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Deus e o Diabo na Terra do Sol, 50 anos depois: reflexões para os próximos 50 anos

O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha foi recentemente exibido na Birkbeck University, em Londres. O debate que seguiu demonstrou sua intensa atualidade e é aqui aprofundado à luz da leitura de O Homem Revoltado de Albert Camus.

 

Por Luca Revoltado

 

Este filme dirigido em 1964 por Glauber Rocha, possui uma mensagem bastante importante, não só para sua época (precursora dos movimentos de 1968) mas também agora, em tempos de extremismos e divisões (materiais e intelectuais). Tempos supostamente dialéticos de antagonismos, para ser mais preciso.

Em uma primeira análise do filme, mais ampla, percebemos que ele é todo baseado e trabalhado ao redor de dualidades e oposições, tal como a sociedade brasileira. Primeiramente, o título faz diretamente referência a certa dualidade religiosa: Deus e o Diabo se encontram no sertão. O segundo fator mais explícito é o próprio fato do filme ser realizado em preto e branco (por razões econômicas também, eu imagino). Além desses dois fatores mais explícitos e fáceis de captar, há uma longa série de imagens que jogam com essa ideia: Manoel segura a faca e o cristo em uma determinada cena, Corisco divide sua face em duas com seu punhal (conferir a imagem icônica do cartaz do filme), Antônio das Mortes e João o Cego são separados por uma viga de madeira, entre outras imagens.

Os próprios personagens são claramente divididos em suas personalidades e no que eles representam e acreditam. Manoel evolui de trabalhador para assassino, depois de beato para cangaceiro e, no final, ele é um homem que busca um recomeço. Sebastião é um fanático religioso, à imagem de Antônio Conselheiro, que busca os Céus (ou a Ilha) realizando milagres e redimindo pecadores com o “sangue dos inocentes”. Ele representa esses típicos personagens criados pela miséria e religiosidade do Nordeste, que se criam a partir de uma oposição à Igreja oficial e que acabam virando sua própria encarnação. Assim como Antônio das Mortes explica: ”Padre pode achar que Sebastião tem parte com o Diabo, mas eu acho que ele tem parte com Deus também”. Sebastião segue a mesma lógica do Padre que lê sua sentença: “Somente depois que você cometer um crime maior pode ser perdoado pelos crimes que cometeu”. Antônio é um homem da “lei da selva” que mata cangaceiros em nome de sua justiça. Corisco e os cangaceiros representam o outro lado da miséria, que não é o religioso, mas sim o da luta e o da violência. Sua missão é defender o povo de onde eles vieram, mas são movidos por vinganças pessoais e não têm medo de matar, estuprar e torturar seus supostos inimigos. Eles acreditam que encarnam São Jorge, o santo do povo, lutando contra o Dragão da Miséria.

O filme de Glauber Rocha é portanto composto por uma longa sequência dessas imagens cheias de contrastes e complexidades, ele é muito mais do que um simples filme de dualidades. Todavia, ambiguidade não é algo raro no cinema se considerarmos a obra de outros cineastas. Podemos usar como exemplo a ambiguidade ácida (e temperada de humor negro) de Kubrick (Full Metal Jacket, Lolita, Dr. Strangelove,etc.) ou até a estranha familiaridade de David Lynch (Twin Peaks, Mulholland Drive, Rabbits, entre outros), embora seja possível ver algumas semelhanças entre o humor ácido de Kubrick e de Glauber Rocha. Ele pode ser visto, por exemplo, tanto nas cenas finais de Deus e o Diabo na Terra do Sol quanto nas de Full Metal Jacket.

 

A dualidade de Deus e o Diabo na Terra do Sol também é interessante pelo fato de supor um terceiro aspecto que é explicitamente anti-dialético. Primeiro, é preciso entender que esse “terceiro aspecto” não é nada parecido com uma “terceira via”, nada disso. Com efeito, esse terceiro aspecto, sem nome, é o simples fato que essa dualidade, na verdade, pressupõe uma multiplicidade dentro do próprio indivíduo. Se tomarmos por exemplo todas essas imagens ambíguas e divididas citadas anteriormente, o que há em comum em todos elas? O que existe entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo? Há o Homem. O homem é o encontro desses lados. Mas não se trata de um ser dividido em dois, mas sim do encontro de uma multidão de faces. Alguns podem argumentar que no filme não ha o coletivo, como é o caso de Pasolini, por exemplo. Sim, de fato não há, mas não porque Glauber ache o coletivo desinteressante, mas sim porque, no filme, ele não precisa dele. Ele não precisa de uma representação clássica de um coletivo de homens porque cada indivíduo apresentado, protagonista ou figurante, é um coletivo. Um coletivo de experiências, experiências de violência, de miséria, mas também de felicidade e amor.

E assim chegamos ao segundo ponto interessante dessa dualidade “glauberiana” que é uma teoria-prática anti-dialética. Pois, o filme mostra que Tese, Antítese e Síntese não são entidades separadas na História, mas as três se encontram, ao mesmo tempo, no Homem. O Homem não é um ser histórico como afirmou Hegel, e depois Marx e Nietzsche. E é nesse ponto, anti-dialético e anti-histórico, onde Glauber insere uma alternativa de Revolta. Dessa forma, Glauber Rocha se aproxima da concepção de revolta de Albert Camus, autor de “O Homem Revoltado”, livro (equivocadamente) muitas vezes esquecido e até criticado por fanáticos de todos os espectros políticos.

Essa concepção é explicitamente anti-dialética e uma das maiores críticas do Hegelianismo e seus afluentes (Marx e Nietzsche) assim como o Niilismo. Colocando em poucas palavras, o livro explica como a Dialética de Hegel, na verdade, cria uma utopia que “substitui Deus pelo futuro”. De fato, a lógica dialética da tese e da antítese cria uma narrativa profética à espera de um futuro. Assim, a dialética impede a ação e cria um fatalismo perigoso. Pois, como Camus explica, o futuro é a única coisa que o Mestre está disposto a dar para seu escravo pois a promessa, a profecia de um futuro melhor é o próprio fatalismo da condição do escravo que deve esperar para que a História se realize. Além disso, ao longo dos anos, a profecia pode se tornar uma garantia para alternativas autoritárias (que sequer deveriam existir como hipóteses) se tornarem concretas.

Ainda mais, é preciso marcar a importância dessa mensagem de Camus no mundo do pós-segunda Guerra Mundial que simboliza, em todas as formas de artes, o auge do horror e do absurdo do mundo ocidental (e oriental, como nas animações japonesas) e no começo da Guerra Fria. Camus desenvolve sua própria definição de revolta que é contrária ao infinito “devir histórico” da revolução marxista. Sua ideia de revolta se define pela “rejeição de ser tratado como coisa e ser reduzido à simples história”. A revolta, ao contrário da revolução que demanda uma “redução ao estado de força histórica”, é uma verdadeira afirmação do “ser dividido que nós somos”. A História e o Homem não são simples nem dialéticos.

Assim, a lógica revoltada de Camus, que se encontra no filme de Glauber, é o que necessitamos hoje em dia, em um mundo de antagonismos. Pois, como o filme demonstra, o ser humano é um ser composto por várias facetas (assim como explica Camus, a polícia política do século XX demonstrou a “física da alma”), que não podem ser resumidos a seres históricos, dialéticos. Assim, a própria existência de antagonismos em certos grupos humanos é negada. Com a guerra e a violência generalizada, não apenas no Brasil, mas em todas as partes do mundo, precisamos entender que antagonismos são perigosos e propícios a nos dividir, justamente quando precisamos nos unir para criarmos alternativas melhores, e não alternativas “menos piores”. O ser humano é um ser complexo e não simplista, sendo o simplismo a mais perfeita base para o autoritarismo. Se me permitem usar um pouco de profecia, se continuarmos em caminhos dialéticos, antagonistas, proféticos, as probabilidades (já altas) de nossas supostas democracias se tornarem totalitarismos aumentarão à medida da nossa divisão. Deus e o Diabo na Terra do Sol, afirmando a complexidade junto com a capacidade do ser humano de fazer tanto o bem quanto o mal, representa visualmente uma alternativa possível.

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