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A maior das violências contra o Estado é o povo organizado e forte

Por Vladimir Santafé, UniNômade, professor da UNEMAT

“Os manifestantes são multidão, uma gama de singularidades que não se submetem ao Uno soberano dos partidos ou do Estado, mas fazem da sua diferença uma força organizacional, auto-organizativa e criativa, autoprodutiva.”

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Foto: Caren Rhoden

Em seus escritos ético-políticos, Spinoza nos faz uma simples pergunta que ressoa, ou atravessa, toda a história humana: por que desejamos a servidão? Por que, diz o filósofo, nos submetemos ao soberano cegamente, enfraquecendo a nossa potência de agir. As imagens e discursos veiculados pela mídia corporativa, depois da morte do cinegrafista Santiago, atingido em 6 de fevereiro por um rojão em meio a um protesto na Central do Brasil (Rio de Janeiro), reforçam esse axioma do poder.

O discurso unitário se concentra, primeiro, ao redor da homogeneização dos manifestantes, todos identificados com a tática black bloc e, segundo, com a difamação dessa tática, articulando uma imagem espetacularizada que é então difundida no corpo social como verdade, isto é, como um fato inquestionável. A manipulação dessa verdade passa não só pelos grandes meios de comunicação, mas também pelos governos (federal, estadual e municipal), independente da posição que ocupem na correlação de forças políticas no país. Pois, tanto as forças de oposição, compostas hegemonicamente por PSDB, DEM e PPS, quanto de situação, PT, PC do B, PMDB etc tendem a adotar o discurso midiático de criminalização do ciclo de manifestações denominado jornadas de Junho.

Em nome dos megaeventos e investimentos econômicos e publicitários —, que adensam a captura da cidade pelo capital e pelo biopoder estruturante das desigualdades sociais e econômicas da paisagem urbana, — os meios de comunicação e os governos, principalmente a partir da trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, precipitam a criminalização de manifestações contrárias a seu projeto de poder. A resposta governamental é a elaboração da Lei Antiterrorista, visivelmente marcada pelo mapeamento das táticas dos movimentos sociais em luta e sua consequente disciplinarização ou esfacelamento, moldando-os segundo a figura do principal inimigo do império global: o terrorista. Uma pequena política do medo para uma grande política da guerra, é assim que têm agido a grande imprensa brasileira e os governos de centro-esquerda e direita no país.

Mas a guerra começou muito antes, uma guerra silenciosa, apesar de alardeada pelos programas televisivos que exploram a violência contra os pobres, e naturalizada pelo senso comum, uma guerra de trincheira contra moradores de favela e das periferias, legitimando o apartheid social e racial que molda as feições do país. A mídia corporativa e os governos estimulam a ideia de uma diferença entre si, como se opusessem no espectro político-ideológico, mas o que há de fato é um consenso sólido cimentado pelas oportunidades de lucro que os megaeventos proporcionarão a ambas as partes, sejam eles lucros econômicos, políticos ou eleitorais. Também podemos identificar que ambas as partes cumprem o paradoxo da defesa da democracia e da repressão estatal, simultaneamente, através de suas polícias. Isto é, em nome da democracia, controla-se a população e expropria-se seu trabalho, seus desejos e espaços de articulação e comunicação política, sustentando as instituições representativas da democracia atual, no caso do Brasil, atravessadas por um poder oligárquico neoescravocrata historicamente antirrepublicano e antidemocrática. Mais especificamente no Rio de Janeiro, um poder também aliado às máfias milicianas que dominam diversas zonas periféricas da região metropolitana.

Voltando a Spinoza, o filósofo nos diz que a única maneira de fugir à servidão e fazer com que nosso corpo e nosso espírito sejam atravessados por outros corpos, formando ideias adequadas que aumentem a nossa potência de agir, é pela via da imanência democrática, mas essa imanência não está dada, ela deve ser conquistada, ou seja, a comunhão política dos vários corpos que compõem o corpo social e político de uma sociedade não deve estar fora da conexão entre esses corpos, ela não pode se dar através de modelos transcendentes. Mas o que é um modelo transcendente? Em poucas palavras, um modelo que determina a realidade de forma ideal, adequando a materialidade de forma impositiva a princípios e ideais a-históricos, isto é, que não levam em consideração a dinâmica e a correlação de forças atuais, seu devir e suas brechas. Do ponto de vista do poder, é um modelo que parte de cima para baixo, ou seja, um conjunto de ideias e práticas imposto através das instituições sociais e políticas que organizam e representam a sociedade atual, com a grande mídia como motor das sínteses discursivas que articulam esse poder. Por exemplo, o enunciado “todos os manifestantes são vândalos”, ou o discurso governista que “os manifestantes são infiltrados pela oposição para desestabilizar o governo”.

A democracia para o filósofo é o regime político em que a multiplicidade de corpos se unifica num agir comum, aumentando suas capacidades intelectuais e afetivas. Os movimentos operários, em seu gérmen, sempre disputaram o quantum democrático do que pode uma sociedade, sejam eles anarquistas ou comunistas, a democracia de que falam, no entanto, é direta e horizontal. Mas o que vemos é um recuo desse agir democrático, uma reafirmação da figura do Leviatã, ou do Uno soberano, que quando confrontado pela multidão de vozes e reivindicações que expressam as manifestações, articula seus dispositivos de poder, criminalizando e moldando a revolta, delimitando a defesa da democracia segundo a velha separação entre estado de natureza (a horda de manifestantes encapuzados que depredam a cidade e tiranizam o espaço público) e estado civil (as instituições democráticas que garantem a liberdade dos cidadãos através da força policial), ou seja, para garantir a paz é preciso reprimir as muitas vozes descontentes que compõem a multidão.

No entanto, o que os manifestantes afirmam nas ruas é um querer mais, uma superação do sistema representativo, o controle dos investimentos sociais e econômicos, a luta por um outro modelo de cidade, inclusiva e vital, movida pela multiplicidade que a faz funcionar e inventar-se todos os dias. Os manifestantes, em sua maioria, mobilizam-se através de bases materiais claras como a mobilidade urbana, a luta pela moradia e pela tarifa zero nos transportes públicos, a luta por serviços públicos tais como escolas e hospitais acessíveis a todos, a reforma da polícia, etc., isto é agir em comum, conquistar a democracia e a imanência. Os manifestantes são multidão, uma gama de singularidades que não se submetem ao Uno soberano dos partidos ou do Estado, mas fazem da sua diferença uma força organizacional, auto-organizativa e criativa, autoprodutiva.

Para o poder, o favelado é sempre um potencial criminoso, os dispositivos agem de maneira a identificá-lo, inclusive biologicamente, como um perigo à ordem, por isso ele deve ser controlado e gerido de modo a não prejudicar os negócios e o modo de vida das elites econômicas. Quando o favelado protesta, é quase certo que esse protesto será identificado com o tráfico, isto é, os moradores da favela não têm iniciativa para lutar contra as inúmeras injustiças que sofrem cotidianamente (a falta de serviços básicos, a violência policial, etc.), quando lutam, sempre há uma força criminosa por trás, segundo o biopoder. Esse enunciado constantemente repetido pela grande mídia e reforçado pela política de segurança dos governos agora foi compartilhado com os manifestantes das jornadas de junho. E nós, manifestantes, ao lutar contra a criminalização do movimento e a tentativa de desmobilização dos atos, devemos gritar para que todos ouçam que “somos todos favelados”! É claro que a realidade da favela não atravessa o total dos manifestantes, mas na luta contra o poder, devemos devir-favela, isto é, nos tornarmos homens e mulheres contra o intolerável, contra um Estado que assassina milhares de pessoas por ano para manter as oligarquias políticas e econômicas intactas. E os megaeventos aprofundam essa desigualdade secular, pois por mais que haja investimentos, esses não são distribuídos de maneira igualitária, nem discutidos democraticamente com a população, mesmo e ainda com a inclusão social e econômica promovida pelos governos petistas, dado que aumenta e mobiliza o grau de mobilização que vemos nas ruas, pois vivemos numa democracia parcial, para os ricos, com dispositivos que impedem a real participação do povo nas decisões políticas, e uma ditadura midiática que antecipa e reforça dos discursos de captura e modulação do poder, por isso a multidão quer mais. Isso nos remete ao caso Caio, o jovem negro e pobre que, acidentalmente, matou o cinegrafista, e que a grande mídia e o delegado responsável pelo caso rapidamente caracterizou como homicídio doloso, com intenção de matar. O que eles não informam é que a maioria dos acidentes, fatais ou não, que ocorreram nas manifestações, foram provocados pela violência policial, e legitimados pelos governos municipal, estadual e federal, independente do partido ao qual pertencem. Ou seja, os agentes estatais incitam a violência e em nome dela criminalizam o movimento.

Os grupos políticos envolvidos nas manifestações, no entanto, não devem se igualar à violência do Estado, nem às suas hierarquias e dinâmicas institucionais, autodefesa não pode ser confundida com ataques isolados aos símbolos do poder, pois a maior das violências contra o Estado é o povo organizado e forte. A luta contra as forças de repressão não deve ser simétrica ou dialética às suas práticas e discursos, mas ao contrário, é preciso criar suas linhas de fuga, inventando novas instituições imanentes às vozes que protestam, um poder constituinte que supere a servidão ao qual estamos submetidos, aumentando a nossa potência de agir. Apoiados em organizações abertas e mobilizadas por bases materiais de luta (o direito à cidade, alternativas de desenvolvimento, a luta pela Tarifa Zero, etc.), a multidão devem conservar-se no poder constituinte das ruas e libertar a democracia da estrutura oligárquica neoescravocrata que nos colmata e oprime a séculos. O jogo está dado, ou criamos nossas linhas de fuga ou caímos na zona de conforto que separa a vanguarda do seu inverso, as autoridades estatais, reproduzindo uma dialética que determina as táticas dos movimentos de resistência segundo a ação da repressão, com a formação ulterior do novo soberano – o partido de vanguarda e suas pequenas hierarquias e verdades, princípios e práticas imersos no fetichismo ideológico, onde a identidade do grupo é mantida segundo valores e projetos ideais, e o outro é sempre o inimigo a combater e não um possível aliado na construção de um novo mundo, de possíveis atravessados pela multiplicidade que constitui a própria vida.

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