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Depois do segundo turno: a terceira margem

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29 de outubro de 2018

Apenas constatar o tamanho do desastre é constatar o óbvio. É limitar-se ao desalento. Comecemos então pelo fim. A organização de um campo de resistência democrática tem por condição número um reconhecer não somente as ameaças, como também a ambivalência do resultado eleitoral. Particularmente, é preciso apreender a recusa em conferir uma quinta vitória ao PT e a Lula. Esta recusa nos indica que o desafio é estar no campo de lutas democráticas para além do petismo. A incapacidade de afirmar esse campo de lutas dissociado do PT e capaz de emergir como alternativa democrática à candidatura de Bolsonaro foi o que levou o antipetismo a reagrupar-se à direita do espectro político-partidário. Uma direita de novo tipo, permeada de elementos de extrema-direita, que fermentou ao longo dos últimos quatro anos. O sucesso do antipetismo não é somente eleitoral. A heterogeneidade do antipetismo encontrou na figura de Jair Bolsonaro a representação de um movimento realmente capaz de derrotar o PT e com enorme força na sociedade brasileira. Diante dessa constatação, não adianta condenar esse movimento, esperando que ele se esfume pela força do argumento racional e moral. Em vez disso, precisamos entender como pôde se tornar majoritário nos últimos anos, como ele funciona, o que lhe dá vitalidade, e então como lutar para desviá-lo de suas características autoritárias.

Temos, assim, duas tarefas complementares: 1. Apreender as resistências difusas, evitando as tentativas de mistificá-las através de caricaturas pseudo-heróicas inseridas no lugar das lutas. 2. Realizar uma reflexão de fôlego sobre a derrota de praticamente todas as tentativas de construir uma terceira via potente. A resistência que nos falta precisa estar em outro lugar, numa terceira margem que só as lutas e as políticas por um novo marco de proteção social podem constituir.

Depois de mim, o dilúvio. Entrever e criar possibilidades de resistência passa pela análise crítica dos últimos anos. Foi o sucesso da estratégia petista nesse período que, paradoxalmente, nos levou ao abismo. O nefasto resultado eleitoral é o desfecho do turno que começou em 2014, depois da pacificação do levante de junho de 2013. Ao longo dos últimos 5 anos, grande parte do campo da esquerda negou-se a fazer a crítica ao PT e ficou no conforto aparente das soluções que o Lulismo lhe oferecia. Lula e o PT foram assim montando uma política de chantagem sistemática. Defender o PT deixou de ser uma opção, e sim uma obrigação política, moral e civilizatória. Essa estratégia é organizada a partir de um duplo dispositivo: por um lado, toda força alternativa ao lulismo é inviabilizada; por outro, o pior é produzido incessantemente, numa piora interminável. Inicialmente, a operação foi pacificar o ativismo que ocupou as brechas do levante de junho de 2013. Se o verde amarelo passou a ser obrigatório na “Copa das Copas” (julho de 2014), a partir do ano seguinte se tornaria imoral: o estigma de “coxinha” colou na pele de todo contestador do “bom governo do PT”. E Graças ao marketing baseado em fake news de outubro de 2014, destruiu-se a candidatura de Marina Silva, por ela, eventualmente, representar uma alternativa, impondo Aécio Neves como o candidato ideal ao qual se opor. Em seguida, transformou-se o teatro da negociata do impeachment em “Golpe”. Depois de diluir a mobilização crítica em um oportuno e instrumental frentismo de refundação (Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo, sempre com Lula à frente) e acompanhar com condescendência a emergência de candidaturas que deveriam “unificar” a esquerda, Lula e o PT passaram a rasteira na única delas que tinha que tinha chances de ter algum peso eleitoral: Ciro Gomes. Nas eleições de 2014 era compulsório votar, mesmo que sob a boa consciência do voto crítico, contra a “volta do neoliberalismo”. Durante o impeachment de 2016, a mobilização passou a ser contra nada menos que um golpe. Em 2018, o voto obrigatório no PT virou um voto da “civilização contra a barbárie“. Esse mecanismo irresponsável permitiu que a urgente crítica ao PT fosse sempre adiada pelas “urgências” que o próprio PT produziu em série. Nunca é “momento de criticar o PT”.

Até que o lobo chegouDe um estelionato a outro, a esquerda foi relativizando a corrupção, operando com cinismo as fake news e tratando como normal se aliar a candidatos “golpistas” (como Eunício Oliveira e Renan Calheiros) para conquistar votos no sertão nordestino, e assim “levar” a quinta eleição nacional seguida (sem sequer uma aliança ou coalizão). Desta vez, o Lulismo viu-se diante do reflexo de si mesmo. Não a transparência desarmada de Marina Silva, e nem a malandragem de Aécio Neves, e sim um movimento real, capaz de dar voz à recusa popular ao PT e de mobilizar eficazmente o mesmo volume de deturpações: o feitiço virou contra o feiticeiro. Para não ser responsabilizado pelos erros e por seus crimes, o PT continuamente denunciava a chegada do lobo. Finalmente, o Lobo apareceu e a maioria escolheu o próprio lobo: Haddad e o PT sequer conseguiram aparecer para a maioria dos eleitores como uma verdadeira alternativa diante de um adversário assustador. A novidade que parecia ter sido exorcizada em 2013, ressurgiu e se impôs. No entanto, não é o PT que corre o risco de ser devorado pelo Lobo, mas a multidão dos pobres e minorias, a começar pelo Nordeste que se manteve fiel ao PT.

 Do mundo das lutas para a luta de mundos: as guerras culturais. A auto-vitimização que permite ao PT “julgar os outros e não ser julgado” tem outra consequência: a mobilização em defesa da “Vítima” feita por um grande número de intelectuais progressistas (professores, agentes culturais, artistas), através de uma perspectiva distorcida: não são mais as lutas para entender o mundo, mas a perspectiva do PT que define as lutas. Essa inversão falsifica a materialidade das lutas em guerras culturais que a nova extrema direita mostrou saber conduzir melhor do que ninguém. Desta perspectiva, a introdução da política de cotas para negros e pobres nas universidades públicas deixou de ser o produto do movimento autônomo dos pré-vestibulares e passou a ser uma gentil concessão do lulismo; o Bolsa Família deixou de ser visto como embrião de reconhecimento da potência produtiva e subjetiva da multidão dos pobres, e passou a ser uma dívida infinita que os pobres teriam com o paternalismo de Lula; o financiamento dos pontos de cultura tampouco deixou  de ser apreendido como uma ruptura do clientelismo que permite reconhecer a autonomia criativa difusa no território e passou a ser um subsídio petista ao qual é preciso reiterar lealdade. Na esteira dessas inversões, chegamos ao paroxismo de mobilizar questões de garantismo jurídico e do abolicionismo penal para criticar as operações de repressão à corrupção e para defender os dirigentes de um conglomerado partidário que durante 13 anos deixou multiplicar, de maneira exponencial, a população carcerária em condições inaceitáveis.

O resultado é evidente: ao passo que a hegemonia da esquerda esvaziava a autonomia dos movimentos o campo das lutas foi paulatinamente sendo capturado pela direita. Essa tendência foi evidenciada pela greve autônoma dos caminhoneiros em maio de 2018, já denotando o descolamento total das redes capilarizadas de politização em relação aos aparelhos de esquerda. Pior, as lutas dos movimentos negro, indígena, LGBT passaram a ser qualificadas pelas normas abstratas que definem esses direitos e não o contrário; isto é, passaram a ser definidas antes pelo guarda-chuva partidário do que pelo protagonismo social que elas exprimem e pela capacidade de auto-organização de que são capazes.

A onda global e o Brasil. A vitória de Jair Bolsonaro não significa que todos os votos sejam de extrema direita. O pior dos erros seria qualificar todos os seus eleitores de fascistas. Precisamos entender com cuidados suas componentes. Esse trabalho será fundamental nas lutas por vir em defesa da democracia. A nova direita, no nível global, aparece hoje como um movimento antiglobalização que promete proteção por meio da construção de novos muros e se organiza em torno da produção de bodes expiatórios: os imigrantes, as diferenças e até a China. Para isso, a nova direita usa as contradições e limites da globalização (como a perda de estatuto das classes médias e dos trabalhadores industriais) por meio de uma polarização sistemática e criação de falsos conflitos. As guerras culturais são, pois, dispositivos fundamentais de mobilização social e eleitoral da nova direita. Quando olhamos para a situação no Brasil, podemos constatar elementos comuns e ao mesmo tempo algumas especificidades. Em comum, temos a prática das guerras culturais e as propostas em termos de segurança. Ao mesmo tempo, a polarização aqui não precisou ser inventada pela nova direita, mas foi fornecida de graça pela lógica irresponsável e demagógica da esquerda em defender o indefensável: sua corrupção generalizada, por um lado, e a gravíssima crise econômica, por outro. O primeiro desafio, portanto, para analisar o fenômeno denominado “nova direita” é inseri-lo nessa série real de acontecimentos, e não o tratar como uma simples entidade abstrata que emergiria do conservadorismo profundo existente no Brasil ou de uma manipulação em massa organizada por empresários mal-intencionados. Esse fenômeno também deve ser explicado por uma mútua implicação destrutiva advinda da polarização. Enquanto a esquerda passou a se caracterizar cada vez mais por seus símbolos e bandeiras (a trincheira vermelha), grupos conservadores como o MBL passaram a pautar uma cruzada moral que identificava na própria esquerda os elementos de degeneração social, familiar, cultural, etc. Um dos resultados danosos dessa operação, alimentada pelos dois lados foi a identificação de todas as lutas minoritárias com o desgaste profundo do lulismo, armadilha na qual estamos presos ainda hoje. Outra dimensão foi o crescimento de tendências militaristas e autoritárias que passaram a representar esse ideal de moralização do Brasil a partir da erradicação de tudo aquilo que se identifica com a esquerda, incluindo os modos de vida minoritários.

O fenômeno Bolsonaro, inexpressivo em 2015, pode ser identificado, no entanto, a partir de quatro vetores que surgiram nesse ciclo: 1. à tendência do impeachment de se apresentar como uma grande estratégia de “salvação” de todas as elites políticas e partidárias, com respaldo de uma parte do STF; 2. à busca de uma nova ordem e um novo pacto diante do aprofundamento das dimensões econômico-sociais da crise, mesmo por meio da constituição de uma nova autoridade feita “por cima”; 3. à resposta e veto às campanhas exasperadas e falsas protagonizadas pelo lulismo em sua tentativa de sobrevivência, e ao cinismo constitutivo do governo Temer e seus aliados; 4. ao sucesso do front moralizador que identificou as lutas das minorias à esquerda. Precisamos avançar nessas reflexões e pretendemos apresentar logo alguns desdobramentos de análise.

Resistências. Retomando o início do texto, afirmamos que a constituição de um campo de resistência democrática carece, em primeiro lugar, de perscrutar, participar e investir em lutas que incluem também a recusa à hegemonia do PT e que possam desconstruir a falsa polarização. Assim, trata-se não apenas de aceitar, mas de acelerar o processo de esvaziamento dos signos e tendências gregárias e autocomplacentes da esquerda, para mergulhar nas cartografias das lutas, na atenção aos desejos que compõem as nascentes subjetivas deste momento.

29 DE OUTUBRO DE 2018

 

 

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