Bruno de Seixas Carvalho
“A sensibilidade que eu julgava minha pertencia a um conjunto, não tinha personalidade, porque era várias pessoas; nem localização, porque estava em vários lugares. Se eu pensava no Chefe, sentia todos atrás de mim: é que eu era o Chefe e eu ia à frente. Mas eu não era o Chefe, e ia no meio dos outros…. Eu afinal onde ia? De que lado estava a noite? […] Tudo estava longe como o dia e as formas da planície. Não havia horizonte salvo não haver horizonte…Como os meus olhos não podiam ver, eu via com os ouvidos. Como o que se ouvia era sempre o som das patas dos cavalos, e isso, repetido, deixava de se ouvir, porque passava a pertencer à parte de dentro de ouvirmos, os ouvidos também não ouviam , e eu, e nós, eles, isto tinha que ouvir com a atenção, com a atenção abstrata, não manifestada através de qualquer sentido.”
Fernando Pessoa, A estrada do esquecimento
É preciso esquecer de si para enovelar-se na “multiplicidade de uma pessoa só”, diria Fernando Pessoa já em 1914, no limiar da Primeira Guerra Mundial. Isto é, ouvir com a parte de dentro de ouvir não é fugir para fora de nós, mas, ao contrário, é espalhar-se pela multidão que habita a pele do mundo. É nesse sentido que há no novo filme do coringa (2019) um elemento pujante para ser efetivamente ouvido: a gargalhada do coringa. Importante não a confundir com a tosse- riso de Arthur, o palhaço. Há a impressão de que um pouco de coringa estaria carimbado, a priori, nos supostos delírios de Arthur, como se a soma de todos os seus sintomas patológicos fosse igual ao Coringa. Mas ao “fim” do filme confirmamos o que já supúnhamos: é que não há um começo e nem um fim, tudo poderá ter sido uma conversa com a psicóloga da cadeia. Isto é, o filme inteiro se passa in media res, num entremeios infinito, na constituição irrecuperável do eu que poderia ter sido do personagem – as cenas com sua vizinha, nos dão essa pista, mas jamais saberemos até que onde aquilo aconteceu.
Por isso, tratar o par realidade-fantasia como oposição, no intuito de apontar o momento originário da clivagem que faria Arthur deixar de tossir e passa a gargalhar como coringa, seria talvez raso demais. Arthur e coringa se definem muito menos pelos seus traços individuais do que pelo processo que os constitui. Embora as misturas de fato não se confundam com as diferenças de direito, elas não param de se atravessar; gargalhada e tosse-riso e se imbricam em uma lasciva promiscuidade afetiva, mas ao fim, vemos que o riso do palhaço emula o sorriso da plateia, enquanto a gargalhada do coringa move o mundo.
Arthur é um aspirante a comediante, mas trabalha em um hospital animando crianças doentes, fantasiado de palhaço. Sua tosse-riso aparece quase como um espasmo, um sobressalto, um pulular reativo de quando fica nervoso. O riso não está acoplado aos códigos de comportamento socialmente construídos em Gotham, mas sim por uma suposta patologia. Muito por isso, Arthur ri sempre sozinho, em uma introspecção delirante. Esquálido e miserável, é constantemente ridicularizado, menosprezado, humilhado e agredido pelos seus pares.
Ao mesmo tempo, a iniquidade, violência e corrupção de Gotham constituem um certo millieux inflamado e a beira do caos: ou bem ser salva pelo Thomas Wayne candidato a prefeito – dono da empresa que paradoxalmente explora os mais pobres e aí inclui-se a própria mãe do Arthur –, ou então explodir ao sensível toque de uma fagulha catártica. O segundo processo obviamente é o que vai acontecer e tudo isso toma velocidade quando a tosse-riso de Arthur, o palhaço, devém gargalhada-do-coringa.
Depois de ser despedido e, uma vez mais, humilhado e enganado pelo seu suposto amigo, ainda vestido de palhaço, Arthur pega o metro e assiste a três empregados da empresa Wayne tripudiarem de uma mulher. Nervoso, não segura sua risada inoportuna, atraindo a atenção dos agressores que passam a ataca-lo, ao que reage, assassinando-os. Como não se sabia a identidade de Arthur, a mídia passa a divulgar a figura de um palhaço como autor do crime. Arthur ao deparar-se com a figura diabólica divulgada pelo jornal, começa a aceitar sua “coringuisse”, mas a partir dali ela já não mais se conformaria ao self de Arthur. Gotham seria tomada por uma série de protestos levados a cabo por máscaras de palhaço.
Poder-se-ia reduzir o filme inteiro a uma densa trama de introspecção psicológica. Especialmente com a questão das máscaras. Sabemos que a palavra “persona” se origina do latim per sonare, isto é, “soar através de”, justamente em alusão às máscaras utilizadas na antiguidade pelos atores para fazer ressoar sua voz de modo que fosse bem escutada pela plateia. Só que a única pessoa que consegue fazer sua voz “soar através” não usa máscara alguma: a maquiagem não reprime o rosto de Arthur, o palhaço, mas com ele produz o Coringa. Coringa transformou da máscara o seu rosto, pois somente ele tem o que nenhum outro mascarado tem, sua gargalhada, esta sim seria ouvida por todos – em especial com a morte do personagem de Niro ao fim do filme. Seria o Coringa então a persona de Arthur?
Talvez devêssemos voltar até Jung para enxergar a persona justamente como essa espécie de contrato, ou compromisso do eu que se aparenta ser para a sociedade. A persona não para de convencer a si e convencer o ego de sua individualidade, mas bastaria uma análise profunda do paciente para perceber que ela nada mais é do que “um recorte mais ou menos arbitrário e acidental da psique coletiva”[1], e que sequer apresentaria o real. Ora, a cena final com a psicóloga seria a prova cabal dessa hipótese: o filme inteiro seria uma confissão sofisticada. Pois bem: a gargalhada do coringa residira nos recônditos mais longínquos do sujeito, buscando sua verdade interior e caindo no engodo do inconsciente coletivo. Seria o caso evocar uma espécie de castração edipiana às avessas quando Arthur resolve matar sua mãe ao “perder” para Thomas Wayne, seu suposto pai, logo após descobrir as mentiras de Penny. Aí estaria, ou estará, um prato cheio para os psicanalistas. Paramos por aí?
Evidentemente que jamais teremos essa resposta, e é essa a potência do filme. Há uma fresta de possibilidade que nos induz a ver uma via alternativa e, em vez de nos aprofundarmos no sujeito, podemos pensar em subjetividades que não param de tomar consistência. O Coringa jamais é constituído por inteiro, vemos isso em sua dança dionisíaca, que se aperfeiçoa na medida em que a série de protestos toma conta de Gotham. Mas sua gargalhada não busca emular sorrisos, não busca mais se contorcer por entre as arestas molares dos códigos de humor já dados de Gotham – sedimentados no programa de auditório do personagem de De Niro. A gargalhada do Coringa acaba amalgamando as vozes da multidão que estavam presas na tosse-riso do palhaço. Mais do construir sua persona, o Coringa faz diluir seu rosto na multidão: como que por contágio, máscaras de palhaço se propagam pela cidade e a população passa a utiliza-las em protesto. As risadas são miméticas, a gargalhada sintética.
Com o adensar da revolução, que desemboca na própria morte do pai do Bruce Wayne, vemos que as máscaras são cópias de palhaços, cópias da ideia que se fez de Arthur, o palhaço. Mas que adquirem potência ao se afirmarem por si só; simulacros afirmando-se enquanto tal e tomando desprendidos e, por isso, mais potentes que a ideia de Arthur. Se o coringa é o inconsciente de Arthur não é porque ele acontece na profundidade de um sujeito indivisível, por debaixo de sua consciência; mas, ao contrário, passa ao largo dela, imiscuído na superficialidade do millieux político e social de Gotham. Em suma, o coringa não é uma construção psicológica, mas uma experiência ética, por isso inconsciente. A tosse-riso marca o palhaço, o eu indivisível que não para de se enganar e que tende ao nihilismo e à vontade de nada. A gargalhada-do-coringa é voz de muitas vozes, é um nada de vontade, que emerge justamente na medida em que o Coringa “era o Chefe e eu ia à frente. Mas eu não era o Chefe, e ia no meio dos outros…. Eu afinal onde ia?” Afinal, qual o futuro da revolução? Essa pergunta é um problema inexistente…
O que isso nos diz da vida real? Ora, o mundo inteiro gargalha desde 2011. Após um vendedor de frutas incendiar seu próprio corpo na Tunísia; Egito, Iraque, Iêmen e Síria gargalharam. Em junho de 2013 o aumento de vinte centavos nas passagens criou as condições para uma gargalhada, gargalhamos. Na França em 2018, o aumento no imposto sobre os combustíveis fez a população gargalhar em amarelo florescente. Recentemente no Chile, gargalhou-se com o preço do metrô; no Líbano a gargalhada veio das tarifas no WhatsApp; em Hong Kong, gargalhou-se da lei de extradição levada a cabo por Carrie Lam; a Colômbia gargalha com Ivan Duque e na Bolívia, a banalidade pela perpetuação no poder de Evo Morales fez também a população gargalhar, de modo que reduzir seu asilo no México a um golpe, seria reduzir o filme do Coringa a um Édipo mal resolvido.
Não é dizer que a gargalhada é boa ou ruim, mas demonstrar que ela acontece. Como Pessoa mesmo falou, “como os meus olhos não podia ver, eu via com os ouvidos” e é isso: ouviu-se a gargalhada do Coringa quando se viu Gotham inteira com máscaras de palhaço. É preciso ouvir a gargalhada e não imitar o riso, ao mesmo tempo que é preciso gargalhar, mas sem perder a voz. Do contrário, a gargalhada torna-se uma risada falsa, fake laughts, divididas entre dois polos que não param de rir um do outro e pelo mesmo motivo: um vestido de vermelho e outro de verde e amarelo. Quantos palhaços ainda vão berrar por de dentro de suas personas e emular risos sem ouvir as gargalhadas?
Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2019.
[1] JUNG, Carl G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Editora Vozes, 1971.