por Giuseppe Cocco | julho de 2023
No dia 5 de junho de 2023, na Esdi-Uerj, aconteceram as duas primeiras mesas do seminário Junho de 2013, 10 anos depois. No dia 13, as atividades aconteceram no CPDA da UFRRJ. Os debates foram bem além da comemoração, propondo várias reflexões instigantes sobre o enigma da nossa condição política sob a perspectiva de junho de 2013. O quebra-cabeça pode ser enunciado como segue: o levante do outono de 2013 criou as condições dos impasses atuais ou ao contrário foi o fechamento dessas mobilizações e sobretudo a reeleição de Dilma Rousseff em 2014 que levaram ao ciclo catastrófico que seguiu?
A primeira mesa abriu algumas linhas de reflexão sobre o enigma de junho de 2013.
Pablo Ortellado fez uma reflexão sobre junho organizada em dois momentos. Em um primeiro, ele reconstituiu a história do Movimento pelo Passe Livre (MPL) e a dinâmica das manifestações que ele promoveu inicialmente: o levante foi assim um evento singular dentro de uma longa história de lutas metropolitanas. Ao mesmo tempo, a primeira mobilização da multidão do trabalho metropolitano logo excedeu o marco daquilo que uma velha sociologia urbana chamaria de “direito à cidade” para se colocar (em termos literalmente econômicos-políticos) no terreno do making da metrópole[2]. Em um segundo plano, Pablo apresentou uma série de dados da relação dessa inflexão biopolítica do levante e seus impactos com as representações ideológicas (e vice-versa). No momento do levante, a análise dos grafos nas redes sociais mostra que ele era formado por uma nuvem que não se deixava polarizar pelas tradicionais clivagens ideológicas direita versus esquerda. Entre os dois pólos da retórica, a radicalidade do movimento estava justamente em recusar a polaridade e navegar no oceano da constituição de uma nova metrópole e de uma nova política, de uma nova terra e de um novo povo. A pacificação do movimento – que começou no momento da realização da Copa (julho de 2014) e sobretudo nas eleições de outubro de 2014 – se traduziu pela fragmentação da nuvem da multidão em duas componentes distintas e opostas: uma que ficou sob a umbrela da hegemonia reconstituída da esquerda (preocupada com os temas das guerras culturais) e a outra da direita emergente (que ia se constituindo dentro das mobilizações contra a corrupção de 2015 e 2016). Nesse sentido, se houve um “ovo da serpente”, esse foi a reeleição da Dilma e, mais em geral, o dispositivo de produção dessa polarização ideológica que, depois dessa vitória de Pirro, levou à eleição de Jair Bolsonaro (aqui, narrativas fantasiosas).
Silvio Pedrosa lembrou com ironia de como a partir daquele momento, os sentidos foram virando de ponta cabeça. Lembremos, o Governador de São Paulo em 2013 era o “tucano” Geraldo Alkmin (atual vice-presidente de Lula) e o prefeito da cidade era o petista Fernando Haddad (atual ministro da Fazenda). No afã da polarização promovida pelo lulismo para acabar com as mobilizações de junho e impor a reeleição de Dilma Rousseff, um monte de intelectuais e militantes, além de participar ao linchamento infame de Marina Silva, chegaram até a achar que Fernando Haddad era o “mais tucano dos petistas”. Hoje, devem estar se perguntando como não tinham descoberto que Alckmin era o “mais petista dos tucanos”. Silvio definiu a figura do Bolsonaro como a de um cesarismo pelo avesso, pois a facada foi o ponto de partida e não o de chegada dessa aventura autoritária que está longe de ter acabado. Silvio terminou enfatizando que junho de 2013 continua sendo tudo, quer dizer a condição de sairmos das armadilhas da condição atual. Mas, parafraseando Sieyès, podemos dizer que junho quer ser tudo, mas ainda não é nada.
Chegamos assim à palestra de Barbara Szaniecki: “Os Dois Amarildos”. Por um lado, Amarildo, um favelado sequestrado, torturado e desaparecido – pasmem – na sede da Polícia Pacificadora (UPP) da grande favela da Rocinha (na zona sul do Rio de Janeiro) em julho de 2013. Pelo outro, Amarildo, um ribeirinho acusado de ter participou ao assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia (em junho de 2022 !).
De um lado, um pobre assassinado; do outro um assassino pobre: pobres matando pobres em uma espiral de violência insensata que é o dia a dia da guerra molecular que atravessa boa parte da América latina: pobres soldados matando soldados pobres. Georges Didi-Huberman escreveu sobre Peuples em armes, peuples em larmes, nós poderíamos dizer “pobres em armas, pobres em lagrimas”. O pobre pode ser a vítima, mas pode também ser o algoz numa fluidificação dos papéis que tanto tinha feito pensar Pierpaolo Pasolini ou Hans Magnus Helzenberger.
Os dois Amarildos – como bem lembrou Barbara – mostram que o enigma da circularidade dessas figuras continua nos assombrando. Pensemos no drama dos migrantes que cruzam o México para tentar entrar ilegalmente nos Estados Unidos e são massacrados, estuprados, roubados por todo tipo de organização mafiosa ao longo dessa travessia bíblica. Pensemos no drama da guerra no Haiti.
A potência do levante de junho de 2013 – particularmente no Rio de Janeiro – foi de ter rompido por um momento o enigma dessa circularidade da violência: por uma vez, um Amarildo passou a ser o Amarildo e a luta pela descoberta de seu paradeiro afirmou uma outra pacificação: Amar é a Maré Amarildo !
Só o levante de junho foi capaz de criticar a violência como rotina e transformar o Amarildo no nome da vergonha não mais pelas vítimas, mas diante das vítimas. Disso precisamos repartir.
A primeira mesa já está disponível no YouTube.