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Antonio Negri em dois livros recentes

Resenha de dois livros de 2012 sobre Antonio Negri: SERSANTE, Mimmo. Il ritmo delle lotte. La pratica teorica di Antonio Negri. (ombre corte, 2012) e MURPHY, Timothy S. Antonio Negri. Modernity and the Multitude. (polity, 2012).

Por Bruno Cava

Toni Negri fará 80 no ano que vem. É, sem dúvida, dos maiores, senão o maior filósofo em atividade. Isso numa época em que a produção filosófica está no ápice. A vida e a obra de Negri, ainda dando frutos, não geraram apenas teorias revolucionárias, mas revoluções profundas na teoria. A filosofia não é uma atividade homogênea, uma linha do tempo mais ou menos coerente, preenchida por medalhões credenciados, de Heráclito a Heidegger. Cada filósofo tanto inventa novos conceitos e problemas, quanto recria o próprio modo de fazer filosofia. Assim, cada filósofo condiciona a sua maneira a questão “o que é a filosofia?”, não por acaso respondida diferentemente a cada vez. Filosofia, para Negri e o movimento operaísta que ele integra, é campo de luta e luta ela mesma. Não pode ser reduzida à “italian theory”, como a nova grande ideia depois da “french theory”.

Filosoficamente longevo, Negri tem o privilégio de ler as primeiras biografias intelectuais que investigam e expõem a sua trajetória política e teórica como um todo.

Il ritmo delle lotte. La pratica teorica di Antonio Negri (1958-1979) [O ritmo das lutas. A prática teórica de Antonio Negri] foi lançado este ano pela editora ombre corte. O autor Mimmo Sersante foi militante do autonomismo italiano na década de 1970. A contracapa avisa que hoje ele mora em Pordenone, uma cidadezinha de 50 mil habitantes e ares medievais no norte da Itália. Sersante narra os anos mais “vermelhos” de Negri, do ponto de vista da produção teórica. Isto é, cobre o período que vai das primícias intelectuais e militantes do filósofo, até a prisão em 1979, por “associação e insurreição contra o estado”.

A narrativa vai à região do Vêneto no segundo pós-guerra, onde Negri começa a atuação política. Mais um comunista formado no seio do cristianismo, enraizado na experiência dos pobres. Negri não começou por Marx, que ele só leria sistematicamente na casa dos 30. Primeiro, experimentou o lado ativista da Igreja, segundo ele uma “organização de massa, articulada, amorosa, potente, onipresente”, talvez uma vivência próxima à da TL e das comunidades de base no Brasil.  Num segundo momento, Negri imergiu na militância chão-de-fábrica, junto do operariado fordista da grande indústria italiana. Conhecia cada companheiro e sua família pelo nome, e em seus discursos e artigos não fazia concessões ao negocismo dos sindicatos, cada vez mais limitados ao papel de intermediários dos patrões. Viveu a gatto selvaggio, viajando de cima a baixo da península, um agitador incansável de pequenas e grandes sabotagens.

Participou de greves, passeatas, piquetes, jornais, revistas, comícios, e infinitas reuniões militantes, do que foi acompanhado por uma produção teórica cada vez mais marcada pela luta de classe, o comunismo como modo de vida e o problema da organização. Atuou em mobilizações expressivas que marcaram época, como as greves de Porto Marghera, o Outono Quente de ’69 (o “1905 italiano”), a ocupação de Mirafiori (1973), e finalmente um amplo espectro de novas contendas, no período de 1973 a 1979: pós-fordistas, metropolitanas, minoritárias, feministas, dispersas, “culturais”. Protagonizadas por um novo tipo de operário, o “operário social”, os “operários de Negri”, agrupadas sob a legenda “área da Autonomia”,  seu clímax ocorreu com o heterogêneo Movimento de ’77.

Na esteira da agitação política da Itália, os textos de Negri vão se tornando sucessivamente mais insurrecionais, até a passagem (judicialmente) famosa em Proletários e Estado (Feltrinelli, 1976), quando ele fala, no contexto da radicalização da crise, em sabotadores, criminosos, franco-atiradores e máscaras de esqui. Negri, no entanto, sempre pontuou a preferência pela ação coletiva en masse, como forma legítima de insurreição, contra qualquer atentado despropositado a partir de grupúsculos ou aparelhos na mesma lógica militar do estado; e assim combatendo linhas brigadistas ou terroristas no âmbito do próprio movimento de contestação.

Tudo isso, Sersante conta a par da elaboração teórica de Negri. Como o filósofo e o operaísmo em geral estiveram obsessivamente debruçados sobre o problema da organização. Cada conceito com um trabalho próprio, que não deixa de ser ação coletiva, práxis, produção de um comum e nomes comuns. A inchiesta, a con-ricerca (copesquisa), como métodos em que o conceito parte do militante, irrompe dos impasses e contradições do presente, em tendência antagonista, como ruptura e kairós, e então circula como uma maneira inovadora e potente de organização do movimento: mais antagonismo, mais reinvenção, mais luta, alegre e crudelíssima. Não só conceder primazia à subjetividade de luta sobre quaisquer estruturas e esquemas históricos ou sociológicos, mas inquirir quanto às possibilidades e oportunidades para extravasar, aprofundar, propagar essa subjetividade, despedaçar a subjetividade do capital, e com uma força inestancável acelerar a revolução. Não se resume a analisar o funcionamento e as reestruturações do capital, em que a força de trabalho está incorporada (a “composição técnica de classe”), mas sobretudo a afirmação e a imaginação de alternativas existenciais, resistentes por sua própria natureza (a “composição política”), à sociedade capitalista.

Eis um triângulo conceitual formado pelos vértices da 1) autonomia do movimento, em relação a instâncias representativas (o sindicato, o partido, o estado e o mercado), 2) da inovação, no sentido que é sempre o movimento que cria o mundo, depois do que o capital tenta expropriá-lo, constituindo mediações e estruturas, o mundo amortecido do capitalismo, e 3) do antagonismo, contra a relação social do capital, isto é, de subordinação e exploração do trabalho. Por isso, a filosofia negriana é autonomista, revolucionária e antagonista.

Nessa trajetória, Toni não fez poucos desafetos, adversários e inimigos. Desde o princípio, nunca deixou de criticar o estalinismo, o socialismo real e a União Soviética. Sua obra traz uma sátira feroz à proposta socialista, contida na ortodoxia marxista de partido. Renegou a ação apaziguadora dos sindicatos, para ele já funcionais à marcha do capital. Contestou o elogio conservador do trabalho e do trabalhador, resquícios de um realismo soviético que enaltece a sociedade disciplinada pelo labor, e que a constituição italiana erigia como preceito fundamental. O operaísmo difere do trabalhismo na medida em que aquele se pauta pela recusa do trabalho e do mundo organizado pelo trabalho, portanto, pauta-se pela autoabolição da classe proletária. O operário é aquele que não quer sê-lo e para quem o trabalho não passa de uma massacrante acumulação de dor, cansaço e tédio. Negri polemizou na xinxa com o eurocomunismo, a liderança de Enrico Berlinguer e o Compromisso Histórico: a acomodação da “esquerda partidária” com o bloco conservador então representado pela Democrazia Cristiana, numa coalizão de governo durante os ’70s.

As unhas negrianas cravam mais fundo, demarcando-se teoricamente contra o reformismo keynesiano, a socialdemocracia, e qualquer esboço de empreendedorismo schumpeteriano, contra as tradições gramscianas e os conceitos de “hegemonia” e “intelectual orgânico”, contra o estruturalismo “objetivante”, a ideia de autonomia do político (com o que discordou de antigos companheiros, como Mario Tronti e Sérgio Bologna), e sempre além de concepções reducionistas do sujeito revolucionário.

Uma vez preso, em 1979, — numa operação policial que varreu militantes e intelectuais da área da Autonomia, — não tardou em ser acusado de mente diabólica, o gênio maligno, a mastermind por trás da luta armada, das Brigadas Vermelhas, do assassinato de Aldo Moro. O PCI mesmo participou dessa armação, típica de regimes de excepcionalidade, em que opositores e dissidentes acabam tachados de “inimigos do estado”,e então presos arbitrariamente segundo vagas acusações  de incitação, associação e apologia. Com isso, Negri termina a década de ’70 tido por il grande vecchio de uma trupe de gângsters intelectuais, os corruptores da juventude sessentoitista, do partido e do verdadeiro caráter do socialismo. Em suma, una bella gabbia di matti, os operaístas.

Já Timothy S. Murphy, em Antonio Negri. Modernity and the Multitude [Antonio Negri. Modernidade e a Multidão], também de 2012, pela Polity Press, faz um comentário geral num tom um pouco menos operaísta (e menos apologético). Esse livro tem a ousadia de ser o primeiro a contemplar a totalidade da evolução teórica de Negri. A contracapa se orgulha de ser “o primeiro estudo amplo sobre o trabalho de Negri em qualquer língua.” Murphy já havia organizado com A. K. Mustapha dois tomos com artigos sobre o filósofo (The Philosophy of Antonio Negri 1 e 2, Pluto Press, 2005/2007). Desta vez, apresenta um apanhado completo da obra de Negri, das primeiras dissertações em filosofia do direito, sobre Kant e Hegel, na virada dos ’50s aos ’60s, até a sequência de publicações em coautoria com Michael Hardt. No último capítulo, o autor tem o mérito de compilar boa parte da (extensa) recepção crítica aos livros Império (2001) e Multidão (2004), sem pudor de opinar a respeito, a favor ou contra.

A hipótese de Timothy é que, apesar da diversidade de conteúdos, temas e referências, o pensamento de Negri tem como eixo afetivo o humanismo. Não decerto o humanismo da modernidade, em seus ideais abstratos, que sempre e sempre culminam no culto ao interesse geral e a anódinos direitos humanos, esses tão interessantes às forças conservadoras, ainda que sob matiz “progressista”. Certo humanismo. À morte do homem (moderno) prefigurada por Nietzsche, Negri responde com o homem renascentista. O humanismo imanente, carnudo e construtivista das repúblicas italianas dos séculos 14 e 15, terra de virtù e coraggio, de character (no sentido de Orson Welles); humanismo de Petrarca, Boccacio, Maquiavel, Montaigne, Marguerite de Navarre, Rabelais; humanismo tirado da mistura política de hábitos urbanos ou campesinos na pobreza, seu riso e seu carnaval, e a ilustração clássica em verso, prosa e estilo.

Negri lê a política em chave produtiva. E como Félix Guattari, para Negri, a política precede o ser. O materialismo é teoria da ação, da produção de vida e ser. A luta é por reapropriação do processo produtivo da vida, e não só dos produtos, do que já existe. Menos reapropriar-se da verdade ou do valor, do que dos regimes de produção de verdade e valor, e então criar. Revolucionar o modo de produção, reapropriando-se das forças produtivas, tangendo o capital e suas representações. A arte da política não se separa da organização da produção, contra o fetiche da autonomia do político. Com isso, Negri se filia à tradição filosófica do dinamismo ontológico, o estático e a coisa como casos particulares do movimento e do processo. Antes o ser como atividade constituinte, do que natureza constituída. Uma tradição cujo expoente materialista foi Spinoza, a partir de quem Hegel se dirigiu a caminhos idealistas.

No painel conceitual de Negri, Hegel e Spinoza se digladiam. Na via de Hegel, o processo de constituição do ser passa por sucessivas mediações, consecutivos momentos dialéticos que incorporam e integram o precedente. Mediação que é mais do que o “mediado”, o que conduz ao elogio da família, do estado, da “história universal”, qual seja: o fim da história neoliberal. Espírito absoluto sive humanidade pós-metafísica. Filosofia da síntese, das oposições “fracas” que sempre resguardam algo do adversário, conciliação, progresso, aburguesamento. Na via de Spinoza, a atividade constituinte não procede por sínteses, e cada mediação não passa de um grau de impotência imprimido sobre a essentia actuosa que gera o mundo. O imediato é mais do que a mediação. A multidão é positividade constituinte, qualitativamente procriadora, cooperativa e imediatamente produtiva. O livro Anomalia Selvagem (1981) exerce a crítica das mediações, e a consequente apologia das forças produtivas.

Com Negri, Spinoza encontra Marx elevando os dois à enésima potência. O filósofo alemão relê Spinoza na contramão de Hegel e acha o fio vermelho do espinosismo. As mediações não levam à superação de nada, mas à alienação nelas mesmas. As relações de produção confinam, despotencializam e alienam o homem — essência constituinte ou trabalho vivo — nas formas do valor, do dinheiro, do capital. A mercantilização captura a vida, e a amortece com exigências métricas e quantificadoras. Se economicamente a mediação é o mercado; politicamente é o estado (e toda a esfera da representação política). Eticamente, a moral. Culturalmente, a nação, os bairrismos e os regionalismos. Subjetivamente, as identidades.

Talvez todo grande autor extraia a vis viva de seu pensamento de alguns motivos fundantes. Para Camus, quem sabe, as paisagens mediterrâneas acalentadas pelo vento seco, os corpos molhados, os perfumes selvagens, a libertinagem da natureza. Para Kerouac, as estradas sem fim experimentadas na boleia sob firmamentos de diamante, em meio a índios, jazz e alucinações. E para Negri, a energia motriz possivelmente verta da rica experiência entre os pobres, a camaradagem, a “rudeza pagã”, a paciência doce e a alegre raiva que permeiam as revoltas de massa. Prodígio intelectual, filósofo poliglota, estudioso do alto idealismo alemão, Negri não cessou de banhar-se nesse manancial de calor e rosto. Tão superabundante que povoou a sua solidão no cárcere, onde desde Gramsci e Boécio se elaboram grandes obras políticas. As lutas, as revoltas, e toda a negatividade não cessaram de assentar-se sobre essa positividade inesgotável.

É aí que o humanismo negriano faz sentido, mais como um comunismo que já está, do que qualquer doutrina utópica da natureza humana e seus “direitos inalienáveis”.  Cabe-nos aderir à tendência antagonista que o comunismo exprime nos seus múltiplos focos e manifestações. Essa tendência consiste num vetor criativo que antecipa a reestruturação capitalista, para desferir-lhe ainda novos e inesperados golpes. Tendência que permite circundar a tarefa de dizer o nome da classe, e que leva o pensamento a aprender o ritmo das lutas, a colocar-se no mesmo tom, seguir-lhes a pulsação, suas sístoles e diástoles, arritimas, crises e derrames. O comunismo acontece no presente como proliferação de lutas e subjetividade de classe, que adensa no “tempo longo” da organização política. É a tarefa do materialista: tornarmo-nos o comunismo que já somos. Esta, a transição comunista que importa.

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