DOSSIÊ UNINÔMADE 50 ANOS DO GOLPE
Chamada
Serão aceitos textos dissertativos, narrativos ou descritivos, em prosa ou verso, de 2.000 a 10.000 caracteres (sem espaços), sobre o tema proposto, e segundo a premissa explicada abaixo. Os textos aceitos serão publicados no site da UniNômade e serão integrados no dossiê da rede sobre o tema. As propostas de textos devem ser encaminhadas, até 30 de abril, ao e-mail: htaa1987@gmail.com
Premissa
Em 1º de abril de 1964, um golpe derrubou o presidente João Goulart, dando lugar ao regime dos generais, que torturou e matou opositores, amparado por um extenso rol de alianças com a burguesia nacional e internacional, incluindo aí o grande empresariado, ruralistas, financiadores e barões da grande mídia. Em 1985, voltou a assumir a presidência um civil, José Sarney, iniciando-se o período da redemocratização. A ditadura foi vencida pela mobilização social, mas não superada. A transição lenta e segura escamoteou a continuação de micropoderes e mecanismos institucionais que a ditadura criou e sofisticou.
Os coturnos continuam marchando nas favelas e periferias, como marcharam há 50 anos. Os mesmos meios de comunicação comemoram e dão sustentação política às invasões, relativizando todos os crimes de estado como “estado de necessidade” diante de uma ameaça maior. Um desdém idêntico por direitos, pela paz, pela vida. O complexo da Maré no Rio, por exemplo, está hoje invadido pela polícia militar e tropas federais, num acordo que envolve os governos estadual e federal, uma coalizão de PMDB e PT contra os pobres.
Jamais, na redemocratização, o morro e o asfalto reconheceram, sob a construção midiática da normalidade, uma generalização tão intensa das exceções perpetradas pela política nacional de segurança pública, destinada, a curto prazo, a blindar a Copa do Mundo e, a longo prazo, a garantir a paz do medo, para que os pobres possam continuar sendo explorados em sua riqueza e potência.
A memória dos anos de chumbo não está viva apenas nas lutas de quem enfrentou-a, tornou-a insustentável e terminou por derrubá-la, como também, em paralelo, está viva do lado do poder constituído, na insistência de mecanismos biopolíticos de controle social, repressão política e pacificação territorial. A pior ironia consiste na mudança de polo, no interior dessa memória viva, de forças políticas que lutaram contra a ditadura.
É impossível não ver em Amarildo, Cláudia, Douglas, Paulo Roberto, Luiz Estrela, nas prisões de Rafael Braga ou Caio Silva, uma linha de continuidade das torturas, sevícias e crimes cometidos em nome da segurança do país, fatos tão marcantes da exceção brasileira, e lamentavelmente atuais.
É impossível não rever a ditadura na criminalização e militarização da questão das drogas, enfrentada segundo uma lógica de guerra e do inimigo, um regime de terror, brutal e racista. No Rio, por exemplo, 41,5% das mais de mil favelas são comandadas por milícias que se confundem com o poder estatal, enquanto 56% estão dominadas pelo dito “tráfico”, que também nunca deixou de ser organizado pelo próprio estado. É impossível não revê-la nas prisões, nas partilhas, na íntima cooperação na ponta da cadeia dos negócios. Um fator central na luta contra a ditadura consiste, também, na mudança do paradigma ao redor das drogas, começando por sua inadiável legalização, transferindo da esfera da polícia para a da saúde pública.
A redemocratização não superou a ditadura: a resistência continua. Continua na auto-organização de coletivos político-culturais, assembleias horizontais e redes ativistas nas mais diversas pautas, táticas e formas de atuação. Continua também na multiplicação de narrativas alternativas, resistentes, que furtem da ditadura o privilégio da palavra, porque só as lutas podem gerar outra verdade e outra democracia. A democracia continua em disputa, e o golpe continua perturbando a vida comum, só podendo ser superado totalmente nas lutas e êxodos.
Parece haver cada vez menos distância entre ontem e hoje, entre os Vladimires Herzogs de 50 anos atrás e os Amarildos de nossa democracia sequestrada e sem corpo. Quando não acreditamos mais em coincidências e as metáforas ganham literalidade, aí a experiência brasileira de lutas pela democracia emerge, para além das armadilhas e impasses da “redemocratização”. A transição não pode ser a desculpa para, com a chantagem do menos pior, paralisar-se o poder constituinte, o mesmo que derrubou a ditadura dos generais e seus relações públicas da grande mídia.
Na era do capitalismo globalizado, a única transição que importa está na positividade de lutas e vida comum, essas que já estão gerando outra democracia nas entrelinhas desta.