Democracia Destaques

L’Etat c’est moi

Lanfranco Caminiti

Tradução: Felipe Fortes

Isto que acontece na América não é a revolta de Watts — aqueles terríveis seis dias de 1965, com trinta mortos, mil feridos, quatro mil presos; tampouco é a revolta de Los Angeles em 1992 após o espancamento de Rodney King, com seus sessenta mortos, dois mil feridos, doze mil prisões. Não se trata de uma das revoltas que pontuam a história recente dos Estados Unidos. Assim como, olhando para nossa Europa, não é uma das revoltas francesas após o assassinato de um jovem da banlieue.

Isto é uma guerra desencadeada a frio pela torção autoritária de Trump.

O recurso ao Insurrection Act não é, certamente, uma novidade — Eisenhower e Kennedy o invocaram para impor aos estados do sul (Arkansas, Mississippi, Alabama) a dessegregação racial. Enviaram a Guarda Nacional contra governadores e polícias que titubeavam e se banhavam no racismo e em seus sistemas de poder, para garantir a entrada de estudantes negros nos liceus e universidades. Ou seja, Eisenhower e Kennedy fizeram um uso “progressista” dessa ferramenta. O escândalo, portanto, não está no uso centralizado do poder contra o poder periférico e descentralizado.

O escândalo está no fato de que aqui se realiza exatamente o oposto — não se trata de um processo “inclusivo”, que foi o núcleo, duro e violento mas real, do nation building americano, e sim de um processo “exclusivo”. Expulsivo. Aqui a história não se repete como farsa, mas novamente como tragédia. Trump quer embranquecer a América. Como um novo colono, como um pai peregrino que expulsava os povos originários de seus territórios, Trump quer expulsar os “não brancos” — os alienígenas, os invasores — ou seja, uma boa parte da população da Califórnia, onde, para se ter uma ideia, a primeira língua é o espanhol, ou melhor, o espanglês. A “nova fronteira” de Kennedy (“a fronteira das esperanças não realizadas e dos sonhos”) transformou-se em construção de muros, postos de controle, guetos.

É aí que está a diferença.

O ponto é que há uma fratura vertical, e não apenas horizontal, dentro da sociedade — uma fratura entre as instituições. A torção autoritária de Trump ataca as leis, as normas, os juízes, os governadores, os prefeitos. Isso significa: não há apenas “insurreição” (e menos ainda deve haver “insurrecionalismo”), mas um processo constituinte, uma democracia nascente, diria Cavarero, na qual emergem novas formas democráticas, a defesa da constituição, a vitalidade de uma nova seiva de lutas. O fato de que até o governador da Califórnia ou a prefeita de Los Angeles estejam contra Trump — esse é o novo conteúdo das coisas.

Aqui está a brutalidade — que foi a chave do sucesso de Trump: o poder nu e cru. Absoluto. Sem checks and balances. O 6 de janeiro no Capitólio foi “a marcha sobre Roma”, agora Trump tem o poder. Aquele meme do “no kings” com Trump retratado com uma coroa me parece certeiro — pois remete a certo espírito tipicamente americano (aquele que impressionou Tocqueville) do tea party, da milícia civil, do qual a direita se apropriou.

O fato de serem os imigrantes a querer encarnar a América é a qualidade singular dessas revoltas — aqui não há Jimi Hendrix distorcendo o hino americano, não se trata de bandeiras estreladas queimadas ou de cabeça para baixo. Eles escrevem: a América foi feita grande pelos imigrantes. Em uma foto em San Francisco, uma pequenina centro-americana segura com orgulho a bandeira americana diante dos brutamontes fardados. É verdade, tremulam bandeiras nicaraguenses e mexicanas, sobretudo. Mas eles querem estar ali, na cidade sobre a colina, na terra do leite e do mel.

Trump está brutalizando a América. O mundo (vide Gaza, vide Ucrânia) lhe importa até certo ponto. E, de todo modo, para governar de fato o mundo, ele precisa esmagar sob o calcanhar de ferro a Califórnia, a América — ignorando leis, governadores, juízes, prefeitos.

L’état c’est moi. É contra esse absolutismo (traço comum a todos os poderes de hoje, do autoritarismo ao fundamentalismo, em todas as latitudes) que se ergue o sentido da revolta — e que ela passe pela imigração e pela América — o país “símbolo” da emigração — é algo inevitável. Mas, por isso mesmo, esta não é uma simples insurreição: é uma revolta em nome da Declaração de 1776: todo homem nasce igual, todos têm direitos iguais, entre os quais o direito à busca da felicidade. Não se trata, portanto, da fúria destrutiva pós-Rodney King. Aqui há uma democracia insurgente, ou que resiste à brutalidade do absolutismo trumpista. Nesse sentido, é guerra civil — porque ali estão americanos contra americanos, uma guerra fratricida. E, como toda guerra fratricida, o inimigo está ao lado. O inimigo somos também nós.

Mas esta, paradoxalmente, é uma insurreição “constitucional”.
Uma insurreição da democracia, pela democracia.

No kings.

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