Por Bruno Cava, 15/02/23
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O que você prefere? Cem mil em dinheiro ou cem mil de crédito para você espalhados em empréstimos com seus amigos e parentes? A maioria esmagadora vai preferir ter o dinheiro agora, mesmo que os 100 mil emprestados virão a ser mais que isso quando do pagamento, por causa dos juros.
Uma explicação para o fenômeno se encontra na teoria neoclássica: há um valor adicional em consumir hoje, em vez de amanhã. Em regra, o consumo presente vale intrinsecamente mais do que o consumo futuro, do mesmo montante de bens ou serviços. Se o valor dos juros for menor do que esse valor dado pela distância temporal, vou preferir o consumo agora. Tudo o mais constante, é melhor ter um pássaro na mão do que dois voando. Nos modelos neoclássicos, funciona como numa equação diferencial relativamente simples, que correlaciona utilidade intertemporal e valor esperado do juro.
Outra explicação está em Keynes: prefiro a moeda a portar títulos de crédito porque a moeda é imediatamente acessível. O caixa do mercado da esquina não vai aceitar uma nota promissória tomada de meu amigo. Ademais, com o dinheiro na mão, posso aplicá-lo de outros modos, mantenho meu leque aberto.
Além disso, quem garante que meus amigos vão me pagar na data convencionada? Há um componente de incerteza que pode comprometer a solvabilidade do devedor. O fato de serem meus amigos e parentes inclusive agrava o risco da insolvêcia, pois o endividado tende a pagar primeiro o agiota que pode mandar quebrar as pernas dele ou o banco que pode ficar com o carro financiado.
O conselho de nunca emprestar aos amigos tem mais a ver com pragmatismo do que com alguma preocupação cândida em não contaminar a amizade.
Noutras palavras, os títulos de crédito dependem de condições específicas para serem trocados, são nominais e mais rígidos, envolvem regras, formalidades, endossos, avalizadores, gestão de risco e capacidade de execução da dívida.
Já o dinheiro vivo flui em estado de transiência contínua, não guarda memória de suas transações pregressas, “o dinheiro não tem cheiro”, como se dizia no império romano. É a famosa preferência pela liquidez dos keynesianos. Também podemos chamá-la, coloquialmente, de preço do dinheiro.
É esquisito que o dinheiro tenha um preço, mas é por isso que existe a taxa básica de juro, uma ferramenta de política monetária para interferir no mercado de crédito.
Se o BC aumenta a taxa, o dinheiro líquido fica mais caro, e os bancos vão ser mais comedidos em emprestá-lo, porque vão preferir retê-lo em uma série de circunstâncias e parâmetros que, de outra forma, teriam emprestado. Se o BC reduz a taxa, acontece a tendência inversa, o dinheiro fica mais barato, e o mercado bancário deve responder expandindo o crédito. Se a taxa for a zero, o preço do dinheiro se equaliza com o valor de face, isto é, a moeda se equipara ao título público de modo que, na prática, se torna indiferente aos bancos portar um ou outro.
Ora, por que a taxa básica de juro não é sempre zero? Porque o dinheiro é sujeito à inflação, uma variável endógena da economia, que ninguém determina. A existência da inflação é a prova que o dinheiro é um processo social não-estatal. O estado captura a moeda, mas não a cria. O conceito de “Soberania Monetária” deve ser bastante relativizado, assim como a soberania absoluta do direito divino é uma ficção, uma hipótese teórica que mesmo Hobbes ou Bodin admitiam não explicar o processo real de formação do poder. Não existe poder sem consentimento dos governados, assim como não existe moeda sem inflação. Politizar a moeda para além do estado é politizar, precisamente, a inflação.
A ideia de um Banco Central dissociado do sistema bancário comercial e do poder central da Coroa nasceu de lutas no âmbito das revoluções inglesas do Seiscentos. É a resultante complexa e ambivalente da era de tumultos de superação do Antigo Regime e não deixa de ser a expressão monetária da divisão dos poderes e dos mecanismos de pesos e contrapesos.
Além da genealogia do BC entrecortada por lutas que mereceria melhor reconstrução, existe uma razão material e materialista na pertinência do instrumento da taxa básica de juros. Ela corresponde à necessidade de reagir à inflação, maior testemunha do caráter endógeno (socializado) da moeda moderna. A resposta institucional se dá em múltiplas esferas: política, social, fiscal, tributária, industrial, mas também monetária. O viés consiste em achar que, num estado de direito democrático com divisão de poderes, as diversas esferas se concatenem por um plano superior definido pelo soberano, e não por meio de divergências convergentes, de “checks and balances” transversais, entre os poderes, e entre eles e a sociedade.
Uma narrativa ainda em voga diz que o governo Dilma desmoronou na década passada porque teria peitado os especuladores e capitalistas do sistema financeiro. O fracasso daquela gestão teria sido cutucar onças com vara curta, isto é, errou porque não tinha correlação de força e foi politicamente inábil, mas a intenção e o objetivo estratégicos teriam sido corretos. Logo, deveriam ser retomados dada uma conjuntura mais propícia, para a restauração dos rumos. Afinal, “O Brasil tem a maior taxa de juros do mundo” etc.
Agora, Lula repetiria o mesmo gesto de desafio à doxa ao contestar a taxa básica de juros determinada pela autoridade monetária. Essa é uma narrativa desenhada para bate-bumbos pelas redes e militâncias varejistas. Ela contém uma aparência de verdade decorrente muito mais das linhas folgadas da macronarrativa em que se insere (Neoliberalismo enquanto rentismo) que de consistência, quanto aos conceitos e usos, e até mesmo de perspicácia política, quanto à adequação de meios e fins. Vou explicar, aglutinando um argumento que está espalhado em dois livros que escrevemos Giuseppe Cocco e eu, ‘A vida da moeda’ (2020) e ‘Enigma do disforme’ (2018).
O êxito do governo Lula até 2010 não foi por causa do boom das commodities, ou melhor, há uma supervalorização desse fator em detrimento do fator microeconômico. O êxito se deu pelos retornos crescentes conferidos pelos acoplamentos de inclusão social, distribuição de renda e potência produtiva do trabalho flexível. A bancarização da população acelerou os fluxos de moeda, fermentou circuitos produtivos sociais que se encontravam bloqueados pela miséria e privação de meios, viabilizando assim a “contribuição milionária dos erros”.
Não significou nem a ascensão do lado brilhante e criativo do pobre brasileiro (Marcelo Neri), nem a mera formação de um subproletariado desorganizado, inorgânico e supra-ideológico (André Singer), nem pode ser reduzido à nova classe trabalhadora precarizada e endividada, “assujeitados monetários” (leitores do Kurz). Significou, às costas do lulismo oficial, uma reapropriação massiva das ferramentas, redes e potencialidades, gradualmente deslocando os antagonismos, acirrando a disputa por dentro do capitalismo financeiro. Junho de 2013 não é outra coisa senão a luta de classe (the making of) dentro das relações sociais do neoliberalismo, negando as teses mais catastrofistas de que no neoliberalismo não existiria mais classe.
Uma das ferramentas mais poderosas foi a democratização da moeda: em parte, instituição (Plano Real + Bolsa Família e mais), em parte, processo social endógeno, emergência (classe sem nome ou lulismo selvagem). Dilma quando encampou a agenda neodesenvolvimentista da esquerda do PT foi na contramão dos fundamentos reais do êxito do governo Lula, associados à socialização da renda, do consumo e do crédito, num conceito, da moeda viva. Essa tendência já vinha dentro do governo Lula, personificada na própria Mãe do PAC e do emprego formal, como uma tensão interna que, de 2008 em diante, foi se tornando hegemônica e colmatando as brechas.
Em suma, Dilma, nome pelo que respondem todos os neodesenvolvimentistas e neokeynesianos-estadocêntricos, matou a moeda. Ela não tinha correlação de força porque o Estado não é uma forma divina a ser oposta aos mercados, como a moeda estatal sem a imanência da multidão não é nada.
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