Bruno Cava
Cá entre nós, seria legal que a hipótese da simulação, que esta realidade não passasse de uma espécie de videogame programado por uma inteligência superior (no futuro ou extraterrestre), fosse procedente, tanto quanto eu gostaria que houvesse reencarnação, que já tivéssemos vivido outras vidas antes desta e ainda tivessem outras por vir. Mais vidas? sim, por favor!
Até hoje, contudo, não apareceu indício algum disso.
O filósofo Slavoj Zizek tem uma teoria de estimação sobre a hipótese de simulação: a da Divindade Preguiçosa. Como dá muito trabalho renderizar o universo, com seus sextilhões de sistemas solares, os programadores embutiram nas leis da natureza algumas restrições intrespassáveis à curiosidade humana.
A primeira restrição é macro: a impossibilidade de ultrapassar a velocidade da luz. De modo que não poderemos ir lá xeretar, em detalhes, o que está acontecendo em cada um dos sóis, em cada um dos planetas, com suas biologias maravilhosas e únicas.
Se, com velocidades superluminais, pudéssemos visitar rapidamente outros mundos, seria necessária capacidade de processamento computacional e dispêndio de energia tamanhos que, talvez, os simuladores não disponham.
Na outra ponta, a restrição é micro: o princípio da incerteza da mecânica quântica. De maneira que não nos é permitido bisbilhotar, com precisão, aquém de certo limite inferior, acerca do que acontece no nível subatômico, digamos, abaixo dos quarks. A partir de determinada escala microscópica, a realidade fica nebulosa, indiscernível, em lógica ‘fuzzy’.
Nessa hipótese, a inteligência superior teria programado a nossa realidade com economia, de forma que não precisasse renderizar tudo, apenas aquilo que podemos alcançar e ver.
É como num game imersivo em que a memória computacional é empregada para gerar o entorno do personagem, o que ele está vendo e com o que está interagindo, mas não todo o universo do jogo ao mesmo tempo.
O mais interessante, contudo, não é a analogia zizekiana ao videogame. É o fato que Zizek se sinta atraído à hipótese da simulação pela própria arquitetônica de sua filosofia.
A partir de um retorno criativo a Hegel e Lacan, Zizek formulou uma ontologia bugada, ou seja, com uma lacuna ou lapso inafastáveis. É como se, para Zizek, a ‘realidade real’ (o Real) já fosse uma simulação, porém, uma inerentemente deslocada, paraláctica, com pau na máquina.
Um exemplo zizekiano é o dinheiro, o “objeto sublime” por excelência. Onde está o valor? O valor do dinheiro consistiria no equivalente em ouro ou lastro de economia real; ou será que o Real do valor não está antes no aspecto lacunar dele, algo que no fundo não é nada substantivo? Dinheiro das bolsas de valor e das finanças. Não tem nada substancial por trás do dinheiro hoje, criação ex nihilo, sem lastro. Nem por isso menos real, ou melhor, é mais.
Em certo sentido, a realidade tal como a experimentamos, para Zizek, já é ela própria uma simulação, ou ao menos pode ser interrogada como uma, à maneira da teologia negativa. À simulação enquanto realidade primeira somente podemos aceder por meio de seus glitches, lapsos, das falhas de programação. Assim como Freud acedeu ao inconsciente pela via do sintoma — ou Foucault, à razão ocidental através da história da loucura.
O programador abscôndito, o que quer que seja ele, não se exprime na plenitude do código da matriz (como o Deus spinozano de Einstein), este não nos pode preencher de sentido nem nos satisfazer o desejo; mas, justamente, o programa se revela na nossa inexorável distância em relação ao sentido e ao desejo.
Então ficamos assim, com Zizek, a realidade é uma simulação, mas nos é impossível coincidir com ela.