Por Bruno Cava, 02/01/2023
Naquele ano, Glauber Rocha lançou “Barravento” e Nelson Pereira dos Santos, “Boca de ouro”; João Gilberto, Luiz Bonfá e Sérgio Mendes apresentavam o novo som (a bossa nova) ao Carnegie Hall, e Tom Jobim preparava o seu primeiro álbum de estúdio; enquanto Clarice Lispector escrevia “A Paixão segundo GH”. A capital do Brasil havia há dois anos se deslocado para Brasília, o presidente em exercício era João Goulart e Celso Furtado assumia o Ministro do Planejamento. A Seleção voltava da Copa do Chile com a taça do bicampeonato na bagagem e o Santos Futebol Clube ganharia o seu primeiro título mundial, contra o Benfica.
Nesse ano, são exibidos dois filmes cuja temática é a formação do futebol brasileiro: “O Rei Pelé” e “Garrincha, alegria do povo”. Os dois filmes foram restaurados e disponibilizados gratuitamente no Youtube (link nos comentários).
O rei Pelé
Cinebiografia ficcionalizada do rei do futebol captada quando ele tinha apenas 22 anos. Dirigido pelo argentino Carlos Hugo Christensen, o filme conta com roteiro de Benedito Ruy Barbosa, diálogos por Nelson Rodrigues e, além dos atores Lima Barreto e Laura Cardoso, apresenta Pelé interpretando a si próprio em dois estágios de sua vida.
A narrativa linear e convencional situa Pelé como predestinado: a mãe-de-santo Raimunda anuncia que o menino que acabara de nascer um dia será aclamado como o “Rei do mundo”. Daí por diante, a sina acompanha a trajetória do bom-moço, dedicado, autoconfiante de seu encontro marcado com o destino. Todos os percalços que vão aparecendo, inclusive um episódio de racismo (segundo Pelé, a única vez), são ultrapassados pela diligência e a perseverança do atleta, até alcançar a precoce consagração, aos dezoito anos.
Em síntese, Pelé sempre foi rei e nunca perderá a majestade.
Garrincha, alegria do povo
Uma obra prima do Cinema Novo brasileiro, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade. Não há muito a acrescentar à recepção deste documentário de 1962, profusamente escrutinado e laudado pela crítica nacional e internacional. Já na sequência dos créditos iniciais, anuncia o princípio construtivista da narrativa, que se pautará pela montagem de material de arquivos. O fundo sonoro de máquina de escrever, com que os créditos são recortados, denota a preferência pelo tom jornalístico, aspecto de crônica, ou seja, alinhado à proposta estética modernista, atenta aos ‘faits divers’ e às notícias populares.
Quem espera um filme sobre como samba, capoeira, mulatice e outras notas brasileiras convergem na figura dionisíaca de Garrincha, vai se surpreender. O filme é moderno como o futebol, esporte de massa e de mídia de massas. As sete filhas do jogador, todas negras, são filmadas dançando um rhythm-and-blues, ritmo americano que à época era moda no Brasil. As peladas na praia e nos terrenos baldios contrastam com o som do trânsito da cidade, partilhando o espaço com andaimes e prédios em construção.
País em construção, modernidade em construção, verdade em construção, eis aí os delineamentos para o futebol e o cinema brasileiros, o Cinema Novo e o Futebol Novo, que vinham despontando desde o ano mágico de 1958.
Quando o filme expõe a realidade social de Pau Grande, o pequeno distrito industrial no subúrbio do Rio de Janeiro de onde veio Garrincha, pontua como o craque nasce desvinculando-se dos ritmos e das disciplinas da fábrica. À beira de ser despedido em várias ocasiões pela empresa, Garrincha salva-se graças à arte do futebol, elevando-se sobre a realidade de privações, de pobreza e da condição operária que se lhe apresentava como caminho natural.
Ao contrário de Pelé, Garrincha é o herói torto, anti-ortopédico, indisciplinado até o osso. Devido às diversas deformidades em ambas as pernas, o médico explica que, do ponto de vista clínico, Garrincha não deveria nem mesmo entrar em campo. O preparador se ressente que Garrincha não respeita o controle de peso e se apresenta acima da meta definida. O jogador também é reativo aos exercícios físicos, não tolera bem a internação obrigatória, a título de concentração pré-jogo. Garrincha tampouco obedece às orientações explícitas de Aymoré Moreira, o técnico da seleção de 1962, se recusando a permanecer colado na linha lateral, como se esperaria de um ponta-direita ortodoxo. Porém, graças à desobediência e ao improviso incessante, ao flutuar para o centro do campo, sobrepor-se a outras posições e desarrumar o esquema tático, a seleção de Garrincha consegue dar a volta por cima e superar o desfalque de Pelé, contundido no segundo jogo da Copa.
A parte mais interessante do documentário está mais ao final, na organização e sequenciamento dos registros de jogos do Brasil em diferentes Copas do Mundo. A montagem não hesita em reconstruir a verdade segundo olhar crítico próprio, por meio de sucessivos contrastes formais e de conteúdo, inclusive com inversões de cronologia. Por exemplo, o filme primeiro mostra os jogos vitoriosos da Copa de 1962, no compasso da evolução do protagonismo de Garrincha, mas conclui com a derrota para o Uruguai na partida final de 1950, doze anos antes, a “tragédia do Maracanã” em que Garrincha nem sequer jogou.
A seguir, depois do silêncio que se abateu no Maracanã depois do gol decisivo uruguaio, o filme apresenta uma sequência com as descargas emotivas dentro e fora de campo, explosões, tremores, aflições, brigas e êxtases, com destaque para os close-ups da torcida na geral: rostos marcados, desdentados, feios, brancaleônicos. A sequência termina na catarse, a desanuviação das paixões da multidão, o fim do espetáculo do futebol, numa longa cena do estádio vazio, que finaliza o documentário.
Do conjunto, não é difícil depreender esboços de investigação sociológica e comentário crítico sobre o futebol brasileiro, enquanto elemento de construção nacional e popular.
Em “O Rei Pelé”, filme edificante, se delineia a trajetória intemporal, típica de poesia épica, do oráculo aos feitos gradiosos, em versos com metro único e forma narrativa linear. Já “Garrincha, alegria do povo” é constructo histórico-social, obra de Cinema Novo, que tateia a formação do futebol brasileiro através de um herói popular, decompondo o mito em suas tensões e conflitos irresolvidos, por meio do que elabora sua visão da modernidade brasileira, interceptada naquele ano de 1962.
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