Universidade Nômade Brasil Blog Sem Categoria Entrevista com Pablo Ortellado (pelo DAR)
Sem Categoria

Entrevista com Pablo Ortellado (pelo DAR)

Republicação do site do coletivo Desentorpecendo a razão (São Paulo)

SONY DSC

Por Coletivo DAR e Desinformémonos

Com trajetória de ativismo primeiro no movimento punk e depois nas lutas antiglobalização da virada dos 1990 para os 2000, Pablo Ortellado hoje é professor de gestão de políticas públicas na USP Leste. Referência para os ativistas do movimento autônomo e autor de “Estamos vencendo: resistência global no Brasil”, Ortellado lançará nos próximos dias o livro “20 centavos: a luta contra o aumento”, escrito em parceria com Elena Judensnaider, Luciana Lima e Marcelo Pomar, e foi exatamente para entender a conjuntura das lutas sociais após o explosivo mês de junho, tema do livro, que ele encontrou um espaço em sua reta final de escritura para conversar com o Coletivo DAR e o Desinformémonos, que nessa postagem em comum esperam contribuir para a reflexão em torno do que compartilham, a busca pela transformação e pela autonomia.

Na entrevista, Ortellado traça um rico panorama do que foi o movimento autônomo em São Paulo e no Brasil desde suas origens, reflexão que ganha ainda mais importância em um momento em que todos buscam aprender e apreender as lições de horizontalidade e ação direta trazidas pelas mobilizações massivas ocorridas pelo país. Ele comenta as raízes zapatistas do movimento e como este desde seu princípio foi identificado com tecnologias que em verdade foram criadas em seu interior, e situa a importância de iniciativas como o Centro de Mídia Independente (CMI) no processo.

Além de imprescindíveis reflexões sobre o que o MPL tem para ensinar aos ativistas anticapitalistas, sobrou tempo também para uma crítica ao Fora do Eixo, definido por Ortellado não como uma experiência de política alternativa, mas como uma organização “hipercapitalista”.

Quando começou seu ativismo?

Minha militância começou no movimento punk dos anos 1980. É a geração dos punks que se politizaram, no finalzinho dos anos 1980. Deve ser a segunda ou a terceira geração do punk em São Paulo. Tem aquela do final dos 1970, que a gente chamava de “geração 82”, que eram uns caras mais velhos. E a nossa vai até 1988, 1989, é uma geração que se politizou, que fez o encontro da contracultura com a ação política.

Foi a geração que encontrou os sindicatos. Em 1987 e 1988 a gente tentava organizar o sindicato dos office-boys – eu era office-boy – junto com um processo de refundação da Confederação Operária Brasileira, que era a Confederação Operária Anarquista dos anos 1910.

E teve o processo de encontrar os velhinhos, os “anarco-nônos” como a gente chamava, no Centro de Cultural Social nos anos 1980. Foi muito importante para a minha geração, e acho que para eles também foi. Reencontrar com o anarquismo, surgindo de um jeito muito diferente. Foi um encontro importante também porque foi o encontro de duas gerações militantes. Eles já não eram a geração da greve de 1917, eram a geração derrotada, dos anos 1930. O Centro de Cultura Social foi uma estratégia do movimento operário derrotado pelos comunistas e depois pelo Estado Novo, eles optam por essa estratégia cultural de fundações de cultura social. E eles tem ainda, eles guardam a historia das lutas sociais dos anos 1910 e 1920, receberam essa vivencia dos mais velhos, mas sao uma geração da derrota, que foi mantendo vivo o legado do anarquismo em São Paulo durante quase todo o século 20.

Acho que para eles, deve ter sido muito vivo ver aquele bando de adolescentes nos anos 1980 cheios de interesse pelo anarquismo. E foi um movimento interessante de troca, no qual a gente aprendeu bastante com eles a respeito de toda essa história de lutas e eles também. Por incrível que pareça, embora a gente viesse da contracultura, um outro mundo do mundo dos sindicatos anarquistas dos anos 1930, houve muitos contatos. Inclusive nos elementos contraculturais. Por exemplo, o Centro de Cultura Social só tem uma propriedade, que é um sítio naturista. Então eles eram naturistas, eram vegetarianos, eram adeptos do amor livre. Então vários elementos da contracultura que a gente carregava ainda naqueles anos – porque o movimento punk em São Paulo tinha algumas características bem particulares, eram meio incipientes, meio confusos, a gente encontrou apoio e espelhamento na experiência histórica dos velhinhos e houve muita troca.

Houve casos super interessantes já nos anos 1990, dos velhinhos se tornarem veganos, que era uma coisa totalmente da nossa geração, a partir do intercâmbio com os punks. Tinha algumas coisas bem peculiares, a minha geração era uma que não usava drogas. Eu nunca fumei maconha. E fui beber depois dos 25 anos. Isso não tem nada a ver com os straight-edges, era outra coisa. Tem a ver com a cultura da disciplina militante do anarquismo dos anos 1930, uma coisa que a gente, do meu grupo pelo menos, da Santa Cecília, que frequentava o Centro de Cultura Social, incorporou. A gente não tolerava pessoas que bebiam e fumavam, porque “era coisa de gente alienada”. Uma percepção totalmente em desacordo com a cultura punk que é punk de esgoto que bebe pinga.

E já tinha isso.

Ah sim, claro, era a cultura dominante. A nossa geração, a geração dos punks que se politizaram, tinha ojeriza a isso, achava que era coisa de playboy. Eu não sei, acho que gerações posteriores não tiveram isso, mas essa que teve esse contato, incorporou elementos que não eram nossos, eram elementos dos velhinhos. Embora tivesse esse contato com a contracultura, que a gente acha que a contracultura é uma invenção dos anos 1960, dos hippies, mas a gente via nas discussões do movimento operário vários debates sobre feminismo, sobre natureza, sobre vegetarianismo, todos esses elementos que a gente considerava contraculturais, muito presentes.

Eles tratavam com muita tranquilidade, embora de um jeito totalmente diferente. Porque nosso discurso era anti-disciplinar, contra as instituições, contra as regras. O deles não, era auto-disciplinar, era a ideia de praticar o amor livre por não precisar do Estado ou da Igreja ditando para a gente como é, tipo “nós fazemos nossas regras”, diferente do “rejeitamos as regras”. Tinha contatos e diferenças e minha geração é desse intercâmbio, final dos anos 1980.

Como foram os anos 1990?

Acompanhei pouco, porque fui pros Estados Unidos, militei no hardcore, fiz outras coisas e só retomei no fim dos anos 1990, então tenho um hiato na história de São Paulo. Já no final dos anos 1990 surge o movimento antiglobalização que é a confluência de outras coisas. Tinha essa cultura anarquista ligada à contracultura, ao hardcore, ao punk; tinha uma tradição libertária no movimento estudantil, principalmente na FFLCH; e tinha esse contexto mundial de resistência ao neoliberalismo.

No final dos anos 1990 vários de nós estávamos acompanhando as listas das mobilizações, estava acontecendo bastante coisa na América Latina. Teve a greve da UNAM, depois teve o 501 na Argentina. O 501 foi um movimento muito importante, foi o pessoal que depois viria para o movimento antiglobalização. Surgiu contra o processo eleitoral e tem uma lei que o voto é obrigatório se você tiver a até 500 km do seu domicílio eleitoral. Então o movimento era uma caravana, com vários grupos ativistas, que levava você até 501 km.

Isso marcou muito a esquerda argentina porque era uma iniciativa dos jovens não anarquistas, era o que viria a ser o autonomismo argentino. Eles organizaram assembleias cujo lema era “Existe política além do voto”. Então a gente estava muito inspirado por essas coisas. Campanhas de apoio aos zapatistas, a greve na UNAM, o movimento 501 eram mais ou menos o panorama latino-americano.

E aí em 1997, no Segundo Encontro Intergaláctico pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo, dos zapatistas, surgiu a ideia de fundar a Ação Global dos Povos (AGP), que era confederar os movimentos sociais de base voltados para a ação direta, para organizar globalmente uma oposição ao neoliberalismo.

No Brasil, como era a AGP?

No Brasil, a gente começou, era isso: a contracultura do hardcore e do punk, o movimento estudantil principalmente da USP não ligado a partidos e pequenos coletivos, pequenos coletivos feministas, pequenos coletivos ambientalistas… Esse era o caldo. A gente começou a se reunir, entrando para valer, no ano 2000.

Já tinha uma cultura de internet no movimento?

Sim, era totalmente cultura de internet. Uma das coisas totalmente distintivas do movimento antiglobalização em relação a movimentos anteriores dos quais ele é filiado é que ele era totalmente organizado globalmente.

Antes as coisas iam, se espelhavam, uma luta influenciava a outra, mas não havia uma organização de fato de as lutas se corresponderem. Com a internet isso mudou completamente, esse movimento foi completamente articulado.

Por exemplo, a gente sofreu repressão no A20 em 20 de abril de 2001. Aí ocuparam a embaixada brasileira em Amsterdã, em Roma e assim, completamente articulado, foi a partir dos relatos que a gente mandou para os companheiros. E vice versa: quando aconteceu a morte do Carlo Giuliani em 2001 a gente ocupou o consulado da Itália, e não era uma coisa espontânea, era uma coisa de articulação da rede de solidariedade. A gente ensaiou essa possibilidade de organização horizontal num nível internacional.

A grande inspiração você diria que foram os zapatistas?

Com certeza. A ideia da AGP nasceu num encontro zapatista, em Barcelona. Nasceu a ideia e o primeiro encontro fundador da AGP foi em Genebra em 1998.

Quais os princípios que ligavam essas pessoas e coletivos?

Todos exatos eu não lembro de cabeça, mas eram os princípios da autonomia, da horizontalidade, a ideia de não ser uma organização. A AGP não era uma organização, era uma espécie de rede de solidariedade e luta. A ideia da diversidade de estratégias de luta, de não termos uma linha única que fosse imposta, de rejeição dos modelos já estabelecidos de luta, e uma crítica muito forte a todas as formas de opressão. O que não era algo necessariamente novo, mas levávamos muito sério. Incorporamos essas lutas do feminismo, do movimento negro, de forma muito forte.

Na verdade a gente via o processo de globalização como uma oportunidade para federar as lutas que tinham se fragmentado nos anos 1960, era nossa leitura. Antes dos anos 1960 era o movimento operário que conduzia a luta social, depois se fragmentou no movimento feminista, movimento ecológico, movimento negro, e assim por diante.

E nossa ideia era que o processo de globalização econômica permitia federar essas lutas porque afetava as mulheres que estavam trabalhando num workshop no México, afetava o problema do desmatamento porque suspendia as regulações ambientais para gerar competitividade entre os países, então o movimento ambiental podia se somar, o movimento trabalhista porque suspendia também a proteção ao direitos trabalhistas para flexibilizar a mão de obra, etc.

Quando demos o nome de anticapitalismo no final dos anos 1990, é curioso, tinha uma acepção diferente, porque não era econômica. Era a ideia de que o capitalismo era a soma de todas essas formas de dominação e exploração, e que o anticapitalismo era a federação de todas essas lutas em uma luta comum, a luta contra o neoliberalismo. Foi realmente uma tentativa. Tanto que por exemplo, na nossa rede da AGP aqui teve vários grupos feministas, vários grupos ambientais, alguns sindicatos pequenos, no Ceará tinha um pessoal do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), então a gente confederava lutas muito diferentes, mas aqui muito orientadas na luta contra a ALCA [Área de Livre Comércio das Américas].

Como funcionava a AGP a nível mundial, como um coletivo daqui se vinculava, se relacionava?

A AGP não era nada. A AGP era uma ideia, uma carta de princípios. Qualquer um que respeitasse essa carta de princípios levantava a mão. Formalmente, nos encontros, tinha delegações da AGP. Então o primeiro que aconteceu em Genebra em 1998, o delegado brasileiro foi o MST. E o MST se somou às nossas primeiras manifestações, participava. Nossa primeira reunião se eu não me engano foi inclusive na sede da Consulta Popular, foi o MST que deu toda a infraestrutura. Mas aos poucos, digamos, eles participavam, mas não eram os atores mais importantes da AGP aqui.

E depois, o que houve para que a AGP fosse se desarticulando?

Esse ciclo se desgastou. Ficamos muito ativos desde 1998, acredito que o auge tenha sido em 2000, a gente fez o S-26, barrando um encontro do Banco Mundial e do FMI em Praga e acho que foi nossa grande conquista. Fizemos ações em cerca de 300 cidades no mundo e eram totalmente dominadas pelo movimento autônomo, conduzidas por nós, o grande feito político foi termos coordenado protestos em centenas de cidades, muitas milhões de pessoas. Depois tiveram outros grandes, protestos em Gênova, houve vários.

Mas a fórmula era tentar copiar o sucesso de Seattle. A ideia original eram os “carnavais contra o capitalismo”, que quem tinha dado a ideia eram os companheiros de Londres, do “Reclaim the streets”. Eles vinham da confluência do movimento de politização das raves e do movimento anti-estradas, ligado a coletivos ambientais. E faziam essas festas de rua que bloqueavam estradas e tal, e eles que lançaram a ideia de carnavais globais contra o capitalismo. Tinha esse caráter meio contracultural.

Essa ideia foi lançada e a primeira fez que aconteceu globalmente de fato foi no J18, 18 de junho de 1998, em dezenas de cidades. Aí em seguida teve Seattle, que foi 30 de novembro de 1999, e depois 26 de setembro de 2000. E em 2000 a gente já estava completamente articulado globalmente, foi quando a coisa atingiu centenas de cidades.

Em Seattle tinha dado muito certo, porque conseguiram barrar fisicamente a reunião da OMC [Organização Mundial do Comércio], da rodada do milênio. A estratégia era pegar um mapa, o lugar do encontro, barrar todos os acessos por meio de bloqueio de ruas. Atrasou os delegados, os sindicatos estavam fazendo uma megamanifestação, o Clinton estava na parede porque tinha eleição próxima, isso gerou um caos. E a rodada do milênio que era um projeto extremamente ambiciosa de desregulamentação econômica em âmbito mundial, falhou miseravelmente.

Isso virou um espécie de paradigma do movimento antiglobalização: fazemos grandes manifestações tentando bloquear ou invadir os eventos, e centenas de protestos pelo mundo para aumentar a pressão. Fizemos isso inclusive aqui, teve o encontro do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] em 2002 e fizemos protestos em Fortaleza, por exemplo.

Mas esse modelo começou a se esgotar, porque ficávamos correndo atrás, começou um sentimento de que a gente estava girando em falso, que a experiência de Seattle nunca mais ia acontecer. Teve o 11 de setembro que endureceu nos EUA e em outros países a maneira como o Estado combatia esse movimento, ameaçando aplicar leis antiterroristas por um lado e, por outro, a ameaça de uma guerra a nível global fez com que a gente fosse mudando gradativamente para o movimento antiguerra. Acho que essas duas questões foram levando esse modelo para o esgotamento, além dos aspectos internos, a sensação de que não estávamos caminhando para nenhum lugar.

Houve um movimento natural de ir voltando para os coletivos locais. O pessoal da Argentina, por exemplo, foi em peso para o Movimento Piquetero, alguns para o movimento de assembleias. Aqui, teve uma galera que foi para o Movimento Passe Livre (MPL).

Além dos bloqueios e manifestações de solidariedade, quais eram os outros eixos de atuação da AGP?

Aqui, por exemplo, a gente fazia muita campanha pública. Fizemos toda a campanha contra a ALCA, muito antes de entrarem as igrejas, os partidos políticos. A gente ia em escola, sindicato, associação de bairro, produzimos centenas de panfletos, jornais, fizemos uma campanha bem estruturada, de informação. Explicar o que era a ALCA, quais seus impactos, o que significava para as relações trabalhistas, para o meio ambiente, e assim por diante. Isso articulado com os protestos. Acho que adquirimos um nível bom de organização, e tinha bastante gente simpática ao movimento, financiavam nossas publicações.

Embora eu ache que para a coisa ter vingado tenha sido importante a participação dos partidos políticos, da igreja católica, o plebiscito que foi feito sobre a ALCA, isso ajudou a enterrar a ALCA, já por volta de 2003.

Quais as características e especificidades dos movimentos que se seguiram a esse processo, que hoje se convencionou chamar de movimentos autônomos?

A ideia de coletivos autônomos foi sendo construída muito no movimento antiglobalização. Antes a gente tinha uma cena anarquista. Isso tem a ver com a contracultura brasileira, que não teve a interface com a política. Foram dois caminhos, numa trilha os tropicalistas, os hippies, na outra, a luta armada contra a ditadura militar, a crítica ao stalinismo. Essas coisas não se encontravam, como aconteceu, por exemplos nos Estados Unidos, na Itália.

Essa fusão só aconteceu aqui com os punks. Que o punk antes era despolitizado, se associava o que a gente chama de punk 82 com algo mais social que político, era a classe trabalhadora gritando com uma guitarra. Um grito confuso, um grito sem experiência política, mas gritando. Um grito de revolta contra a pobreza, a exclusão, misturado com algo contracultural, existencialista, tudo junto e muito confuso.

Essa coisa do anarquismo é do fim da segunda e da terceira geração do punk, que se aproximou mais da tradição sindical do anarquismo brasileiro. Tem um fato que é muito marcante, em 1988 tem um 1 de maio que fazemos a segurança da manifestação, junto com a CUT [Central Única dos Trabalhadores]. Era a COB, a Confederação Operária Brasileira que a gente estava tentando refundar, junto com a CUT e outras centrais. Nesse momento estava começando a se definir entre os punks um grupo anarquista, que lia Proudhon, Bakunin, frequentava o Centro de Cultura Social, era uma novidade.

Outros grupos de punks, misturados com skinheads, que estavam caminhando para a direita, essa cisão só aconteceu no final dos anos 1980, e eles vão para esse 1 de maio para bater, e tomam uma surra. Menos dos punks porque a gente era muito miudinho, mais dos sindicalistas. Tomam um pau. Acho uma marca dessa cisão ideológica da contracultura brasileira. Para mim a fusão entre contracultura e política se concretizou nesse dia. Tem a direita e tem a esquerda. Os skinheads começaram a flertar com o integralismo e viraram fascistas e outro grupo eram os anarquistas.

No movimento antiglobalização, tinha, por um lado, a rejeição aos partidos políticos, à hierarquia, tinha discurso libertário mas tinha uma visão mais ampla. A gente dialogava com as ONGs, com movimentos mais tradicionais na sua forma de organização, começou a haver certa diferenciação com um anarquismo mais programático. Começou a surgir essa ideia do movimento autônomo, também sob inspiração da teoria político mais autonomista, seja na tradição francesa como Castoriadis, seja na italiana, como Negri ou Mario Tronti. Algumas pessoas começaram a ler, e foi se desenvolvendo esse entendimento, de se juntar também aos marxistas dissidentes mais horizontalistas, que nunca tinham sido bem vindos no movimento anarquista por razões históricas. Autonomia em relação ao Estado e em relação ao mercado. Isso é uma construção do final dos anos 1990, início dos 2000.

E o Fórum Social Mundial?

O Fórum Social Mundial foi uma construção totalmente separada da nossa. Tinha o Fórum Econômico Mundial de Davos, que juntava representantes das empresas, dos governos, do setor acadêmico e fazia um grande encontro de cúpula dos líderes mundiais para discutir assuntos de interesse global. O Fórum Social Mundial foi pensado exatamente nos mesmos termos originalmente. Era para ser um encontro das lideranças dos sindicatos, das lideranças dos movimentos sociais e das lideranças dos partidos políticos, numa grande conferência contra-hegemônica.

Nesse momento já tinha o movimento antiglobalização, um movimento de base horizontalista, e já tinha sua importância. As primeiras propostas do Fórum eram de um encontro de cúpula que as pessoas inscreviam lideranças. Aí abriram um negócio chamado oficinas que permitia a participação de todos. E as oficinas bombaram, porque o movimento era horizontal. E subverteu.

Apesar de não surgir da nossa tradição, os organizadores do Fórum souberam incorporar, digamos, esse caráter horizontalista e deixar o encontro virar outra coisa. Ficou mais participativo, mais rico. A gente nunca participou ativamente, da construção, mas aproveitava que vinha gente do mundo inteiro, e sempre fizemos, ao menos até 2005, encontros paralelos.

Você vê, então, o MPL como uma espécie de continuidade desse processo?

Totalmente. O MPL tem duas origens: o movimento antiglobalização e outra que vem ideologicamente do trotskismo, mas que vem talvez mais que isso, do movimento estudantil pelo passe livre. Nos anos 1990 tem a luta forte pelo passe livre estudantil que traz como inspiração as conquistas no Rio de Janeiro, então tem uma tradição estudantil forte.

Em Florianópolis, por conta do Juventude Revolução Independente, começaram a defender essa ideia da autonomia a partir do trotskismo. A partir de uma leitura e reflexão interna dentro do trotskismo, atuando com o conceito de autonomia nesse campo da luta pelo passe livre estudantil. Aí nasce dessa experiência de Floripa, por um lado da Juventude Revolução Independente por sua vez ligada ao processo do passe livre estudantil dos anos 1990, e por outro,  o movimento antiglobalização.

Vários militantes do movimento antiglobalização compuseram o MPL original de Floripa. Quando a gente faz o primeiro encontro do MPL lá no Fórum Social Mundial de 2005, estão presentes muitos do movimento antiglobalização e principalmente do CMI [Centro de Mídia Independente], que é, digamos, a face mais organizada do movimento.

O CMI era praticamente a expressão midiática do movimento antiglobalização. E o CMI era organizado, tinham vários grupos locais que se reuniam. Sempre funcionou como uma espécie de esqueleto da AGP, mais claramente organizado porque tinha coletivos, endereços, comunicação global, um site de referencia. Foi muito importante para o movimento antiglobalização como um todo. E serviu como meio de difusão do MPL. Tanto é que acho que quase todos os primeiros MPLs em 2005 vieram de coletivos do CMI.

Chegando nos tempos atuais, como você vê esses coletivos e movimentos autônomos que estiveram envolvidos na onda de mobilizações que começou em junho? E também as novas articulações entre esses movimentos que essa jornada de lutas tem impulsionado?

Acho que essa experiência da luta contra o aumento da tarifa trouxe um salto qualitativo muito importante. Essa tradição de luta que a gente remonta ao zapatismo, ao movimento antiglobalização, mais recentemente ao Occupy Wall Street, ao 15M, e lá atrás a maio de 1968, às lutas da autonomia italiana, essa tradição é muito marcada pela valorização do processo de organização.

Ou seja, a ideia de que devemos fazer política pré-figurativa. Que a forma de organização do movimento deve espelhar a sociedade que a gente quer. Então ser horizontal, inclusivo, não ser sexista, não ser racista, um enorme cuidado com o processo. É processo político e também criativo – então fazer intervenções divertidas, contraculturais, é a mesma valorização do processo: queremos uma vida prazerosa, desburocratizada das amarras institucionais.

Eu faço uma avaliação crítica que essa característica fez com que historicamente a gente fosse muito desatento aos resultados da luta. Várias experiências dessa se perderam por serem incapazes de ter um foco claro de luta. No movimento antiglobalização, era um esforço enorme a gente converter a luta em uma luta objetiva contra a ALCA. Vamos pressionar o governo brasileiro a não assinar a ALCA. Fazer isso era um esforço, porque a tendência do movimento era ser algo auto expressivo, carnaval contra o capitalismo. Uma explosão de rebelião antissistêmica.

O que estava valorizado aí? O processo, a forma de luta. Um dia, quando a gente vencer, que a gente não sabe como, vai ser por meio do fortalecimento da luta, que vai ser horizontal, participativa, comunitária. Mas isso fazia com que o movimento não tivesse um objetivo de curto prazo ligado a esse objetivo de longo prazo. Não tinha estratégia para vencer. Por sorte, em Seattle funcionou e criou um paradigma de estratégia para vencer: a gente barra. Foi tentado em vários lugares, nunca mais aconteceu.

Mas se olhar a experiência do 15M, do Occupy Wall Street e das ocupas pelo mundo todo, também daqui como o Ocupa Sampa, essa incapacidade de ter um foco apareceu. Isso aconteceu desde o final dos anos 1960 se pegarmos gênese do movimento.

E eu acho que a grande novidade aqui é que o MPL criou um novo paradigma. Ter um objetivo de curto prazo, que é um processo de uma utopia, de uma transformação mais profunda. Qual a transformação mais profunda? A desmercantilização do transporte. Direitos público à mobilidade urbana. Mas isso se concretiza num passo: a tarifa voltar para trás. É totalmente contra-intuitivo, do jeito que a coisa é, a tarifa sempre cresce. A partir do momento que ela volta para trás, você coloca no horizonte a possibilidade de voltar para trás até seu limite, que é o zero.

E isso, cara, parece selvagem, há dois meses atrás diriam que é coisa de extremista, de gente delirante, e eles mostraram isso que agora está no centro da pauta: não tem um partido, um veículo de comunicação ou um político que não estejam discutindo essa pauta que há dois meses era chamada de delirante, sem pé na realidade.

Eu acho que eles conseguiram criar isso. E era factível, apesar de bem difícil. Foi suado, custou bastante trabalho, muita gente foi presa, muita gente apanhou, teve gente que morreu, mas era factível, foi factível.  E isso ampliou os horizontes.

Mas tem mais do que isso aí, não? Porque já teve outros aumentos que foram barrados…

Já teve, já teve.  Na verdade eu estou falando do MPL como um todo…

Ah, você acha que já nas primeiras vitórias isso está contido?

Já contém isso, sim. Eu acho que o MPL daqui simplesmente deu muita visibilidade por estarmos em São Paulo, mas o MPL é isso, ele nasce do aprendizado da Revolta do Buzú de Salvador. A Revolta do Buzú foi um movimento espontâneo, de jovens – molecada mesmo, adolescentes, até pré-adolescentes – que saíram nas ruas e bloqueram a cidade durante vários dias contra o aumento das passagens e foram traídos pela UNE.

Eles não tinham um instrumento político. O MPL é a busca por aprender com esse erro, aprender com o processo espontâneo. Quem inventou, quem exemplificou essa estratégia de luta foram os meninos de Salvador, só que teve uma falha, já que não havia com quem negociar.  E eles fracassaram, perderam bem perdido com a traição da UNE. E aí a ideia do MPL é dar um estamento político pra essa luta, e fomentar essas revoltas que tinham nascido espontaneamente.  Um grupo político vai fomentar uma revolta.

E aconteceu em Floripa duas vezes, 2004 e 2005. Depois aconteceu em várias cidades, deve ter tido mais de dez revoltas de transporte entre 2004 e agora.  Talvez mais de vinte.  E as instituições políticas foram surdas a esse processo. E os meninos do MPL de São Paulo continuaram, “um dia vai virar aqui, tem que virar, ta virando em todo lugar”.  Eles apostaram, continuaram insistindo na luta e tiveram vários acertos estratégicos, amadureceram estrategicamente, começaram a pensar no curto prazo, em como fazer para pressionar, houve uma maturidade no jeito político de atuar que eu acho um aprendizado  para o movimento autônomo não só do Brasil como do mundo.

Sem brincadeira: Ocuppy WallStreet tinha muito a aprender com o que os meninos do MPL fizeram, se eles tivessem os vinte centavos deles pro sistema financeiro as coisas teriam sido muito diferentes, podia ter tido uma vitória. E que não é só uma pequena reforma,  o passe livre é uma pequena reforma que aponta imediatamente pra sua própria natureza de uma profunda transformação do sistema.  Liga-se com a desmercantilização do transporte, e isso abre o precedente para várias outras desmercantilizações, é como um novelo de lã que você começa a puxar e vai ampliando os horizontes.

Conseguiram colocar uma meta de curto prazo, exequível e intrinsicamente ligada ao processo de transformação da sociedade que a gente quer.  E ao invés de valorizar apenas o processo de luta, valoriza-se também o processo de luta, porque é um movimento autônomo, que faz essas discussões de que o processo tem que ser horizontal, independente dos partidos e etc., mas não descuida da conquista de objetivos práticos de curto prazo que vão acelerar essa passagem pro objetivo de longo prazo.

Desde esse começo da Internet que você fala desenvolve-se também um saber relativo a organização de movimentos pelas redes, mas isso talvez tenha explodido no senso comum agora, não? É de agora que vem mais à tona esse discurso de que as mobilizações são produto das redes sociais e da Internet?

Então, essa conversa não é nova. O movimento antiglobalização foi muito rotulado como o movimento da Internet.  E eu acho essa uma leitura tecno-determinista muito equivocada, porque a história é o inverso do que é contada. A história que a gente escuta é a de que as redes  são horizontais, democráticas e participativas e o movimento das ruas copia a forma de organização das redes.  Ou seja, a forma de organização das redes impõe a organização das ruas. E é exatamente o oposto. As redes foram desenhadas por nós pra ter esse formato e não o contrário, ou seja, as redes adquiriram esse formato horizontal e participativo.

A Internet era uma rede universitária até 1995, ela se privatizou, ou seja, foi aberta pra venda e serviço de acesso a Internet em 1995. E quando ela se privatizou o modelo que se tentou fazer é o modelo do portal, que é o mesmo da comunicação tradicional: um emissor e vários receptores.  E foi isso que estava imposto, o modelo da American Online (AOL),  do iG, do Uol… Eu vou ter um portalzão, uma redação com jornalistas que vão abastecê-lo…

Os portais até proviam acesso.

É, vou prover acesso, vou prover informação, serviço de e-mail… é um modelo de um para muitos, o modelo tradicional da comunicação de massa. E era esse modelo que estava sendo implementado nos anos 1990.

O CMI é um entendimento de que a gente devia usar as possibilidades da Internet, que era um veículo bidirecional, em que se falava e recebia, e subverter essa tentativa de transformá-la numa grande televisão ou numa grande revista e fazer uma forma de comunicação interativa, baseada nas experiências das rádios livres, das TVs comunitárias, dos fanzines, nessa tradição de comunicação alternativa. E foi assim que foi desenhado. O CMI era um site de publicação aberta, quando não existia nem blog. Quem inventou o conceito de blog foi o CMI, não tinha blog, as pessoas não faziam isso, elas faziam sites. Uma ideia de um blog,  que seja um negócio fácil de escrever e que possa ser atualizado rapidamente não existia, o CMI é pré-blog, é précreativecommons.

E não é à toa que do CMI saíram muitas das empresas de redes sociais: Twitter, Youtube, Flickr e Craigslist. Todas foram fundadas por pessoas que vieram do CMI.  Foi um duplo movimento, o CMI servindo como exemplo de que se pode fazer comunicação de outro jeito e gente do CMI que quando ele se exaure vai tentar viver de outra forma. Isso tem a ver também com a forma de organização da esquerda liberal americana que permite essas passagens do movimento social pro mercado de uma  maneira que a gente consideraria  bizarra – mas que no contexto americano não é tão bizarra.

Isso aconteceu, principalmente nos EUA e na Inglaterra, vários técnicos do CMI trabalhando nessas empresas e de certa maneira desenhando essas empresas. Ou elas sofreram influência direta, no sentido que de pessoas saíram e desenharam essas tecnologias,  ou por meio da inspiração do modelo de comunicação participativa. E hoje todo mundo faz né, a Globo News tem lá “mande seu vídeo”. Só que a gente inventou em 1999 o “mande seu vídeo”.

Mas isso aconteceu como? Uma conversão ideológica dessas pessoas ou mais uma questão de trabalho?

Eu acho que era mais uma coisa de decisão pessoal de arrumar um trabalho, mas nisso você carrega essa sua bagagem. Quando você vai desenvolver um projeto pra uma empresa, pensa em fazer algo participativo.  Mas é uma história oculta: essa história nunca foi contada porque os atores têm vergonha.  Conheço vários deles, eles têm vergonha porque são pessoas que são militantes até hoje. Do mesmo jeito que eu fui pra universidade eles foram trabalhar em empresas, se eu estava fazendo mestrado e tinha isso como caminho, o do cara que era programador era trabalhar em uma empresa onde pudesse programar pra viver.

Mas seria importante exemplificar pra ficar claro que nós não estamos copiando as redes, e sim foram elas que nos copiaram. Se você olhar hoje pra esse panorama de que hoje toda a comunicação eletrônica é participativa de certa maneiro isso é uma vitória do nosso projeto. E não precisava ser assim, cara, aliás a tendência nos meados dos anos 1990 era a de que a Internet fosse uma grande televisão e a interatividade seria você mudar de canal. Ela foi outra coisa porque houve participação popular e se tentou pegar as formas participativas de comunicação que vinham da comunicação popular e aplicar explorando as potencialidades da Internet.

Por exemplo no livro Mídia Radical, do Joe Downing, ele vai contando a história das rádios livres, das TVs comunitárias, e como tudo isso converge no CMI no final dos anos 1990.  Daria pra fazer um segundo volume do livro dele, mostrando como a partir daí acontece uma revolução nas empresas de tecnologia da informação.

Seu próximo livro é esse então?

Não, não. Mas eu já pedi pra vários amigos, vocês precisam contar essa história, perder a vergonha porque é importante, é uma história oculta, essa ninguém sabe.

E como fica o “terceiro setor” dessa história, que não é propriamente movimento nem mercado, esse negócio estranho aí que é o Fora do Eixo. Seriam também um produto dessa evolução?

Cara, eu acho que o Fora do Eixo é uma coisa totalmente à parte. Acho que o Fora do Eixo não tem nada a ver com essa história, de nenhum dos lados, acho que ele é uma tentativa de positivar a natureza do trabalho contemporâneo. O Fora do Eixo é o grupo político mais impressionante que eu já vi em mais de vinte anos de militância, nunca vi ninguém mais eficiente do que eles, são um fenômeno político impressionante.

Eles são uma organização hipercapitalista. O que eles fizeram: quando a natureza do trabalho virou informacional, você já não consegue mais separar trabalho de não trabalho. Você  trabalha com jornalismo, você não desliga, não é que nem um operário que pendura o macacão e vai pra casa. Você não desliga o cérebro, você tá pensando na pauta, senta pra conversar e está conversando sobre a pauta, aquilo te toma. Por isso que é muito difícil organizar tempo de trabalho neste tipo de trabalho informacional.

Todo mundo que trabalha atrás de uma tela de computador trabalha assim, você não tem como se desligar de um trabalho dessa natureza simbólica. E aí você tem essa mistura de trabalho e não trabalho, que é massacrante.  O que eles fizeram foi transformar isso numa coisa positiva e militante.

E escondem o lucro.

Eu acho que eles não são capitalistas nesse sentido, porque eles não estão atrás do lucro econômico. É curioso, você vai ver o núcleo do Fora do Eixo, os caras que moram na casa, eles vivem que nem estudante.  Moram em beliches, vivem muito pior do que eu. E têm uma conta com três milhões de reais. Não é orientado pro lucro: o que é mais capitalista, e não menos.

Mas se é muito orientado pro poder de Estado, que implica em lucros pessoais, de uma forma é orientado pro lucro, não?

Eu acho que a questão deles é poder, não é dinheiro. Posso estar enganado, estou analisando aqui de fora.  Quer ver o que eu penso? Guardadas as proporções, não estou querendo supervalorizar, eles são superinteressantes mas também não são tudo isso que o pessoal pinta não, mas pega o Webber, a ética protestante. Pega a definição de capitalismo marxista, é geração de valor pra geração de mais-valor, pegar dinheiro, investir e gerar lucro é totalmente pré-capitalista, é desde a Antiguidade.

Mas nessa época o que você faz? Pega e gasta. Na Antiguidade uma das condições de ser rico é que você não trabalhava, você entrava num empreendimento econômico pra não trabalhar, punha as pessoas pra trabalhar e só vivia na riqueza.  E o Webber fala assim: o capitalismo não é isso. Capitalismo é outra coisa, eu pego a riqueza e reinvisto,  gerando um processo de expansão econômica.  Isso é o que diferencia o capitalismo de outros processos econômicos, e ele vai buscar no ascetismo protestante essa lógica.

Os protestantes acumulavam dinheiro e reinvestiam. E a partir do momento que você tem essa lógica de não vou gastar com mulheres, bebidas e na vida de luxo, que é a forma tradicional das pessoas ricas viverem a vida, mas eu vou reinvestir na produção, a partir do momento que você faz isso você obriga todos os competidores do mercado a seguirem a sua mesma lógica. A lógica de trabalho capitalista, de expansão: trabalho, mais trabalho, mais rigor, mais acúmulo de capital.

E quem não entra nessa lógica perde pra você, e é comprado por você. O  capitalismo é uma lógica de expansão, e vai expandindo essa lógica do trabalho pra todas as esferas da vida.  É isso, cara. Então o capitalismo não é acumular dinheiro,  o capitalismo é não acumular dinheiro.  Por isso eu acho o projeto do Fora do Eixo profundamente perigoso, porque é um projeto de vida para o trabalho. Sem acumulação.

A acumulação é de poder?

É acumulação de poder, é um projeto que usa uma estrutura econômica para um projeto de poder oculto. Qual o projeto político do Fora do Eixo? Desconhecido.  Não tem documento público. Mas eles têm projeto político, eles são um partido, obviamente eles são um partido político. Eles não estão nessa por dinheiro, vai lá na casa deles, os caras comem miojo e vivem que nem estudante.  E eles trabalham pra caralho, e bem. Eles deram um choque de capitalismo, de organização capitalista, na cultura alternativa.  Chegaram em São Carlos e falaram “vamo organizar o circuito de bandas de São Carlos”.  Na cultura até a parte capitalista é super desorganizada, a parte alternativa da cultura é caótica. Cara, é o caos. Aí eles chegam com uma ética de trabalho rigorosa, com gente eficaz, e impõem isso.

E fazem isso positivando a distinção entre trabalho e não trabalho, criando uma cultura de que minha vida é o trabalho. Com um discurso ativista. Como se eles estivessem fazendo ativismo, mas eles não estão fazendo ativismo, estão fazendo atividade econômica sem finalidade de lucro, gerando mais acumulação.  É brilhante. E perigoso.

E desse processo de junho aparentemente eles saem favorecidos, afinal depois do MPL quem ganhou mais visibilidade foi a tal Mídia Ninja.

É impressionante. Eles têm um entendimento muito sofisticado da natureza do nosso capitalismo contemporâneo. Eles sabiam que como eles não tinham capacidade de ser um ator relevante, se eles controlassem a comunicação do movimento eles controlam o movimento, controlam a imagem de como o movimento é representado.

O que é o Ninja, cara? É uma coisa minúscula perto do que aconteceu, do fenômeno político que aconteceu. Mas eles são superexpostos, porque eles controlam a comunicação e a comunicação é chave pra maneira como as pessoas percebem o movimento e como o movimento se percebe. Então é estratégico.  E eles fazem de um jeito sofisticado, eles trabalham marca…  O trabalho de marca deles é impressionante, que organização política trabalha marca? Exposição do nome, exposição do logo,  constroem um texto político colocando o logo e o nome, trabalhando com alavancagem de marca pra usar a expressão publicitária.

Já falei várias vezes que a gente deveria aproveitar isso pra gente ganhar maturidade política, porque a gente só vai enfrentar um ator político dessa natureza se tornando muito mais sério no nosso entendimento da luta social, a gente é muito amador. Eles colocam o desafio num outro nível.  São mais eficientes que os capitalistas.

Mas engajam seus membros sob uma perspectiva de militância.

Essa forma é militante mas é despolitizada. Qual a plataforma pública deles? Nenhuma. Fizeram Marcha da Liberdade, em defesa da liberdade. Lutaram pra que mantivesse esse sentido genérico.  Fizeram Existe Amor em SP. É amor, liberdade, vão fazer algo pela paz, porque é uma estratégia de mobilizar sem causa. Curioso, é extremamente despolitizante.

Mas o Existe Amor em SP tinha uma causa, era eleitoral.

Tinha, mas era oculta. Era contra os fascistas, em tese. E depois que saiu o Russomano ficou ainda mais vago. Pela cidade… é um nível de total despolitização, eles não têm um programa político.  Eles não podem ter um programa político, por isso começaram pela cultura, que é o setor mais despolitizado. É muito interessante, porque é uma militância do não político. Porque não tem causa.

É uma grande construção política. Agora, eles chegaram a um limite. Porque o que aconteceu em junho é um grande chacoalhão. É uma enorme politização da sociedade brasileira. Minha tia está falando de política, tá todo mundo falando de política, a sociedade se politizou. E como eles vão reagir frente a isso? Se politizar é tomar posição, apoiar isso ou aquilo, essa forma de organização. Eles defendem qual forma de organização?  São a favor do mercado privado, são a favor da socialização, são a favor do PT, contra o PT?  Nada, você nunca sabe.

É que isso é uma discussão muito “rancorosa”.

Exatamente… Mas você não sabe, e essa é exatamente a força e o limite do projeto político. Imagino que em algum momento eles vão dar um salto, porque isso vai chegar no limite, e como eles são muito habilidosos eles vão criar uma outra coisa a partir do que eles construíram.  Eles já tão muito perto desse limite.

Por exemplo, eles fizeram o Ninja, que é um relativo sucesso,  mas ao mesmo tempo é um fracasso, porque eles não tiveram papel ativo nessa mobilização.

Mas esse desafio que eles lançam é importante pro movimento autônomo, porque eles expõem como a gente é amador. Isso é outro assunto, mas os movimentos autônomos são muito, mas muito principistas.

Outro aprendizado do MPL: eles foram, falaram no Jornal Nacional, falaram no Roda Viva,  sem pudor, sentaram pra negociar no Conselho da Cidade. Porra, isso é um ganho. Se você olhar pra história desses movimentos, fazer isso com essa maturidade, com clareza, com estratégia, nada disso era possível no movimento antiglobalização. Essas coisas eram absolutamente necessárias. O que acontecia? Pessoas faziam isso nas costas do movimento.

Porque é necessário, como é que eu vou organizar um movimento global sem dinheiro? Tem que fazer compra internacional, imprimir material, pagar servidor de Internet. E aí como eu gerencio doações?  O movimento não quer decisões delicadas desse tipo. Então algumas pessoas faziam. “Recebemos uma doação de cinquenta mil dólares”. Alguém falou com alguém pra conseguir esse dinheiro, não cai do céu – foi feito nas costas do movimento. E isso sabotava a autonomia do movimento. O movimento antiglobalização, ao contrário do MPL, não falava com a imprensa. E aí alguém falava com a imprensa, porque tinha setores da imprensa que apoiavam o movimento. Porque o movimento não tem maturidade pra lidar com essas coisas, com dinheiro, falar com a imprensa, pressionar o governo, trabalhos necessários se você ta fazendo luta política.

Eu acho que o MPL deu um show de maturidade política em relação aos nossos padrões anteriores. Fizeram tudo que era necessário e o resultado está aí. 600 milhões por ano no bolso da classe trabalhadora! Isso não tem o que discutir. E não eram coisas assim terríveis. Dar entrevista pra deus e o mundo fez uma puta diferença. E tinha gente nos meios de comunicação que apoiava. E que quando a coisa virou e o editor permitiu fez coisa boa. Tem que explorar isso, muda muito. MPL mostrou maturidade, de mostrar que se leva a sério, e assim consegue efeito político.

Esse aprendizado a gente tem que incorporar, eu espero que a lição de junho não seja nós fomos às ruas e vencemos, que é parte da verdade, mas não a mais importante. Nós fomos às ruas e vencemos com estratégia e com maturidade política, o que é muito diferente. Que é o que o OcuppyWallStreet não fez, o 15M não fez, o movimento antiglobalização não fez.

Interessante também que em relação ao diálogo com o governo, eles aceitaram os convites mas não negociaram nada.

Faz parte da estratégia deles, mas eles podiam estar numa estratégia em que fosse estratégico negociar. Mas no caso deles a reivindicação era muito simples.  O que a gente quer é revogar o aumento. “Vem aqui, vamos discutir corredor de ônibus, licitações, municipalização do imposto da gasolina…” Não, revogação do aumento. É uma mensagem simples, do ponto de vista de comunicar com a população é claríssimo. E significa um rompimento de paradigma, a tarifa volta para trás e é isso que eles tavam querendo, o projeto deles é zero. E eles conseguiram colocar isso, ganharam a revogação e tarifa zero ta na boca do povo.

E tarifa zero é muita coisa, é mobilidade como direito social. E uma vez que você conquista isso você fala: nossa, que mais é direito social? Quero mais. Que mais como membro de uma coletividade eu tenho direito, só por ser membro dessa coletividade?

—–

 

Conteúdo relacionado:

  1. Entrevista exclusiva com Denis Russo Burgierman: “As alternativas à guerra contra as drogas não surgem dos políticos, surgem da sociedade mobilizada”
  2. A Redução de Danos como prática (potencialmente) libertadora – entrevista exclusiva com Dênis Petuco e Flávia Fernando
  3. Entrevista exclusiva: “Quando se fala do crack, ou você ataca ou será acusado de negligente”
  4. Vídeos do debate Maconha, a saúde e a lei, com Henrique Carneiro, Maurício Fiore e Renato Filev
  5. Entrevista Exclusiva sobre derrota da Proposição 19: “Perdemos por 500 mil votos, temos muito trabalho pela frente”
  6. Evento “Vamos falar de saúde mental?” recebe Coletivo DAR neste sábado (13)
  7. Cartas na mesa – Por trás das cortinas da guerra às drogas
  8. Cartas na mesa – A dinâmica do uso abusivo de drogas no contexto brasileiro
  9. Em entrevista, antropólogo comenta a guerra aos pobres em São Paulo
  10. pedras somos drãos grãos de areia
Sair da versão mobile