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Entremilênios além do progressismo

Por Universidade Nômade | editorial da Revista Lugar Comum n.º 50, setembro de 2017

A primeira edição da revista Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia – foi publicada no Rio de Janeiro, em março de 1997. Passaram-se vinte anos[1]. A Lugar Comum inaugurava então o seu projeto contando com cinco seções, além do editorial e das resenhas de publicações abertas a colaboradores: desde Conjuntura até Navegações, passando pela Cultura, Ciberespaço e relações entre Corpo & sexualidade. Além das produções de jovens intelectuais brasileiros, – para citar, entre outros: Karl Erik Schollhammer, Micael Hershmann, Beatriz Jaguaribe, Alexandre do Nascimento, Gerardo Silva, Leonora Corsini, Bruno Cava, Alexandre Mendes, Barbara Szaniecki, Peter Pál Pelbart, Mauricio Lissowsky, Fabricio Toledo – a revista divulgou trabalhos de autores internacionais, na época poucos conhecidos por aqui: Michael Hardt, Giorgio Agamben, Yann Moulier Boutang, Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Richard Stallmann, Carlo Vercellone, Judith Revel, Gigi Roggero, Sandro Mezzadra, Matteo Pasquinelli, Carlos Henrique Restrepo, Anna Curcio, Rosana Reguillo, Christian Marazzi, André Gorz, Harry Cleaver, Thierry Baudouin, Joaquin Herrera Flores, Paolo Virno, entre outros.

Melting pot

Podemos assim dizer que esta revista introduziu no Brasil uma série de debates inovadores: sobre as transformações da globalização no século 21, – a matriz de análise do Império[2], o ciclo alterglobalização de lutas marcado pelo zapatismo e pelos movimentos de Seattle e Gênova, o globalismo dos Fóruns Sociais Mundiais e as tensões entre governos e movimentos, – sobre o funcionamento flexível, movente e pós-estrutural do capitalismo contemporâneo, – as suas externalidades negativas e positivas, a lógica do valor no capitalismo cognitivo, a hegemonia social do trabalho imaterial, as novas formas de exploração com a financeirização geral da vida e captura maquínica da atenção (cérebros at work!), – sobre as relações dinâmicas entre estado, direito, violência e vida, – a noção de “campo” em Agamben[3] e Negri, o biopoder no entrecruzamento das resistências biopolíticas, as polivalências da mestiçagem (como no conceito de métissage, de Édouard Glissant[4]), a guerra como modulação dos fluxos de força produtiva e migração, os direitos humanos e a criação dos direitos, – sobre os aceleracionismos, sobre cidades, revolução urbana, metrópoles e produção do espaço e sem esquecer os dossiês monográficos, a partir do Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Felix Guattari[5], sobre a obra de Michel Foucault, do jurista espanhol José Herrera Flores. Os aportes internacionais serviram de ingredientes para um banquete antropofágico de produções no Brasil, um crisol para novas abordagens de pesquisa, inovações metodológicas, hipóteses-máquinas, conceitos-motores, problemas-dínamos colocados em movimento por inquietações locais e globais, impulsos nacionais e transnacionais, de movimento ou institucionais, questões teóricas e práticas, focos acadêmicos e militantes, entre a ciência social e a antropologia, entre saberes menores e a história da filosofia, a estética da multidão e a micropolítica, a arte e a cultura, entre devir-pobre e devir-índio, entre devir-Brasil do mundo e devir-mundo do Brasil[6]. Em conclusão, um agir comum e um pensar povoado, proteiforme, segundo um continuum de invenção no qual as singularidades transitam sem uma forma fechada, contornos definitivos ou substâncias facilmente rotuláveis – a medio raggio, para falar como o operaísta italiano Romano Alquati.

As três grandes fases da revista

Ao longo dos vinte anos e dos 50 números, a Revista continuou ousando na forma e no conteúdo, passando também por inflexões e rupturas em suas linhas temáticas, teórico-políticas e estéticas. Podemos resumir esse vasto trabalho em três grandes fases, cada uma correspondendo a uma tônica ou variação editorial. Traçamos o recorte de periodização da seguinte maneira: a primeira fase corresponde ao período de 1997-2003, uma segunda fase entre 2004 e 2010 e a última que vem desde 2011 até hoje, sendo que da edição n.º 44 (maio de 2015) em diante a revista contou apenas com a versão online.

A primeira fase abriu um horizonte de reflexão política e teórica com o fito de interagir com os aportes críticos internos à viragem ao pós-moderno (no plano filosófico), pós-industrial (no plano econômico) e pós-fordista (no da sociologia do trabalho), rastreando prospectivamente por subjetividades dentro e contra à nova configuração capitalista da globalização. Isto é, na perquirição pela subjetividade imanente e antagonista, depois da queda do muro de Berlim e do esfacelamento da geopolítica da Guerra Fria. Nesse desvio mínimo entre imanência e ruptura, em meio à produção de subjetividade do trabalho vivo, entre o já está e o ainda não, respiraram os nossos problemas.

A segunda fase acompanha a emergência do “Laboratório Sul-Americano” como terreno privilegiado para a pesquisa das tendências constituintes dentro e contra. Em particular, no longo ciclo do zapatismo deflagrado com a insurreição local e global em Chiapas, 1994, ao que se seguiram as ruas conflagradas, los piqueteros e os panelaços do levante argentino de 2001 (lembrado pelo grito que se vayan todos), as lutas populares dos bens comuns pela água e pelo gás na Bolívia (2000 e 2003), a rebelión de los forajidos no Equador (2005), e a instauração dos novos governos ditos progressistas, cujo declínio se iniciou no começo da década seguinte e terminou no esgotamento e finalmente desmoronamento, a partir de 2015. Nessa fase, a Lugar Comum passou a ser produzida pelo Laboratório Território e Comunicação (LABTeC-PGCOM-UFRJ) e pela Rede Universidade Nômade (a quem foi dedicada uma nova seção na revista) e a estratégia editorial – para o bem e para o mal – passou a apostar na existência de brechas e oportunidades que o momento progressista dos governos no continente, – em particular com o chamado “lulismo” brasileiro, que articulou programas sociais e a potência dos pobres, – parecia fender em relação ao bloco de biopoder que governa a região desde sua gênese no colonialismo e no capitalismo. Tais fissuras, reconhecíamos, nunca deixaram de ser minoritárias e diagonais, porém, mesmo assim, o fato é que possibilitaram a passagem de jatos de trabalho vivo e produção de subjetividade, a alta pressão, elevando o barômetro da composição de lutas e de classe a índices inéditos, como que ativando o paradoxal positivo da pobreza – num país em que ela sempre foi mantida confinada ou subsumida pelos dispositivos de controle.

De 2011 até hoje, em sua terceira e corrente fase, a revista abraçou o seu próprio o êxodo, libertando-se progressivamente das âncoras que, menos do que conjuntos de ligações com as subjetividades antagonistas, provocavam a um anquilosamento do agir comum e do pensar. Seu primeiro sintoma foi a denúncia do fechamento das citadas brechas, especialmente quando ficou clara a linha estratégica do progressismo latino-americano para as possibilidades abertas pela crise dos subprimes, com o aprofundamento do aparelho dual de neodesenvolvimentismo e neoliberalismo, seguida da transformação do Rio de Janeiro no laboratório das novas tecnologias de poder (a seguir nacionalizadas) e o avanço do agrobusiness e da mineração como ponta-de-lança das políticas estratégicas. Tudo isso atingiu o ápice, tornando o ar do governismo brasileiro irrespirável, com o primeiro mandato de Dilma Rousseff no governo federal, o signo central de um fechamento. Dilma encerra em sua pessoa pública a dimensão unilateral, autoritária e monovalente, que exprime escolhas conscientes e estratégicas do governo e do partido, e que terminou por arrastar os sedimentos virtuosos e conquistas dos anos anteriores à vala comum do biopoder. Para não afundar junto com o navio do lulismo, a revista traçou várias linhas de fuga que, de edição em edição, conduziu-nos ao terreno da invenção radical, atrás de novos possíveis e encetando outros panoramas conceituais e metodológicos. O levante de Junho de 2013 no Brasil foi, afinal, decisivo para acelerar esse processo, pois dotou a pesquisa da carne das lutas e a livrou-nos de quaisquer amarras que anteriormente pesavam contra seus sobrevoos por outras realidades. No fundo, os textos publicados na Lugar Comum já sinalizavam a afluência de novas forças globais e locais que poderiam ressoar naquele evento de grandes proporções. Em certa medida, lateralmente, a produção teórico-política da revista participou do levante em sua gênese de movimentos e tempos, ou como diria Mario Tronti, “não o previmos, mas ajudamos a organizar.”

Quatro editoriais-manifesto

São quatro textos coletivos que serviram de balizas ao longo dos caminhos e descaminhos da Lugar Comum, nesta última fase. Em “Revolução 2.0” (nº. 33-34, de agosto de 2011) fazia um balanço das insurreições de Túnis, Cairo e Madri, enquanto explosão de um novo ciclo desencadeado pelas revoluções árabes e pelo Movimento do 15-M, que à época já se disseminavam heteroclitamente por mais de 40 países. Mas também uma avaliação das lutas dos operários das barragens de Jirau na região Norte, uma resistência interna aos canteiros de obra do Brasil Maior. Vale lembrar que, num clima de otimismo governista, a coalizão no poder conjugava no seu discurso de propaganda o reencontro do Brasil com as promessas milenaristas da nação do futuro (a Eldorado) e a grandiloquência épica das narrativas de um povo nacional em formação, como se a hora tivesse finalmente chegado para o país do atraso.

O manifesto Tatu or not Tatu, publicado como editorial da edição dupla (n.º 35-36), em abril de 2012, foi uma primeira estação ao longo dessa fuga, para além do lulismo, do esquerdismo progressista e sua ordem do discurso. O artigo reivindica a alta antropofagia do modernismo oswaldiano e a linha simbioticista do tropicalismo, ligando-se a movimentos em franco êxodo em relação aos governos e entremeando as análises de necessárias provocações dolorosas àqueles que, por inércia simbólica ou conforto do pensamento, permaneciam ligados a processos políticos em estado de rigidez mórbida. Tudo para que não gangrenássemos junto. Mas o ponto de não retorno se deu na decisiva edição de n.º 40, logo depois das jornadas de junho de 2013, atravessados por suas intensidades ofegantes e plenitudes drásticas. Nesse número, o editorial se perguntava: “O PT se reduziu a um partido da ordem e pela ordem?”. A referência era, evidentemente, o Partido da Ordem francês que reuniu todo espectro político-representativo, à esquerda e à direita, para esmagar qualquer traço das jornadas de junho de 1848, na Paris da Revolução Proletária[7].

Naquele momento, se afirmava categoricamente não só que as cada vez menores diferenças entre as forças políticas da coalizão de governo se anulavam por completo na hora de lidar com o poder constituinte, ocasião em que se formava um trator repressivo de práticas e discurso; como denunciava a falsa polarização (especialmente no fenômeno de red washing do “voto crítico”) que, oposta em bloco contra o levante da multidão, operou as sucessivas reacomodações estritamente internas ao poder constituído: seja a tentativa do ajuste por Dilma em 2015, seja o impeachment de 2016, seja o programa Ponte para o Futuro de Temer. Três momentos essencialmente da mesma coisa: a jornada de autosalvação e autoimunização da casta de políticos, empresários e banqueiros que opera a máquina orçamentária do estado brasileiro. O impasse fatal do governo progressista foi alcançado ao não ter apostado numa revitalização organizativa e democrática quando podia, isto é, quando as brechas institucionais, os arranjos virtuosos com a multidão e as margens de ação lhe franqueavam outras opções, especialmente ao longo dos “anos dourados”, na segunda metade da década de 2000. Em vez disso, as suas opções conscientes e estratégicas o levaram cabalmente à posição de antípoda das novas forças que irromperam em Junho. O resultado nós sabemos: o governo e a sua esquerda leal se postou na contramão histórica da única energia cinemática que poderia restabelecer a dinâmica entre potestas e potentia: o próprio poder constituinte. Para piorar, no ano eleitoral de 2014, o governo Dilma e o PT consolidaram uma intepretação reativa e paranoica dos levantes, agravando o que já estava grave e contribuindo para que a ocasião antipolítica e constituinte de 2013 se convertesse integralmente no momento antipetista e destituinte de 2015-16. O golpe que não houve, no fundo, foi um peteleco para um edifício sem bases sociais, econômicas ou políticas.

O verdadeiro momento de ruptura foi 2013 e não 2016. A leitura estadocêntrica, que se coloca na perspectiva eleitoral de ocupação de mandatos, insiste em ver em 2013 a pré-história da queda do governo do PT em 2016. É certo que o levante tem a ver com 2016, mas a relação entre um e outro não é de causalidade histórica, como se as manifestações de Junho tivessem se resolvido com o impeachment de Dilma. O futuro não explica o devir: aquele é por este explicado.  O levante de junho de 2013 foi o horizonte de eventos, o ponto de viragem definitivo, a imposição de uma nova fase, o momento da radicalização democrática que (não) esperávamos e, ao mesmo tempo, da ruptura sem volta com o progressismo e certa esquerda – inclusive aquela que se reivindica da “imanência”, para a qual a imanência é apenas um artefato do comércio intelectual de categorias e não um fazer. Presos não apenas nos mecanismos de funcionamento do biopoder (encarceramento em massa, racismo institucional, governo da polícia, criminalização das drogas, remoção de favelas, “choque de ordem” urbanista e urbano, gestão violenta dos territórios e da pobreza) com os quais foram engrenadas as políticas do governo progressista, – segundo a dialética de normalidade democrática e estado de exceção, – como também à dimensão mais hegemonista e transcendente da Política.

Finalmente, no número 48, de agosto de 2016, o manifesto Quando a Trama da Terra Treme[8] articulou de maneira mais respirada o balanço da interpenetração e interação recíproca das duas linhas, – esquematizadas como de hegemonia e de multidão, – presentes no cadinho de discussões da rede UniNômade e da própria revista Lugar Comum. Tal reflexão transbordou as questões locais e nacionais, captando também um leque de divergências com a rede nômade transnacional, particularmente no que tange à vivência do desmoronamento do ciclo progressista no Sul Global. Nesse texto de chegada, busca-se divisar novos horizontes, pontuando o que fica para trás e o que se abre como terreno a ser experimentado e habitado, Open Road, desafios e dilemas, velocidades e paradas. Muitas vezes é necessário ao nômade permanecer parado para poder devir com o mundo, noutras vezes, é preciso que ele migre para não ter de sair de seu próprio modo de existência, que vai junto com ele.

 

Rede Universidade Nômade. 10 de setembro de 2017.

Notas

[1] A Revista, inicialmente, contou com o apoio entusiasta do Professor Carlos Alberto Messeder Pereira, decano do CFCH da UFRJ e do âmbito institucional do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação (NEPCOM) do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação (PPGCOM) da UFRJ. O coletivo editorial era composto por Carlos Alberto Messeder Pereira, Elizabeth Rondelli, Karl Erik Schollhammer, Micael Hershmann e Giuseppe Cocco. O design da capa foi de Barbara Szaniecki e se tornará uma das marcas da proposta editorial, até hoje.

[2] Michael Hardt e Toni Negri, Empire, Nova Iorque: Harvard Un. Press, 2000.

[3] Giorgio Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

[4] Édouard Glissant, Le Discours antillais, Paris: Gallimard, 1981.

[5] Gilles Deleuze e Felix Guattari, L´Anti-Oedipe; capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1972.

[6] Antonio Negri e Giuseppe Cocco, Glob(AL), biopoder na América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[7] Conforme Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, 1851.

[8] https://dev.integrame.com.br/tenda/3210/

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