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A quarta margem do rio?

A quarta margem do rio?

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Brasil, 15 de setembro de 2021

 

«Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a  invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.»

Em «A Terceira Margem do Rio», Guimarães Rosa (1962) dá vida ao que talvez seja o grande enigma a que todos os que sentem necessidade de elaborar caminhos para além da bipolaridade colocada hoje no contexto político brasileiro, fazem face.  No conto, o pai se despede da família, possivelmente buscando saída de um relacionamento acabado e de uma vida sem sentido, constrói uma canoa e vai viver no espaço líquido entre as margens do rio, abandonando seus filhos. Vagando no leito do rio, indo e vindo sem rumo nem objetivo que não o de estar fora, numa forma de êxodo.

Longe da beleza da poesia da imagem de Guimarães Rosa por um lado, mas perto de sua desolação, nos vemos diante do cenário político brasileiro, onde o campo está dividido entre duas hegemonias de poder identificados com dois mitos: um na extrema direita e centrão; um outro na geleia do centrão-esquerda. Fala-se cada vez mais – e mal – de uma terceira via ou «terceira margem»: talvez seja porque essa insiste em tentar se constituir nesse «abismo». A urgência de uma terceira via como êxodo e invenção fica atolada na mediocridade de uma via do meio.

O bolsonarismo pretende dar as cartas na política nacional e parece conseguir interferir em todo o campo político, mesmo o aparentemente inimigo. De fato, o bolsonarismo preexiste a Bolsonaro como ator relevante no cenário político nacional. Sempre esteve latente na violência neoescravagista. Mas sobretudo, se renovou desde que qualquer crítica que ameaçasse o status quo anterior passou a ser recebida como traição ou ataque mortal, recebendo em retorno cancelamentos, desconstruções públicas, perseguições, fake news e sempre interditando qualquer debate sério, aberto, respondendo com mistificações variadas.

Poucos dias depois da mais recente etapa do golpe que nunca acaba, no dia 7 de setembro de 2021, após uma misteriosa sucessão de eventos cuja lógica política os mais vários analistas tentam elucidar, continuamos atolados nos mesmos enigmas.

Por um lado, temos um Presidente que governa em nome de seu clã e cujo governo é prova de força, chantagem, ameaça de todos os tipos diante de uma degradação exponencial das condições materiais de vida do país: necropolítica na pandemia, crise hídrica, inflação, estagnação apenas são os fenômenos mais visíveis da destruição sistemática do ambiente, da educação, da saúde. A vida política nacional é hoje dada pelas conjecturas que se pode fazer, pelas versões dos fatos que podem ser construídas, por tentar ver um pouco mais do que a grande névoa deixa ver sobre as reais orquestrações em jogo. De um lado do rio temos, portanto, o governo e seu mistério bem guardado.

De outro, temos a oposição e seu desejo de ocupar as duas margens do rio. O que o governo tem de misterioso e imprevisível por trás de uma superficial repetição, a oposição tem de realmente repetitivo, previsível, constante. O absurdo da situação se dá face a um número sempre crescente de mortos no Brasil, atualmente 600 000, resultantes da opção governamental de expor a população quando pôde ao vírus, somada ao auxílio da oposição que optou por não interferir diretamente. Quem impediu que a desgraça fosse maior no Brasil foram, de fato, as instituições em geral e a ação de governos locais com suas motivações diversificadas: as dimensões reais e vivas da democracia formal e representativas. No mais, as grandes correntes políticas em disputa só fizeram direta ou indiretamente, ampliar este número mortífero.  De fato, em pleno desgoverno é necessário reconhecer a dinâmica política ampla e crescente no país, que talvez seja maior, mais corajosa e efetiva que as opções político-partidárias que se apresentam como oposição ao bolsonarismo, a começar por  instituições como o próprio sistema judiciário, setores da imprensa e do próprio estado (saúde, educação etc), movimentos comunitários de solidariedade, áreas do empresariado que desembarcam do governo e assumem a oposição, para citar alguns. Mesmo nas forças armadas militares e civis existem divisões, sem falar na parte considerável do eleitorado que não deseja repetir escolhas anteriores.

As eleições vêm chegando, o governo encontra-se desgastado por sua própria inação e estranhas transações e a oposição  mais uma vez parece se alimentar de desejar o fim de tudo o que se pinta como opção alternativa, como já faz há anos, desde pelo menos 2014.

Quando olhamos para a chamada «terceira via», que se decidiu confundir deliberadamente com uma nova expressão da direita, vemos uma pluralidade de movimentos relativamente irreconciliáveis com baixíssima capacidade de transformar essa diversidade em multiplicidade. Carimbadas por uma chama eleitoral, as manifestações do 12 de setembro de 2021 não conseguiram nem a mobilização necessária em defesa da democracia, nem começar algum êxodo. Mais que o esvaziamento, foi esse seu limite: palanques cheios, ruas vazias. Nas acampadas que – em 2012 – anteciparam junho de 2013 – havia poucas dezenas de jovens, mas nenhum carro de som. Nessa horizontalidade estava uma semente que não deixou de germinar.  A terceira via não pode simplesmente se oferecer ponto do mediano ou se organizar como nova facção. Por outro lado, o 12 de setembro não deixou de ser uma experiência de diálogo e articulação entre campos de centro e de esquerda. Se essa dinâmica evoluir e, além disso, incorporar outras vozes, talvez possa dar lugar a alguma novidade no horizonte político.

O sistema político parece ter se reengessado nas velhas formas polarizadas e de cima para baixo. A vitalidade da vida política das duas primeiras décadas do século XXI parece ter se confrontado com um «muro» digital. No Brasil, em 2013, assistimos a uma grande permeabilidade das redes às convocações de eventos independentes. Pessoas desconhecidas na política podiam acionar dispositivos que terminavam por reunir 100 mil ou mais pessoas. O mesmo já havia ocorrido antes, em outros países. Já em 2005 as revoltas nos subúrbios franceses haviam sido chamadas e ampliadas graças as redes sociais.  De lá para cá, os gestores das redes encontraram caminhos para impedir esta espontaneidade na vida política mundial. A cena política volta a ser dominada pelos grandes partidos e estes veem com desconfiança movimentos sociais autônomos, novos quadros independentes e outros tipos de ameaças à estrutura hierárquica partidária.

Que saídas se pode buscar num contexto tão claustrofóbico?

Não há como proteger as instituições democráticas sem lhes dar nova vida. E isto hoje passa pelo necessário processo de impeachment do presidente para dar um fim ao pandemónio que promovem. Mas, se o clã presidencial está aí é porque o fascismo e a necropolítica que ele expressa vem de longe e, infelizmente, continuarão depois deles. A potencialização da democracia passa por uma mobilização que atravesse as margens rumo a algo que precisa ser inventado: só nesse horizonte haverá o movimento capaz de derrotar o fascismo pelo impeachment, mas também de continuar essa luta na sociedade: em particular propondo uma nova proteção social.

Diante do campo minado da política nacional e da deriva aparente da terceira via, cabe perguntar se não haverá uma quarta quartamargem, uma que traga a voz dos precarizados impossibilitados desde o início de se proteger na pandemia, os entregadores, os motoristas, os ambulantes, os garis, os empregados domésticos e todos aqueles que continuam expostos aos maiores riscos e seguem mal atendidos quando mais precisam e que, de fato, são os que garantem que a vida coletiva continue.  Estão invisíveis e subrepresentados no campo político atual, talvez como nunca.

 

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