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A revolução do saber vivo

Por Gigi Roggero, na revista Viewpoint , em 9/6/12 | Trad.: Silvio Pedrosa

 

“Como podemos transformar a universidade numa instituição do comum?”

 

unilusofonia

Estamos vivendo uma situação revolucionária. Poderíamos reformular a definição clássica nos seguintes termos: as elites dominantes do capital global não podem mais viver como no passado; os trabalhadores, os precários, os pobres, o saber vivo se recusa a viver como no passado. Na crise global, as lutas transnacionais – das insurreições do norte da África às acampadas na Espanha ou na praça Syntagma, do movimento universitário chileno ao levante de Québec – são compostas pela convergência de uma classe média empobrecida e um proletariado cuja pobreza é diretamente proporcional à sua produtividade.

Neste contexto, a universidade é um lugar crucial. Não tanto pela produção de conhecimento: ao contrário, quanto mais a produção do saber se espalha pela fábrica social, menos a universidade é um centro privilegiado de sua transmissão – a torre de marfim está definitivamente desmoronando. Mas a universidade é um lugar crucial das lutas, das possibilidades de territorialização e generalização.

O coletivo Edu-factory definiu tal contexto como uma “dupla crise” – isto é, a crise da universidade e a crise econômica global. De fato, é impossível compreender as transformações e lutas da universidade sem relacioná-las às transformações e lutas do trabalho e da produção. Então, de maneira estenográfica, esbocemos cinco tendências globais da economia política da universidade e da sua crise. Isso é, cinco campos de batalha para as lutas globais.

1. A crise da ideia tradicional de conhecimento, que é também a crise da mitologia esquerdista do conhecimento como um bem comum neutro e natural a ser defendido da mercantilização. No capitalismo contemporâneo, o saber – uma fonte central e meio de produção – não é apenas uma mercadoria, é a mercadoria central na acumulação capitalista. De fato, não há nenhuma neutralidade ou naturalidade no saber: é sempre uma questão de produção e, no interior das relações sociais capitalistas é, também, uma fonte de exploração.

Quando falamos de saber vivo, estamos tentando identificar a nova composição do trabalho vivo e a socialização da produção do saber. Este é um processo ambivalente: o saber é o quê é produzido em comum pelo trabalho vivo e é, também, aquilo que o capital explora; é a possibilidade de autonomia da cooperação social e aquilo que o capital captura e valoriza. Neste processo ambivalente, o saber se torna um terreno de luta central: o comum não existe na natureza, mas precisa ser produzido.

2. A crise das disciplinas, ou seja, da moderna organização do conhecimento. Na primavera de 2009, respondendo a uma questão colocada pela rainha da Inglaterra, um grupo de economistas ortodoxos concluiu que a disciplina economia não apenas não tinha sido capaz de prever a crise nascente, mas que era absolutamente incapaz de entender qualquer coisa sobre a economia e podia ser responsabilizada pela própria crise. O discurso noutras disciplinas não tem sido muito diferente: elas são cada vez mais incapazes de explicar o que está acontecendo. As disciplinas, assim como a retórica da interdisciplinariedade, representa cada dia menos uma forma de organização do conhecimento e mais e mais uma medida artificial da produção do saber vivo – em outras palavras, um instrumento de exploração. Nas lutas atuais o que está em jogo é a nova e autônoma organização do saber baseada na sua produção comum.

3. A crise da figura tradicional do estudante. Desde a sua posição enquanto produtores de conhecimento, os estudantes não são mais integrantes de uma força de trabalho em aprendizado, mas são imediatamente trabalhadores e trabalhadores precários. De fato, há uma contínua sobreposição entre o mercado educacional e o mercado de trabalho (pense na “formação continuada” ou no sistema de acreditação). Não é por coincidência que as questões do trabalho (precariedade, desvalorização da força de trabalho, empobrecimento, crise etc) têm sido centrais nas lutas estudantis e universitárias nos últimos anos. E por esta razão, as lutas universitárias tem um potencial de generalização através de toda a composição de classe.

4. A crise da moderna dialética entre público e privado. Consideremos a transformação da universidade em empresa. Isto não significa apenas a entrada dos fundos privados nas instituições públicas. Nos modelos americano e anglo-saxão, a definição das universidades empresariais não depende tanto do seu status jurídico: elas são públicas e privadas e financiadas pelo estado e por fundos privados. “Universidade empresarial” significa que a universidade mesma se tornou uma empresa – trabalhando com cálculo de custos e benefícios, racionalidade orçamentária e cortes de custos na força de trabalho para competir no mercado global da educação. Isto significa que uma universidade para além da dialética entre público e privado, estado e mercado. Desde o ponto de vista das lutas, isto significa que não temos nada a defender: o que está posto é o processo constituinte de uma nova universidade. Nós a chamamos universidade do comum.

5. A crise da universidade como um elevador para a mobilidade social. Precariedade e endividamento – como condições permanentes de vida – demoliram a ideia de que se vai para a universidade para ter uma posição mais elevada do que a pregressa. Acima de tudo, isto significa uma ruptura irreversível das promessas progressivas capitalistas, mesmo nas suas formas individualistas e competitivas.

No desmoronamento do sistema de welfare state (estado de bem estar social) – exemplificado pelo insano aumento dos custos da educação universitária em Québec -, a dívida se torna uma forma perversa de acesso às necessidades sociais (moradia, educação, saúde, mobilidade etc).

Podemos falar de uma financeirização da universidade e da vida. O sistema de dívida funciona como um processo de canalização das escolhas, um regime disciplinar imposto não apenas ao presente, mas antes e principalmente como hipoteca do futuro. É um regime moral de individualização: se você está devendo, é culpado. Mas, exatamente por essas razões, temos de nos opor aos julgamentos moralistas da esquerda a respeito do acesso ao sistema de crédito, pois o uso do crédito também joga luz sobre a incompressibilidade das necessidades sociais.

A campanha Occupy a respeito da dívida estudantil e sua reivindicação por uma forma de direito coletivo à falência para estudantes, trabalhadores, pobres e precários é estratégica: por um lado, para reapropriar a riqueza social que produzimos em comum; por outro, para recusar o regime moral do capital financeiro e seu aparato de individualização, bem como para criar um processo coletivo. De fato, pode-se dizer que a luta a respeito do crédito e da dívida no capitalismo contemporâneo é o equivalente à luta salarial no capitalismo industrial. 

Nestas bases, concluamos com duas questões políticas levantadas pelos movimentos globais. Primeiramente, como podemos construir uma política de composição comum entre a classe média empobrecida e proletários “sem futuro”, esses dois elementos postos em comum pelo empobrecimento e a exploração capitalista, mas segmentados pelo aparato do capitalismo financeiro (dívida, individualização, estratificação salarial, política identitária etc)? Esse é um nó górdio da organização do comum.

Em segundo lugar: atualmente, o campo de luta não está situado na defesa do público (porque se trata de um público privatizado), mas no processo constituinte para além do sistema de representação política. A ocupação de praças, universidades e do espaço metropolitano não é um protesto, não há demandas endereçadas ao governo. Essa prática indica a criação de um novo espaço-tempo, de uma forma embrionária de organização da vida em comum. A questão é: como podemos construir uma organização coletiva da nossa cooperação autônoma e destruir o mecanismo de captura capitalista? Como podemos transformar a universidade numa instituição do comum?

Se estamos vivendo numa situação revolucionária, também sabemos que ela não rumará, em um movimento mecânico, para a revolução em si e o “1%” não cairá se não o derrubarmos. Essa é nossa tarefa.

Gigi Roggero é doutor em ciências sociais e presentemente atua pelo coletivo Commonware, baseado em Bologna, na Itália

Foto: Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), na Bahia.

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