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Antropofagia da multidão

Versão escrita da fala à Casa Rui Barbosa, seminário “A ascensão selvagem da classe sem nome: tatu or not tatu”, em 6 de setembro de 2012.

por Bruno Cava, blogueiro.

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A antropofagia apela para um povo. Um povo que não quer ser Povo, com mil raças bastardas e minoritárias, povo que quer comer a si mesmo, irredutível ao estado, o mercado, a identidade brasileira. Esse povo já existe, embora invisível segundo o regime político representativo. Está em falta na história do Brasil, apesar de constituir seu ânimo e seu furo intempestivo. O povo de antropófagos é convocado menos para dominar o mundo e instaurar uma utopia, do que revolucioná-lo de dentro. Os modos de efetuação desse povo põem em crise os projetos de construção do Brasil. Em vez de verter lágrimas sobre um passado de traumas colonizatórios, a antropofagia envolve uma genealogia do presente. A antropofagia é da ordem do comunismo e surrealismo, e como eles exprime singularmente uma presença de forças políticas.

O povo antropófago recusa dois populismos, à esquerda e à direita. Em ambos os casos, o povo aparece como síntese da brasilidade, o substrato que de norte a sul cimenta uma nação unida e forte, na unidade formal do estado e da cultura. Os populismos postulam o Jeca Tatu, rústico ou pós-moderno. Na base do povo, o trabalhador “democraticamente” mestiço, pai de família, misto de família, trabalho e patrimônio. Governa-se para o homem médio e a mulher honesta, que educam cidadãos de bem. E trabalham, trabalham, trabalham. Aí, a antropofagia desune. Explode o Brasil em mil brasis menores. O povo antropófago recusa o discurso da exclusão, e assume a própria potência como revolução permanente.

Desde pelo menos a República, a tarefa de construir um povo brasileiro unifica esquerda e direita no consenso nacional-desenvolvimentista ou neo-desenvolvimentista. Os modelos de realização desse projeto atravessam longos períodos históricos. Sua concretização se confirma no século em que o futuro chegou para o Brasil. É reduzida a multiplicidade viva dos brasis no corpo popular da “Classe C”, a categoria política dos novos Jecas. Esse povo em construção se produz por pequeno-aburguesamento generalizado, processo paralelo ao acesso à renda, direitos e consumo. O jogo político, que o jornalismo representa bem, decai num fla-flu entre pulsões burguesas progressistas e pulsões burguesas reacionárias. Eticamente, a luta entre a Dilma-em-cada-um-de-nós e o Bolsonaro-em-cada-um-de-nós. Intelectualmente, entre Emir Sader e Olavo de Carvalho. A inclusão de todos no Brasil Maior reafirma a base antropológica monocultora onde se aplica a ilusão da diversidade.

O povo antropófago afirma renda e consumo por outros meios. Ele come o povo brasileiro, multiplica as rendas, desvia das identidades, consome o consumo. Faz do próprio regime alimentar uma afirmação de potência política. Instaura outros regimes intensivos por dentro dos novos espaços, bens, identidades, direitos formais e reconhecimentos institucionais. Os antropófagos comem as eleições e os partidos e não hesitam em lhes dar a direção que bem entendem. Não se colocam mais à esquerda nem à direita. Mais a oeste. Go west. E mais a oeste encontra o negro da terra, o devir-índio do Brasil e do mundo. No Manifesto Antropófago, mais do que em qualquer outro escrito, Oswald pôde ser apresado pelas qualidades, desejos, afetos e intensidades desse povo sem estado, que pulsa por dentro das situações históricas. Oswald foi capturado pelo devir-índio. A antropofagia é antes enunciado coletivo que formulação de um autor.

Não é tão importante o que Oswald “quis dizer”, pouco importa uma close reading que não desça ao solo pisado pelas ocupações, protestos e lutas políticas. Não interessa tanto uma exegese da antropofagia em sua obra, ainda que autoexegese, ou do movimento modernista. A tarefa libertadora da antropofagia passa primeiro por arrancá-la do debate “cultural”. Recusar-se como operador meta-cultural ou chave de inteligibilidade da trajetória de algo como uma “cultura brasileira”, que só existe como manifestação estatal ou proto-estatal. Antropofagia só pode ser conceito de arrasamento, desertificante, que desloca toda essa contenda para o campo alisado do poder constituinte. Os campos sem fim que o sonho corta. Se existe uma leitura diluidora da antropofagia, consiste na metáfora da “devoração”. Não confundir antropofagia com oportunismo ideológico. Como se a ideia do antropófago achasse alguma analogia no ato de comer gente, deglutir, digerir. Esse hegelianismo tropical da comilança ontológica, para justificar a assimilação, a acomodação e a síntese dos antagonismos no plano da diversidade popular. O povo antropófago está sempre faltando nas tendências de abrasileiramento. A antropofagia é histórico-mundial, tal qual o comunismo e o surrealismo. Não se explica por complacência “cultural”, elogio da cordialidade brasileira, multiculturalismo, vocação para incorporar o diverso, qualquer espécie de conciliação, tudo isso cujo limite é o racismo da democracia racial. Sem metáforas, faz-se de metonímias esparramadas em delírio criativo, todo ele epiderme e eletricidade, onde algo de muito vivo se passa.

Antropofagia funciona como conceito, e como tal implica um problema, uma pragmática conceitual. É o problema político máximo: o movimento real de abolição do estado das coisas, a libertação do desejo contra capital e estado. A antropofagia depõe um teatro político saturado de falsos problemas. Dramatiza outros personagens, percorre outras geografias de lutas e reexistências. Esquizofrenia caraíba para desbloquear os processos maquínicos do inconsciente, e assim convocar o comunismo pós-moderno. Um corpo político turbilhonar que escapa às representações das esquerdas e direitas, de todos os populismos implícitos nos governos e na governabilidade. A antropofagia recomeça a filosofia revolucionária noutros termos, novas coordenadas para a alteridade radical à modernidade capitalista e civilizatória.

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