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Brasil reconhece 21 mil venezuelanos como refugiados em decisão coletiva.

 

Por Aryadne Bittencourt Waldely e Fabrício T. de Souza

No dia 05 de dezembro de 2019, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) do Brasil reconheceu como refugiados 21.432 venezuelanos que deixaram o país de origem em função da crise humanitária. Isso é um fato gigantesco para o Brasil e certamente para os demais países da região, impactados pelo fluxo de venezuelanos, assim como para todos os outros que lidam com refugiados. Quem acompanha de perto a pauta da população refugiada e das políticas brasileiras está contagiado por uma grande e feliz emoção. A decisão já foi destacada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados pelo seu impacto positivo. É preciso ressaltar sobretudo o protagonismo e a luta dos venezuelanos, que decidiram deixar para trás a violência em busca de segurança e paz, e perceber como esta decisão emerge em um contexto repleto de ambivalências e contradições.

Algumas razões para ajudar na inteligibilidade desse acontecimento:

  1. Numericamente, esse é o maior reconhecimento coletivo de refugiados em toda história do Brasil. Ao todo, são agora, contando esses deferimentos, pouco mais de 30 mil refugiados no Brasil. Ou seja, por meio de uma decisão tomada em um único dia, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) reconheceu quase o dobro do total do reconhecimento de status de refugiados em mais de vinte anos. Proporcionalmente, é um número pequeno frente ao número total de 4 milhões de pessoas que saíram da Venezuela nos últimos cinco anos. E é ainda mais insignificante diante do incrível número de 60 milhões de pessoas deslocadas forçadamente no mundo. Mas, proporcionalmente, considerando o histórico brasileiro, o contexto regional e as práticas cada vez mais restritivas no mundo, é uma decisão histórica.
  2. Atualmente, no mundo, aproximadamente 750 mil venezuelanos solicitaram refúgio nos últimos cinco anos. O Brasil é o segundo país que mais recebe tais solicitações. Até setembro de 2019, as autoridades brasileiras registraram mais de 120 mil solicitantes de refúgio da Venezuela. Apesar de ser uma decisão que ocorre anos após a instauração da crise, num só ato decisório, 18% dos venezuelanos que solicitaram proteção internacional no Brasil foram brindados com esse status.
  3. A notícia indica uma mudança de paradigma na condução da política brasileira para lidar com a chegada de venezuelanos que buscam proteção. Antes, 92% dos casos de venezuelanos decididos pelo CONARE foram extintos, arquivados ou negados. Havia pouca esperança de que o deslocamento de venezuelanos no Brasil seria gerido pela perspectiva de proteção a refugiados. A resposta oficial era considera-los como migrantes merecedores de interesse especial. Agora, a maioria dos refugiados reconhecidos no Brasil teve como fundamentação a definição trazida pela Declaração de Cartagena, cujo principal propósito é justamente facilitar o reconhecimento coletivo devido a problemas da região.
  4. Nesta decisão, foi utilizado o inciso III do artigo 1º da Lei 9.474/97, que regulamenta a proteção a refugiados no país. Isso quer dizer que foi reconhecida a situação de “grave e generalizada violação de direitos humanos”, uma definição inspirada na Declaração de Cartagena de 1984, que jamais foi aplicada nessa escala na América Latina e no Brasil, apesar de estar prevista na maior parte das legislações nacionais. E jamais foi aplicada para casos em que não havia um contexto de guerra civil ou algo semelhante. E resulta de uma mudança de entendimento no fundamento dos pedidos de refúgio. O CONARE já tinha utilizado esse fundamento em julho passado para reconhecimento de venezuelanos, para cerca de 200 casos. O reconhecimento com base neste esse dispositivo legal é pouco utilizado porque tende a abrir precedentes para casos futuros.
  5. Tradicionalmente, com exceção dos países que recebem fluxos massivos de refugiados por suas fronteiras, como até pouco tempo era o caso brasileiro, os Estados respondem aos pedidos de refúgio através da análise individual de cada um deles. Isso significa que cada pessoa que solicitou refúgio passa por um processo meticuloso e, geralmente, bastante demorado para análise de sua história individual (se é que existe tão demarcação nas histórias de vida) e de sua credibilidade. A decisão coletiva para essas 21 mil pessoas ocorreu “prima facie”, através de um procedimento simplificado, que dispensa a entrevista pessoal, sem descuidar de outros aspectos importantes.
  6. Apesar de ser uma decisão administrativa que não possui necessariamente poder vinculante, o reconhecimento coletivo abre caminho para formação de precedentes promissores. A proposta anunciada pelo governo é adotar um procedimento simplificado de análise para os casos de pessoas atingidas pela situação na Venezuela. Não há jamais certeza sobre os passos futuros, nem qualquer segurança jurídica, mas há sinalização de que os casos pendentes tenham tratamento similar.
  7. Diante desse reconhecimento massivo, o pedido refúgio no Brasil se torna finalmente uma via real e sólida. A opção pela autorização de residência temporária (através de um Portaria criada especificamente para o fluxo venezuelano) por muito tempo era a mais atrativa, já que essa via permite acesso mais simples e rápido à documentação formal. Milhares de venezuelanos esperavam por uma resposta a seu pedido de refúgio há anos. Em alguns casos, desde 2015. Agora, finalmente os venezuelanos poderão escolher entre solicitar refúgio ou pedir autorização de residência temporária, sem ficar refém da necessidade por um documento rápido que lhes permita trabalho.
  8. Esta decisão foi possível porque houve o reconhecimento das narrativas feitas pelos venezuelanos sobre o que acontece em seu país, o que não é de nada desprezível no cenário político atual da região. Ora, reconhecer tantas pessoas como refugiadas não deixa de significar o reconhecimento sobre a violência generalizada que lhes foi imposta. E, sobretudo, reconhece que as pessoas têm o direito à proteção adequada. Desde fins de 2014, venezuelanos começaram a chegar ao Brasil com desejo de tornar público o que acontece naquele país: fome, violência, doenças e mortes evitáveis, perseguições, violações a direitos humanos, etc. E passaram a reivindicar ao Estado brasileiro, através dos pedidos de refúgio, o reconhecimento da crise humanitária instaurada na Venezuela. Uma crise que é simultaneamente humanitária, social, econômica e política.
  9. Agora, todas essas pessoas, por força de um ato estatal, ao mesmo tempo tão simples e grandemente complexo, e por força de um grande campo experimental, criado por tantos diferentes atores, terão maiores possibilidades de proteção. Isso significa que poderão mais facilmente ter acesso a diversos atos que compõem a vida cidadã: emprego, educação, alimentação, saúde, lazer. Além disso, passam a ter garantia a direitos próprios das pessoas refugiadas.
  10. Isso tudo ocorre após anos de muitas trocas, debates, reuniões, notas, madrugadas, estudos, telefonemas, almoços, e inumeráveis agenciamentos que ocorreram dentro do CONARE e em suas bordas. Ao longo destes anos, uma fértil rede se criou dentro e em torno deste órgão do governo e foi esta rede que, de certo modo, criou este campo experimental do qual emergiu a decisão. A decisão faz jus à tragédia vivida por esse conjunto de milhões de pessoas que fugiram da Venezuela. Faz também jus ao trabalho de construção técnico-político que tem sido feito no Brasil a partir dos árduos esforços e da cooperação entre atores da sociedade civil, dos órgãos de justiça (Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal), do ACNUR e de instâncias governamentais. Uma inteligência coletiva tecida e alimentada por afetação recíproca. São as alegrias da cooperação, como dizia Gabriel Tarde.
  11. Esta decisão não é uma exceção isolada, dentre importantes conquistas nas últimas décadas. O Brasil, além de contar como uma generosa Lei de Refúgio (1997), recentemente aprovou uma nova Lei de Migração (13.445/2017), com ampla participação da sociedade civil, enterrando de vez o antigo Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80); tem a Operação Acolhida (para os venezuelanos), bem como as soluções (embora tenham sido ad hoc) para proporcionar visto ou residência para algumas nacionalidades (haitianos, sírios, senegaleses e venezuelanos, dentre outros)
  12. Permanecem problemas e surgem novos desafios:
  13. a) Além de questões jurídicas merecedoras de discussão, é possível supor que muitos venezuelanos ficaram desapontados ou se sentiram injustiçados pela decisão, porque anteriormente receberam regularização migratória e não terão contemplado os seus pedidos de refúgio.
  14. b) A resposta positiva para os venezuelanos acontece num contexto repleto de ambiguidades e contradições. A atual gestão do governo tem assumido, cada vez mais, uma agenda de alinhamento com políticas internacionais de restrição a direitos de minorias, incluindo migrantes e refugiados, rompendo com o Pacto Mundial de Migração e editando normas que autorizam o rechaço sumário de solicitantes de refúgio considerados “suspeitos”. Nesta mesma linha, o CONARE revogou, ainda neste ano, o status de refugiado concedido há mais de uma década a três paraguaios, vítimas de sequestro e tortura. No clima de intensa polarização política e ideológica, o tema migratório tem sido, pouco a pouco, absorvido dentre aqueles utilizados como terreno para disputas eleitorais.
  15. c) O outro elemento, também expressão da governança (ampla) do Estado, é a precariedade das políticas de assistência e acesso a direitos destinadas aos pobres e vulneráveis. É preocupante o crescente e diário desmoronamento das política públicas voltadas para as minorias neste atual. Essa política impacta nas condições de possibilidade de integração local da população refugiada no país, incluindo os próprios venezuelanos reconhecidos como refugiados.
  16. d) Cabe ainda superar relevantes desafios para outros grupos de solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes. Dentre algumas problemáticas, há rara utilização de dispositivos importantes da Lei de Migração, como a residência por motivos humanitários, perduram e aumentam as restrições no acesso a vistos em alguns países (como relatam os refugiados da República Democrática do Congo) e no acesso ao direito de reunificação familiar, além de todos os problemas ligados à qualidade de atendimento nos postos migratórios.
  17. e) A ausência de uma política efetiva, estável e sólida de acolhimento combina com a raridade de estruturas que possam garantir assistência em diferentes níveis aos migrantes e refugiados. As instituições criadas com o objetivo de apoiar as pessoas mais vulneráveis – e que raramente respondem sequer a um nível básico de cuidados – excepcionalmente consideram a migração e os migrantes como um objeto de interesse. A resposta do Estado brasileiro é estável: provisória e precária.

Finalmente, e dentro desta oportunidade que se abriu, podemos dizer que há certamente muitos sorrisos e lágrimas de alívio de diversos venezuelanos. O fato mais importante é que os venezuelanos são protagonistas principais desta luta e desta conquista: 220 mil venezuelanos que entraram no Brasil foram capazes de fazer ressonância. Mais uma vez, a fuga das pessoas nos ajuda a animar os espíritos para as possíveis brechas de democracia, liberdade e vida que podemos inventar nesse mundo tão devastado por violência, guerras, espoliações, disputas improdutivas e expropriação de nossas forças criativas. Por tudo isso, a alegria dessa luta coletiva é transbordante.

Alguns links úteis para conseguir informações, dados e notícias sobre o tema:

 

  • https://oglobo.globo.com/mundo/governo-brasileiro-concede-status-de-refugiado-para-mais-de-21-mil-venezuelanos-24120213?fbclid=IwAR3BV7ct4p_Z6Gwk9WsE34HwB1moQBos2x-ps4Z8ja1ykmWRe0Yb-ckvBdo

 

  • https://r4v.info/es/situations/platform

 

  • https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTQ4MTU0NGItYzNkMi00M2MwLWFhZWMtMDBiM2I1NWVjMTY5IiwidCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDEzNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBiZSIsImMiOjh9

 

  • https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/07/Refugio-em-nu%CC%81meros_versa%CC%83o-23-de-julho-002.pdf
  • https://www.acnur.org/portugues/2019/07/25/governo-e-acnur-lancam-relatorio-refugio-em-numeros-e-plataforma-interativa-sobre-reconhecimento-da-condicao-de-refugiado-no-brasil/

 

  • https://www.unhcr.org/news/briefing/2019/12/5dea19f34/unhcr-welcomes-brazils-decision-recognize-thousands-venezuelans-refugees.html

 

  • https://oglobo.globo.com/mundo/onu-ja-compara-exodo-venezuelano-crise-migratoria-do-mediterraneo-23007586#ixzz5RCWO4YwK

 

  • https://g1.globo.com/mundo/noticia/brasil-registra-numero-recorde-de-solicitacoes-de-refugio-em-2017.ghtml

 

  • http://www.eb.mil.br/operacao-acolhida

 

  • https://www.unhcr.org/about-us/background/45dc19084/cartagena-declaration-refugees-adopted-colloquium-international-protection.html

 

  • Souza, Fabrício Toledo. “Gestão migratória no Brasil: rumo ao subdesenvolvimento: Revista Lugar Comum, 55. https://dev.integrame.com.br/lugarcomum/55/
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