norte da África que criou tanta esperança e foi reprimida. Lá também – foram os jovens, foram os estudantes universitários que constituíam a espinha dorsal das lutas.

O regime teocrático no Irã e o regime comunista na China não se assemelham em nada, exceto no despotismo autoritário. Não há “corpos intermediários” entre o poder político e a sociedade – o choque é imediato e direto. Não é, portanto, surpreendente que em Teerã o povo grite “morte à ditadura” e em Pequim “Xi Jinping demite-se, partido comunista vai embora”. Não há mediação possível. Porque sobre a questão da “liberdade” – que é exigida tanto no Irã como na China, não há mediação possível. A liberdade é indivisível.

Nossos “liberais” se comovem pelas mulheres que cortam mechas de seus cabelos em público, mas não compreendem ou lamentam que a casa de Khomeini esteja sendo incendiada. No entanto, as duas coisas andam juntas. Cortar uma mecha de cabelo em público no Irã já é estar incendiando a casa de Khomeini.

Acredito que esta é o 1968 do leste – não é apenas por causa da “composição social” do protesto, mas também porque é uma revolta “antropológica” contra os regimes.

No Irã, como na China – não há, portanto, “líderes”, líderes da oposição, partidos que apoiem ou levantem o protesto: não há porque não existe – exceto como um apêndice do regime – uma dinâmica de contradição que tenha características políticas.

Perguntar hoje como estes protestos terminarão – se e como continuarão, se e como serão reprimidos, se e como conseguirão produzir mudanças políticas, ou seja, conseguir “ganhar ou perder”, é uma pergunta sem sentido. Assim como foi sem sentido no 1968 ocidental.

Os ‘geopolíticos’ – aqueles para quem é melhor não tocar em nada, deixar que todos cuidem de seu próprio jardim – nos dirão que os regimes que virão serão piores depois disso. Assim como nos falam da Rússia de Putin. Devemos perguntar às meninas e meninos iranianos e chineses – qual é seu ‘limiar de tolerância’ para o despotismo. Talvez eles possam avançar um pouco mais.

O que podemos fazer aqui – é apoiar estes protestos. Bem-vindo o “vento do leste”. As embaixadas do Irã e da China, antes de tudo, devem ser os lugares onde mostramos nossa solidariedade.

Uma folha branca de papel tornou-se um símbolo da luta, assim como uma mecha de cabelo. Nessas folhas brancas, podemos escrever o futuro do mundo.

 

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