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A ocupação da política e o objeto a

Por Mariana Mayerhoffer, do Laço Analítico Escola de Psicanálise – Subsede Rio de Janeiro, e UniNômade

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Como o sujeito ocupa a política, como se dão efeitos de sujeito do inconsciente que são passíveis de serem verificados no fazer político? Por político entendo aqui desde o tradicional ato de voto até todas as possibilidades de política nas quais o sujeito pode engajar-se, macro ou micropoliticamente: eleições governamentais, política do condomínio, política de classe, política de bairro, etc. Pode-se ocupar-se da política ou ocupar a política, do que o termo ocupação tem uma visada específica nos movimentos sociais, tomada do espaço e/ou gestão do objeto de ocupação. A ocupação da política nos remete à noção de ocupação desde a psicanálise, que pensarei aqui como lugar que o sujeito ocupa na política pela sustentação do desejo causado pelo objeto a.

Faço um recorte com uma experiência política que acompanhei, a da ocupação das escolas pelos estudantes secundaristas, ocorrida entre março e maio de 2016 na cidade e no estado do Rio de Janeiro. As ocupações estudantis ocorreram em cerca de uma centena de escolas em todo o estado, tendo sido uma tomada do espaço e da gestão de ensino pelos próprios alunos durante meses. Reivindicava-se uma série de mudanças na política educacional, notadamente a eleição direta para a diretoria das escolas, o fim do SAERJ – Sistema de Avaliação do Estado do Rio de Janeiro (avaliação meritocrática de desempenho escolar), redução do número máximo de alunos por turma, reabertura de salas de laboratório e biblioteca, criação e/ou participação efetiva de grêmios nas decisões sobre a comunidade escolar, entre outros. As ocupações se fizeram ato num contexto de mais uma das repetidas greves de professores e como apoio ao pleito de mudanças nas péssimas condições da educação pública. O que se deu foi surpreendente: comissões de organização das mais diversas tarefas exigidas, desde a preparação da alimentação e acomodação para os ocupantes no dia a dia, passando pela comunicação (com a comunidade do entorno, com as mídias, apoiadores, etc) e segurança da ocupação até um planejamento diário de aulas, com conteúdos desde as tradicionais disciplinas de matemática ou português até formação política para debate do funcionamento da sociedade em aspectos como os movimentos sociais (de gênero, negro, de classe ou bairro, etc) ou os governos da cidade ao país.

Assembleias diárias delineavam uma forma de ocupar a política que se pretendia horizontal, não mais pautada pela verticalidade de líderes dentro das ocupações, menos ainda por entidades que os representavam tradicionalmente (União Brasileira dos Estudantes e afins). A convivência e as deliberações eram construídas pelo desejo de que houvesse lugar para a fala de todos, para a diferença, atravessados pelo que leio como uma barra ao Outro: as falas eram permeadas pela direção aplicada uns aos outros de não totalizar o dito. Fala essa que inclui o registro do não todo aludido por Lacan (2003b, p. 475), na “valorização da asfera do nãotodo: é isso que sustenta o impossível do universo”, ou seja o que encontra o real, na mesma medida em que não era sem lei que as coisas se davam, havia um reconhecimento do lugar de cada fala como lugar de autorização da experiência. Por exemplo, se alguém era de uma determinada comissão e tinha vivido e “sabido” coisas que eram necessárias serem transmitidas, um espaço lhe era resguardado. Esse saber era então destotalizado, um saber autorizado pela experiência, vetorizado num sentido contrário de um saber totalizante. Isso os levava a fazer o saber ocupar o lugar comumente delegado ao líder pré encarnado, e portanto a desidealizar o lugar da liderança fazendo-o atravessado pela castração. Esse lugar era ocupado, desocupado e reocupado, não havendo quem “soubesse” o que seria melhor para a ocupação sem se pautar na palavra dos pares.

Houve uma intensa negociação das ocupações com a Secretaria de Educação, mantida pela sustentação de uma rede entre as escolas ocupadas, culminando na ocupação da própria Secretaria de Educação, que junto à positiva repercussão da ocupação das escolas junto à sociedade, teve como efeito o atendimento de uma das demandas do movimento, a queda do secretário responsável pela pasta. Outras reivindicações foram atendidas posteriormente, como o fim do SAERJ, a reabertura de bibliotecas e laboratórios, a eleição direta para direção da escola, dentre outras.

A gestão tomada em suas mãos, pelos estudantes, mostrou-nos uma possibilidade de fazer furo na totalizante representatividade, com efeitos de mudança discursiva. Hoje, as escolas que foram ocupadas sustentam os efeitos de ato que as ocupações promoveram. Os alunos ocupantes dizem que o que lhes é imposto não é mais aceito sem participação e questionamento. O que gerou um movimento, ato político, tão potente? O que é a causa de tal ato? É possível cerni-la? A causa não é racionalizada, como Lacan (1998b, p.34) diz, diferente do que se lê da lei  da função limitada do desejo que é determinante se mostrando com sua racionalidade na cadeia de significantes do inconsciente. Lacan (1998b, p.27) diz com isso que o inconsciente freudiano “se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre uma claudicação”. O que fez afetar a causa nesses estudantes?

Teria sido um trauma, um impossível ao qual tivessem sido/ tivessem se jogado? O que foi da ordem desse trauma teria assim se apresentado no abismo/furo entre o que pediam os estudantes e o que lhe davam suas “representações”, seus representantes? O real, é ele que causa no inconsciente, teria feito tal efeito o enfrentamento com uma repetição, a das greves com a falta das aulas e de sua qualidade, repetição não mais incólume? Podemos pensar o quanto esses estudantes repetiam a frase NINGUÉM NOS REPRESENTA, endereçada a suas entidades juvenis apropriadas por cartilhas partidárias, aos próprios partidos e aos governos que lhes surrupiaram o direito à educação, mas também à própria sociedade enquanto partícipe desse processo. Esse slogan sendo herança das manifestações de junho de 2013 no país que pretendiam depor do poder exatamente a atual governamentalidade, como diz Foucault (2016) das alianças geralmente inquestionadas que visam a manutenção do poder. Do que levantamos o raciocínio sobre os estudantes estarem, pelo próprio início de percurso de vida adulta, menos fixados, atachados, pelos significantes mestres que o social lhes impõe. A hegemonia da política representativa tal qual nos é apresentada em nossa época é uma ficção, como toda construção simbólica, que os estudantes demonstraram poder ser destituída e reconstituída com o paradigma da gestão encarnada/ocupada/subjetivada. Lacan (2003b, p. 480) fala que recorrer ao nãotodo é produzir uma outra fixão do real, “do impossível que fixa pela estrutura da linguagem”. Talvez o fato de que os alunos estivessem mais abertos às contingências do trauma nesse momento da vida tenha facilitado o ato, num contexto de eclosão de um acontecimento, a insurreição de junho de 2013, na qual eram adolescentes, alguns crianças.  A repetição do aumento das passagens de ônibus, somada ao constante massacre que os trabalhadores brasileiros sofrem para ir e vir de um trabalho que lhes explora quase toda energia – com o objetivo mesmo de lhes expropriar tempo e energia para reivindicar – funcionaram naquele momento como estopim/trauma das maiores manifestações de rua da história do país, ato ressoado nos mais jovens. Eles querem, toda uma nova geração quer, não mais apenas se fazer representar, mas ocupar a política de forma que chamo de implicada, há uma implicação subjetiva nessa encarnação da ocupação, eles querem se representar – no que obviamente isso é possível/impossível, sendo o sujeito representado pelo significante e somente para um outro significante.

O que nos leva a pensar se o atual esgarçamento do modelo de representatividade política e sua destituição serão, de uma forma mais ampla, pela incidência da hiância do objeto a, levados à construção de uma outra representação. Lacan (1998b, p. 207) traduz o Vorstellungsrepräsentaz freudiano (FREUD, 2010, p.86) como lugar tenente da representação, representante da representação – lugar que pelo intervalo que intervém na relação da alienação ao sentido e posteriormente afanísica de S2 a S1 faz cair o objeto a que causa a função do sujeito na separação de um significante que vem a lhe constituir. Nas palavras de Freud, há a produção de uma fixação, com a qual no recalque fundamental a Vorstellungsrepräsentanz persiste no recalque propriamente dito de seus derivados psíquicos. Essa fixação opera pela ligação da pulsão à função representação, isto é, pela Besetzung[2] que Freud (2010, p.89) atribui como investimento, traduzido também por ocupação e catexia, da libido na Vorstellungsrepräsentaz – e subsequentemente em seus derivados representação, inaugurando a cadeia significante, a ficção e a possibilidade de fixão aludida.

Para Freud (2010, p. 89-90), é a Besetzung, “a medida de ativação”, que decide no caso de derivados não recalcados do inconsciente, o destino da ideia, isto é, se ela virá a advir como ato. É nessa mesma elaboração que Freud (2010, p. 89) diz que no fato do investimento do inconsciente, para a satisfação, depender da intensidade atingida, institui-se nela a barra de maneira “altamente individual”, cada derivado do inconsciente podendo ter “seu destino particular”, mas no qual “um pouco mais ou um pouco menos de deformação altera completamente o resultado”, do que conclui que aí “se compreende que os objetos favoritos dos homens, seus ideais, provenham das mesmas percepções e vivências que os mais execrados por eles”, se diferenciando originalmente “uns dos outros apenas por mudanças mínimas”. A libido catexizada perde então a mobilidade, ou como diz Lacan (1998b, p. 81):

O privilégio do sujeito parece estabelecer-se aqui por essa relação reflexiva bipolar que faz com que, uma vez que percebo, minhas representações me pertencem. É por isso que o mundo é atingido por uma presunção de idealização, por uma suposição de só me entregar minhas próprias representações. (…) Como negar que nada do mundo me aparece senão em minhas representações?

Os estudantes lutaram e operaram uma certa descatexização, um desinvestimento do lugar do derivado não recalcado do representante deposto de seu corrente lugar catexizado por um modo fechado de gestão em sua hegemonia.

Nova catexia seria possível? Esse novo lugar no entanto se traria apenas por esse vazio que é próprio do atravessamento da incidência do objeto a como causa com o mais de gozar com o qual o sujeito se constrói, nessa hiância, pela barra que o Outro lhe incute situando-se também consequentemente pelo objeto a que articula o desejo desse Outro lugar, como diz Lacan (2003a, p.283). O corpo aí jogado nisso é o que vale, é o fazer político que passe pela ocupação do lugar de fazer político com o corpo, referenciada ao desejo, à palavra e às consequências desse fazer e dos atos[3] que podem dela advir. Chama-se isso de autogestão nos movimentos sociais, embora em seu fazer político movimentos como os das ocupações das escolas do Rio revelem-se bastante advertidos da inexistência de qualquer referência auto – o cotidiano das ocupações, a formação de rede e o valor dado à palavra dos pares e aos apoios recebidos o demonstram cabalmente, assim como suas consequências. A referência da ocupação, nada de auto, parecia originar-se muito mais do nada, no sentido da hiância, do furo e do trauma expostos por junho de 2013. Lacan (1985, p. 171) diz: “um desejo sem outra substância que não a que se garante pelos próprios nós”, desejo não suportado em qualquer ser, mas garantido pela enodação feita pelo sinthoma. Algo novo interveio com o ato das ocupações de escola, algo de um novo estilo de fazer política, uma nova representatividade.  “Não é isso que quer dizer que, no desejo de todo pedido, não há senão a referência ao objeto a?”, pergunta Lacan, “objeto que viria satisfazer o gozo”, a satisfação “onde se inscreveria uma relação que seria a relação plena, relação sexual, inscritível de um como que resta irredutivelmente Outro”, no qual o objeto a intervém. Lacan (1985, p. 171) diz aí que o parceiro do sujeito não é o Outro, mas o que o substitui “na forma da causa do desejo”.

Lacan (1985, p. 87), no Seminário 20, retoma a questão colocada em O tempo lógico (LACAN, 1998a, p.212), sobre a coletividade ser definida pela reciprocidade intersubjetiva que institui o coletivo como sujeito do individual, retomando Psicologia das Massas (FREUD, 2011). Lacan nomeia sua construção de então, passando pelo Um a mais como Um da inacessibilidade ao dois do Seminário 19 (2012), que possibilita o Um que institui a série significante e chega ao Um mais a como impossibilidade do Um ao Outro do Seminário 20, que coloca que a redução do dois (e o três, o quatro…) da relação coletiva no Um mais a. Outros dois, ou três, enfim, reduzidos à ocupação do lugar de objeto a ao olhar do sujeito, isto quer dizer funcionando como o que vai recolocar o furo nos laços coletivos, incutindo efeitos de hiância que garantam o lugar de causa de desejo e mais de gozar, o a como incomensurável, suportado pelo número de ouro. Relação coletiva que passo à possibilidade de encarnação no laço político, coisa que depende do sujeito afetar-se, ser afetado em seu corpo por tal efeito de hiância. É da importância que o sujeito dá à sua esquize que se a determina, o reconhecimento dessa esquize é como Lacan (1998b, p. 83) define o objeto a como objeto privilegiado surgido “de alguma automutilação pela aproximação do real”, lugar de sujeito barrado de seu ser e de seu sentido, lugar de objeto de seu desejo que o sujeito ocupa. A relação de reconhecimento da esquize no trauma é o que pode vir a mais bascular a relação causal que proponho nesse matema:

 

S              a

É de uma maneira pontual uma operação homóloga à da redução da ocupação do lugar de sujeito aos efeitos de objeto mais de gozar sob a qual o sujeito está referido no lugar de analisante. E é como ocupante que Lacan (2003a, p.283) define em Discurso na Escola Freudiana esse lugar[4] reduzido aos efeitos de divisão com a perda pelo sujeito de seu representante, no recalque, o que deixa a “representação de que imagina ser a câmara escura, embora seja apenas seu caleidoscópio, numa grande barafunda”. A “autogestão” das ocupações teve efeito de operação de gestão encarnada/implicada pelo Um mais a. O que sabemos não se dar senão de maneira pontual e evanescente, pois é assim que o sujeito, do inconsciente, se apresenta/representa: o que no entanto testemunhar foi de causar entusiasmo, coisa muita para o campo da política. Evanescência como fracasso sempre necessário de ser incluído, na medida em que isto não seria nunca excluído do modus operandi do coletivo, mesmo que nos perguntemos como seriam tais efeitos de ocupação da política não mais afeita aos moldes hegemônicos atuais que a política representativa “representa”, totalizadas pelos efeitos de identificação e idealização descritos por Freud. Uma maior propagação da ocupação/implicação da política pela incidência do objeto a já traz efeitos visíveis de mudança discursiva no social, pois o vazio que atravessa os podres poderes da macropolítica o demonstram – vazio tentado preencher-se pela desesperada explicitação do autoritarismo de um lado a outro da política institucional e seus derivados. O que advirá daí não se pode sabê-lo.

 

Referências 

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 4ed. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2016.

FREUD, S. Estudos sobre a histeria  [1893-1895]. In: ______.  Estudos sobre a histeria (Breuer e Freud). Traduzido do Alemão e do Inglês por Jayme Salomão. Notas de James Strachey. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora. v. II. 1976.

______. A repressão [1915]. In: ______. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução Paulo César de Souza. Obras Completas. vol.12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

 

______. Psicologia das Massas e análise do eu [1921]. In: ______. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução Paulo César de Souza. vol.15. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

LACAN. J. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada [1945]. In:______. Escritos (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a.

______. O Seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964-1965]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de MD Magno. 2. ed. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1998b.

______. Discurso na Escola Freudiana de Paris [1970]. In ______. Outros Escritos (2001). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003a.

______. O Seminário livro 19: …ou pior ([1971-1972] 2011). Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

______. O Seminário livro 20: Mais, ainda [1972-1973]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão brasileira de M.D. Magno. 2. ed. rev. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1985.

______. O aturdito [1973]. In: ______. Outros Escritos.  Op. cit. 2003b.

MAYERHOFFER, F.M.A. Notas sobre o ato político no Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. In Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte. Círculo Brasileiro de Psicanálise, n.42. dez. 2014. 160p.

[1] Membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise – Subsede Rio de Janeiro.

[2] A Besetzung aparece já em Estudos sobre a histeria (FREUD, 1976, p.135).

[3] Ver diferença entre ato e tarefa no ato político esclarecido pelo ato analítico em MAYERHOFFER (2014).

[4] Lugar que atravessado chega ao ponto que Lacan (2003, p. 282) destaca nesse texto, à da passagem a analista, no passe.

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