UniNômade

Europas fugitivas

Entrevista com Gigi Roggero, por Bruno Cava, conversa em 9/6/16 | Trad. UniNômade

GIGI

Nesta entrevista presencial em Bolonha, o pesquisador e militante Gigi Roggero, autor de vários livros implicados nas lutas no sul da Europa, discute movimentos importantes na crise do capitalismo, a Europa como unidade (im)possível, o NuitDebout francês, as ondas migratórias, as revoltas das banlieues, as plataformas eleitorais do Podemos e do 5Stelle, além de abordar derivas reacionárias aos problemas, como o apelo populista de retorno ao estado-nação, a questão da violência e os atentados do Charlie Hebdo e do Bataclan, organizados pelo ISIS. Gigi elucida questões de método e ação repletos de impasses, desdobra ferramentas, desmonta lugares comuns, problematiza saídas fáceis e traça um horizonte difícil e multifacetado para a ação política eficaz. Um testemunho de um tempo de perplexidades e restaurações, em que é preciso resistir e pensar. [N.E.]

Bruno: Têm dois processos europeus no contexto de movimento a que prestamos atenção, o primeiro são as plataformas municipalistas na Espanha, como o Ahora Madrid e o Barcelona en Comù,  lembrando que estamos em ano eleitoral no Brasil, e outro um processo mais movimentista, provavelmente com uma composição diferente, que são as ocupações de praças do NuitDebout na França, que em parte é ressurgência do movimento quinzemaísta das acampadas, estalado em 2011. Como você analisa esses processos de luta, quanto à composição, convergências, divergências, se podem ser contrapostos, dentro do contexto da Europa?

Gigi: Em primeiro lugar, é muito difícil falar hoje em Europa como um contexto unificado, porque nos últimos anos a crise provocou uma profunda fragmentação. Então, do ponto de vista político ou social, esse ponto de partida seria problemático. Para uma perspectiva europeia, precisaríamos assumir elementos interpretativos diferentes daqueles usados nos últimos 15 ou 20 anos, quando se colocava a dialética entre a perspectiva europeísta de unidade e um retorno nacionalista ao estado, que seria a sua alternativa. Ficar nessa dialética hoje resultaria extremamente reducionista, porque existe na composição social, em alguns lugares mais do que em outros, um sentimento, uma sensibilidade ou paixão, que é contra a Europa, mas que não se dirige necessariamente pelo retorno do estado-nação. Existe uma dimensão de recusa à imposição das políticas neoliberais de austeridade que o governo da crise vem determinando na Europa. Mas é preciso enxergar a ambivalência dessa expressão, para não acabarmos empurrando os fragmentos da composição social no colo da direita nacionalista. Então, de um lado, tem um discurso europeísta ideológico, que serve ao neoliberalismo de Merkel e Schäuble; do outro lado, um retorno à paixão pelo estado, de direita nacionalista ou mesmo protofascista. Para sair dessa armadilha, precisamos compreender a recusa da Europa realmente existente na composição social.

Com relação à França, vou responder sem uma experiência direta, com base em relatos, análises e interpretações de companheiros que estiveram em Paris e noutras cidades da França. É importante entender o movimento a partir na composição social que o caracteriza. Certamente, existe a linha de continuidade entre o ciclo de lutas dentro da crise, que vêm das primaveras árabes, das ocupações de praças na Espanha e Grécia, e depois de Occupy, protestos na Turquia, junho de 2013 no Brasil, até chegar no NuitDebout. Como nas outras vezes, ele se dá por meio de uma reapropriação de lugares centrais do espaço metropolitano, transformados em terreno de recomposição de uma força de trabalho que, na normalidade, aparece de maneira fragmentada, esparsa pelas várias dinâmicas da metrópole. Deste ponto de vista, uma das análises mais interessantes, feita já há algum tempo, foi a de Christian Marazzi, quando ele dizia que nessas reapropriações do espaço metropolitano surge uma nova instância. No passado, eram destacados os modos de fuga e nomadismo que também eram momentos de ruptura da composição operária do fordismo. Hoje, numa configuração capitalista diferente, a instância que surge entre os novos sujeitos do trabalho não reproduz as do passado, em vez disso, ela cria novos lugares para a conexão, agregação e recomposição de uma força de trabalho que já incorporou em si a mobilidade.

A composição do NuitDebout é marcada pelo encontro de várias figuras, tais como estudantes universitários, mas também participantes das mais diversas redes e organizações de movimento ou de esquerda. O encontro foi importante, pois as ocupações de praça romperam com uma sensação de isolamento e solidão induzida pelo estado permanente de emergência na França. Existe outro componente que, em parte, se encontra no NuitDebout, que são os sindicatos. O problema da participação dos sindicatos e da Confédération Générale du Travail (CGT) não é, para usar códigos clássicos, se eles estão mais à esquerda ou direita, ou se são mais ou menos corporativistas. Na França, os sindicalistas compreenderam que para preservar um papel, para reproduzir a sua função institucional, por vezes precisam ser intransigentes e, em certas situações, partir para o conflito aberto, inclusive radical. Eles partem para o conflito com o fito de usá-lo em seu favor. Então, em algumas ocasiões, os jovens que se revoltam na cidade têm de conviver com os serviços de ordem dos sindicatos que os vigia, mas por vezes as próprias forças sindicais francesas são responsáveis por realizar bloqueios e piquetes. Por exemplo, quando da abertura da Eurocopa, o sindicato que se ocupa da energia elétrica provocou um apagão, além de terem acontecido piquetes em refinarias e usinas nucleares, e bloqueios de estradas. Isto acontece não porque a CGT seja mais conflitiva ou revolucionária, evidentemente que não, visto que é para servir aos fins reformistas a que a organização se presta. Mas o ponto é que abre novas possibilidades para uma dinâmica entre movimento e sindicato, que podem conjugar-se em ações táticas específicas, ainda que estrategicamente estejam contrapostos.

No NuitDebout, finalmente, existe um terceiro elemento, aquele dos muito jovens, particularmente estudantes secudaristas, dos liceus. São os mais radicais na praça, chocam-se frontalmente com a polícia, realizam ações diretas contra agências bancárias e outros objetivos simbólicos, embora estejam em minoria numérica. Como tendência, este talvez seja o grupo mais interessante e relevante, porque aponta um dado que pode ser socialmente extrapolado, o que, nos últimos anos, vínhamos definindo como precários de segunda geração. Diferentemente dos operários que se alinham com a CGT, esses segmentos precários não têm nada a defender. Os operários sindicalizados defendem posições residuais do antigo welfare, os direitos acumulados graças a lutas precedentes. Essas novas figuras, ao contrário, já foram socializadas num contexto em que jamais tiveram futuro. Não é que tenham sido expropriados dele, eles já nasceram sem futuro sobre o que falar, já não vivem o futuro como algo acessível diretamente. Os precários de primeira geração pelo menos viveram na própria pele a perda, a erosão dos direitos, mas as novas gerações carregam essa ausência como elemento constitutivo, são gerações no future. Não quero com isso, obviamente, exaltar algum componente de rebelião ontológica, ou o que seria uma tendência natural da luta de classe em radicalizar o conflito. Fazê-lo seria pavimentar a estrada ao niilismo, exaltar a face niilista do no future, em vez de valorizar processos mais organizados, projetuais, para a radicalização do movimento. Me parece que, tudo somado, devemos nos concentrar nesse componente juveníssimo da composição do NuitDebout, porque o elemento de tendência é sempre um motor de conflitos que poderá ser retomado em muitas outras situações.

Bruno: Alguns teóricos que pensam nas lutas, — aqui tenho em mente, por exemplo, Frédéric Lordon, — desenham uma contraposição esquemática entre duas manifestações do ciclo de lutas, contrapondo o movimento francês às experiências supostamente malogradas do Syriza e do Podemos. Entende-se assim o NuitDebout como retomada do ciclo de ações diretas depois do fracasso de Tsipras na negociação com a troica e das vacilações da via eleitoral na Espanha. À luz também da dissipação de um horizonte europeísta, seria hora então de um retorno às origens do 15M, um retorno maquiaveliano?

Gigi: O NuitDebout é uma especificidade francesa, está baseado numa combinação de elementos da composição social existentes na França, inclusive quanto à questão dos sindicatos e suas possibilidades. O movimento tem conexões com o 15M, quanto à tendência que exprime, no caso, a ação dos secundaristas. Precisamos, sim, compreender as práticas e comportamentos que o movimento da França nos coloca. Mas isto não significa querer importá-las noutros lugares. Recentemente, houve um encontro em Paris, em 7 de maio, em que compareceu um grupo daqui, de Bolonha, mas foi um fracasso porque foi uma tentativa impulsionada muito de fora…

Bruno: O movimento do 15M na Itália também não pegou, se buscaram várias razões do porquê, se o que atrapalhou foi a tradição dos centros sociais, a herança dos anos 1970, de qualquer modo não contagiou o movimento italiano…

Gigi: É verdade. Mas como ia falando, em Paris o encontro acabou reunindo basicamente italianos e espanhóis, os franceses tiveram pouca participação, os próprios grupos do NuitDebout não aderem a essas iniciativas. Quanto ao 15M na Itália, aconteceu um erro típico, que é olhar um movimento noutro lugar a partir de seu invólucro externo, da representação dos processos, em vez de olhar para a composição interna a eles. Então algumas pessoas pensaram que, se o NuitDebut crepitou na França contra a Loi Travail, e aqui na Itália se está passando o mesmo com o Jobs Act, aí seria apenas convocar um NuitDebout italiano que as praças formigariam de gente. Tentamos fazer isso em Milão e Bolonha e foi um fracasso, as pessoas ficaram de pé a noite inteira e não apareceu vivalma (risos). Não adianta macaquear o movimento dos outros sem compreender e mobilizar a composição social que poderia fazê-lo funcionar. Portanto, o primeiro problema para se ativar uma dinâmica com potencial expansivo é verificar o funcionamento da composição e não simplesmente anunciar uma importação.

Com relação às experiências de Syriza na Grécia e Podemos na Espanha, a primeira coisa é fazer uma distinção entre elas, porque são trajetórias muito diversas. Sem dúvida, o Podemos representa parte do que aconteceu no 15M, mas de outra parte é uma maneira bem direta de cooptação das figuras que participaram das acampadas. Eu vejo também um misunderstanding ao redor do Podemos, o mais próximo dele que existe na Itália é o movimento Cinque Stelle [partido “Cinco Estrelas”]. O Podemos não tem nada que ver com a esquerda clássica, a não ser o fato que Pablo Iglesias e outros companheiros tenham vindo de grupos de movimento. Os códigos, os léxicos, a estratégia de expansão são bem mais semelhantes à do 5Stelle, contornando a dialética entre esquerda e direita. O Podemos não reivindica uma revisitação da esquerda e não propõe uma “nova esquerda”. Ao contrário, ele se apoiou num sentimento que foi definido como “antipolítica”, para ocupar esse significante, numa operação que junta elementos teóricos do argentino Laclau, dos discursos do populismo latino-americano, com as acampadas do 15M, e faz isso de um jeito caótico.

Bem diferente é o Syriza, na Grécia, que se forma conforme uma tradição linear de esquerda de luta, adotando práticas, formas de ação que pertencem a essa herança. Acompanhamos com atenção o governo Tsipras no momento do referendo de julho de 2015, sobretudo pelas possibilidades que indicava de ruptura com a governance europeia. Não é particularmente útil discutir se Tsipras traiu ou não, toda essa discussão é irrelevante. O ponto, na verdade, é entender como a experiência do Syriza nos mostrou a impossibilidade, através daqueles meios, de abrir o quadro atual da governance da Europa. Naquela entrevista bastante famosa de Varoufakis, ele contava que, a certo ponto das tratativas do governo grego com a troica, caiu a ficha, ele percebeu que não passava de um jogo de cena. Schäuble chegou a lhe sugerir, sinceramente, que se estavam elegendo governos anti-austeridade no sul da Europa, porque é que não aboliam de uma vez as eleições nessa região (risos). O impasse a que o Syriza chegou não foi o da alternativa entre europeísmo e antieuropeísmo, entre uma renovação da Europa da troica e o retorno aos estados-nações, esta não é absolutamente a questão. O impasse apareceu na questão da ruptura, no quanto se poderia ainda apostar por uma ruptura constituinte, sem o que qualquer jogo dentro das relações de força existente trariam, como aconteceu, resultados meramente ilusórios. É essa questão da ruptura que hoje se coloca para nós.

Bruno: Impossível pensar nas linhas de mobilizações na Europa hoje sem considerar os afluxos de imigrantes, em grandes contingentes, que cruzam o mar, pelo Mediterrâneo, ou então a Turquia e os Balcãs, pelo leste, originários das regiões em guerra na Síria e Iraque, ou da África, do Oriente Médio, da Ásia. Há duas leituras redutoras ou enganosas, uma que enquadra o êxodo migratório como um problema humanitário, na categoria de vitimização do refugiado, outra que os associa de maneira maliciosa ao recrudescimento do que seria um “ódio religioso”, que encontra no ISIS uma organização militar para canalizá-lo. Na América do Sul, um subcontinente forjado nas linhas flexíveis de imigração e racismo, temos interesse de pensar esses processos enquanto produção de subjetividade, resistência biopolítica. Quais elementos de tendência, quais transformações a imigração na Europa aponta? Podem propiciar um terreno de mobilização transversal de movimentos e coletivos?

Gigi: O primeiro ponto a discutir, aqui, é que a definição adotada pelos movimentos para esse processo já demonstra o quanto eles estão recuados. Por longo tempo, essa definição de “refugiado” era rejeitada, porque é uma categoria classificatória que serve para legitimar uma estratificação entre os imigrantes, com o que a direita nacionalista sabe jogar muito bem. Que é dizer que aqueles que fogem de guerras e calamidades devem ter os direitos reconhecidos especialmente, mas os demais imigrantes, digamos, que imigraram por razões econômicas, não. Quando os movimentos aderem a uma lógica humanitária de boas vindas, trazem pra dentro da sua prática e discurso um elemento de subalternidade. E no momento, na Itália e em outros países europeus, não existe forma de organização que vá além desse discurso humanitário. Um discurso de opinião pública que, em si, naturaliza a derrota, e que pode ser perigoso, muito perigoso, porque relaciona a imigração à vitimização, subjetivando a condição do imigrante como fraco. Nos últimos 20 anos, ao invés, havia grupos que buscavam ressaltar elementos de potência, de força, associados à mobilidade que os imigrantes portam. Especialmente em tempos de crise, a classificação do imigrante como sujeito débil arrisca ser contraproducente para a recomposição de classe, que não se faz a partir da fraqueza, mas da força.

Por exemplo, nos últimos anos, participamos da luta dos trabalhadores do setor da logística e a grande maioria deles, quase todos eram imigrantes e precários. Ainda que lutassem enquanto trabalhadores, o fato de serem imigrantes permitiu romper barreiras de estratificação que, nas instituições, não cessam de se lhes impor como um primeiro plano de resposta. As lutas da logística, em Bolonha, acabaram puxando outras lutas, como a dos trabalhadores da cooperativa universitária, com os precários e imigrantes relatando a sua experiência. Uma composição social que, no fim das contas, vive em meio a uma retórica mainstream de preconceito, se recompôs e se combinou enquanto força de trabalho precário, reconhecendo nessa condição de precariedade e mobilidade um elemento comum de fortalecimento. Este é um elemento fundamental que nos leva à exigência de romper com essa subalternidade presente nos discursos de opinião pública.

As opções políticas chamadas de “populistas”, — e populismo na Europa no fundo não significa nada, não tem pertinência histórica e nada que ver com experiências muito situadas como a do peronismo argentino, — têm sido usadas genericamente para fazer a crítica de qualquer coisa por meio da identificação de um inimigo, seja ele antagonista ou reacionário. O que caracteriza o populismo durante a crise é apontar o inimigo, o culpado por ela. Quem é o inimigo hoje? Na opção política de direita, o inimigo é mistificado. De dentro da fila de atingidos pela crise, a direita indica ao último que a culpa é do penúltimo, que este é inimigo daquele, e assim por diante. Mas não teremos sucesso para quebrar essa armadilha populista se não recusarmos o discurso de opinião pública. Ou nós conseguimos recompor o último, o penúltimo e o antepenúltimo, e por meio de um elemento comum de força, ou é evidente que seremos presas fáceis para a dispersão de energias. Quando o conflito não consegue ser organizado verticalmente, contra o alto, ele termina sendo rebatido horizontalmente. O populismo reacionário tem a capacidade de dissipar os antagonismos e agir apenas no plano horizontal, preservando o alto. Na questão da imigração, ou se constrói um discurso que nos aproxime pelo elemento comum de força, ou continuaremos jogando o jogo inútil da vitimização, dos direitos humanos, o que não tem maior alcance. Os imigrantes trazem em si a potência da mobilidade e essa é uma chave para a recomposição de classe, pela tendência, em meio a uma crise baseada na fragmentação.

Além disso, há também todo um discurso decorrente da sequência de atentados ligados ao ISIS que, como sabemos bem, não foram causados pelos fluxos migratórios. Quem praticou os atentados eram cidadãos franceses, vários já de segunda ou terceira geração no país. Quanto à França, o ponto de problematização consiste no fato que, por trás desses atentados, há um fundo mais complexo. Um dos autores do atentado ao Charlie Hebdo, por exemplo, disse que havia se tornado muçulmano depois de ver as imagens da prisão americana de Abu Ghraib, no Iraque. São pessoas na faixa dos 30-35 pessoas, ou seja, que tinham 20-25 na época das revoltas das banlieues parisienses, em 2005, rapazes que provavelmente participaram das ações diretas. Então eu diria que, em parte, os atentados são decorrência de um encontro que não aconteceu, o encontro entre a revolta dos pobres das banlieues e o movimento da juventude precária e universitária contra o Contrat de Premier Emploi (CPE), que estalou em 2006. Ali se perdeu uma possibilidade de recomposição no plano metropolitano, que deveria ser objeto de nossa análise, a fim de entender como se chegou a essa situação dos atentados. Além disso, há um discurso bastante mistificador sobre a questão da religião islâmica, cujas razões reais estão muito mais ligadas à crise, à situação das banlieues. Não podemos esquecer que o ISIS oferece uma renda de 400, 450 dólares, o que não somente é significativo para jovens da periferia de Paris, Londres ou na Itália, como oferece um horizonte de crescimento.

Há também o elemento de rancor que desafoga uma situação aparentemente sem saída, que descarrega a frustração acumulada por anos de problemas irresolvidos. Depois do atentado na boate Bataclan, surgiram algumas explicações que apontavam como os autores seriam fascistas ao atacar lugares de convívio da juventude, mas esse é um discurso simples demais dada a dimensão do que está ocorrendo. Para quem mora nas banlieues, o centro da cidade representa um objeto de raiva, isso também vemos nas cidades italianas, como Bolonha. Para quem vive na periferia, a primeira manifestação instintiva de classe, uma manifestação obviamente crua e problemática, emerge nessa contraposição entre centro e periferia. Temos de raciocinar a partir desse dado de fato. De um lado, existe uma parte significativa da classe média europeia sofrendo os efeitos da crise, golpeada por processos de empobrecimento, desclassificação e precarização; de outro lado, um proletariado no future, que habita a periferia, com fragmentos de proletariado imigrante, esses setores da composição social que acabam encontrando como opção de mercado de trabalho também o ISIS, até de uma maneira bastante pragmática, pela lei da sobrevivência. Ou pensamos e agimos sobre um terreno de recomposição de classe, ou as formas de conflito entre tais diferentes sujeitos serão canalizadas para saídas políticas de direita, reacionárias, e para o ISIS.

O problema nisso tudo não é que haja um fundo ontológico, um caminho natural, como se fosse um destino que haja essa canalização para a direita. Precisamos nos colocar dentro da realidade, para ver a nossa própria insuficiência em estar em lugares e com os sujeitos que são portadores de conflito e tendência. Isto não significa que o conflito seja automaticamente liberatório, que ele seja de per se positivo. Dizem frequentemente que hoje em dia não há mais conflito, mas há e muito, há conflito por toda parte na crise, não sabemos é enxergá-lo enquanto terreno possível para a nossa ação. E se o conflito se exprime em maneiras que escapam a nossa imaginação, isto não é problema dos sujeitos do conflito, mas de nossa própria falta de imaginação.

Bruno: Gostaria de desenvolver um pouco essa última parte. Além da dialética entre centro e periferia, existe outro fator, que aparece no caso do atentado ao Bataclan. Tanto aquela boate quanto o próprio bairro em que ela se situa, são espaços metropolitanos de mestiçagem. Evidentemente, o centro é a parte mais rica da cidade, e essa mestiçagem aparece frequentemente de maneira mistificada, multicultural ou apologética, mas existe o elemento de composição entre diferentes culturas de resistência, na música, na mistura dos jovens, na rua. Penso que é um elemento importante, inclusive porque o ISIS, depois do atentado, chamou a atenção para esse fato, justificando a escolha do alvo porque haveria uma impureza, uma imundície na mistura de identidades. Existe uma deriva identitária, um purismo, na lógica desses atentados, que não se resume à questão centro-periferia.

Gigi: Certo que é assim, no que eu dizia não havia nenhuma simpatia por essas ações, pelo atentado em Bataclan ou pelo ISIS. Essas ações são o desafogamento de rancores, uma explosão de raiva que surge dos escuros de uma forma de vida, e que também é atravessada pela métissage. Essa forma de violência, por sinal, é parte também da reprodução do sistema, uma válvula que é funcional para ele. O que precisamos colocar, de qualquer modo, é exatamente imaginar como habitar esses territórios em que o rancor se alimenta, e como trabalhar as condições materiais que permitem que ele seja canalizado por essas mistificações, com que o ISIS se justifica.

Nos últimos anos, e até mais além, se fez muito no meio intelectual um discurso que opõe paixões tristes e paixões alegres, e que os sujeitos na política precisariam de mais afeto alegre, de mais amor. Ora, obviamente, todos nós queremos gozar paixões alegres e não sofrer as tristes, todos queremos amar e ser amados. Seria simples se tudo se resolvesse na nossa escolha. O problema está em que o rancor não é uma coisa que deriva de uma escolha, de uma decisão ou atitude pessoal, mas é derivado das relações em que estamos. Quando a relação determinante é de exploração, numa situação material de sofrimento, humilhação, privação, não é que alguém escolha ser ressentido, que prefira ter paixões tristes às alegres. É-se constrangido pelas imposições de uma forma de vida triste a isso, o que leva a esses afetos.

Então, em vez de ficar prescrevendo formas aceitáveis de conflito, num discurso judicante que não tem nada de ativista, é preciso compreender o problema de perto. O ISIS sem dúvida é o nosso inimigo, e é nosso inimigo inclusive enquanto produção da crise do capitalismo, das intervenções ocidentais no Oriente Médio, tudo isso é evidente. O problema é que é um inimigo que aprendeu a organizar um fragmento significativo de sujeitos atingidos pela crise. Como inverter essa situação? Como mudar o sentido da raiva que nasce das fraturas? Como escapar das armadilhas que arrumam a falta e o rancor num conflito horizontal? Muitas das banlieues fizeram um minuto de silêncio pelo atentado de Charlie Hebdo. Isto não deve ser visto como um elemento positivo ou negativo, mas como dado do real, do quadro social de onde se deve partir.

Em condições bem diferentes, nós vínhamos apontando a dimensão ambígua ou espúria, bastarda, dos movimentos dentro da crise. Movimentos têm sempre ambiguidades, eu nunca vi nem ouvi falar de nenhum movimento puro, subjetivamente tudo está atravessado de contradições internas. Na crise, tais elementos de ambiguidade e contradição se intensificam, se acirram. Penso no Brasil: o que aconteceu nos primeiros meses deste ano, ou em 2013, não foi algo linear, que se possa enquadrar em categorias, dicotomias e dialéticas que já trazíamos prontas na cabeça. Nos últimos meses, o impeachment de Dilma restituiu-nos a dimensão ambígua dos movimentos na crise. Um exemplo disso, na Itália, é o 5Stelle, um outro, em 2013, foi o movimento dos forconi. Na crise, a dimensão espúria tende a aumentar junto com o conflito, e o problema que se coloca para nós é se queremos ficar em casa, mesmo que seja uma casa alienada, que se arrisca a ser subalterna, ou se em vez disso queremos mover-nos sobre o terreno muito mais difícil, terreno em que nos enganaremos muito, nos confundiremos, nos arriscaremos, terreno mais perigoso, mas que é o terreno da potência, o espaço bastardo onde temos a capacidade de agir e mudar as coisas. Essa é uma escolha que, na crise, temos de enfrentar a sério.

Bruno: Uma última pergunta. Gostaria de abordar o experimento mais trágico, talvez o mais problemático de todos os ângulos, sobre o que se fala pouco, mas que nós na UniNômade tentamos entendê-lo, dedicamos-lhe dossiês, oficinas, entrevistas, que foi a questão das lutas na Ucrânia. Entendemos a luta da praça Maidan como inscrita totalmente no ciclo global, junto com as revoluções árabes, junho de 2013 no Brasil, Gezi Park na Turquia ou a umbrella rebellion em Hong Kong. Porém, o resultado foi trágico, houve um esmagamento, um sanduíche geopolítico entre a Rússia de Putin e a troica da União Europeia. O que podemos pensar a partir dessa experiência, das limitações com que o ciclo global de lutas se deparou em Maidan? Talvez o momento em que a dinâmica expansiva iniciada em 2011 tenha atingido o seu ponto mais alargado, em fevereiro de 2014, e então refluiu?

Gigi: Esse é outro assunto difícil para eu falar, não só a distância impõe certa cautela, como há elementos que dependeriam de uma pesquisa mais aprofundada. Certamente, nós, aqui, tentamos não achatar o movimento da Maidan segundo a vulgata clássica anti-imperialista, em suma, ver por trás das forças em jogo apenas a face pró-Rússia de Putin e, do outro lado, o neoliberalismo. É evidente que tal vulgata anti-imperialista priva sempre as figuras agentes da subjetividade que é parte fundamental da questão. Do contrário, qualquer rebelião que comprometa interesses nacionais da Rússia se tornaria cúmplice do imperialismo ocidental, e não haveria nada a fazer senão chamar pela responsabilidade. Nessa lógica, sempre os rebeldes são reduzidos em última instância a fantoches do imperialismo. Ao mesmo tempo, é absolutamente claro que a Ucrânia ocupa um lugar histórico chave para as principais forças geopolíticas, com uma imediata incidência nos interesses dos países, o que novamente aconteceu.

Claro que há contradições, mas há um componente evidentemente financiador, que é organizado e significativo. Creio que, se quisermos nos referir à Ucrânia como participante do longo ciclo, ao menos numa linha paralela ao que aconteceu no Egito e demais países árabes, com tudo somado, nos defrontaríamos com o nó irresolvido desse movimento de longo alcance, um nó mais abrangente, que é o das relações de poder. Interessante entender o que vem primeiro, como momento insurgente, e o que é desencadeado depois, como resposta, como restauração. Como, efetivamente, intervir nessas relações de poder sem cair no retorno à ideia de tomar o poder de estado, de tomada do Palácio de Inverno? Na crise, os movimentos precisam compreender e encarar esse bloqueio, esse nó irresolvido.

 

Gigi Roggero, do coletivo Commonware, escreveu vários livros, como Inteligências fugitivas (2005), A potência do saber vivo (2009), A misteriosa curva da reta de Lênin (2011) e Elogio da militância (2016), todos sem tradução ainda ao português.

Bruno Cava, participa da rede Universidade Nômade, escreveu A multidão foi ao deserto (2013).

 

 

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