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Estou com os evangélicos contra Feliciano

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Por Bruno Cava | Publicado originalmente no Quadrado dos loucos, em 13/03

Na última semana, parte da esquerda nas redes sociais novamente preparou a cama do fascismo. Meteu os pés pelas mãos em mais um transe de cliqueativismo “curtir & compartilhar”, sem um mínimo de profundidade crítica. Tudo o que o deputado Feliciano queria era a associação raivosa que atribui aos evangélicos um caráter conservador, moralista e fanático. Tudo o que ele queria era a confirmação midiática da lógica: evangélico, logo homofóbico — e também contrário à legalização do aborto e das drogas. Nada poderia ajudar mais o discurso do pastor do que a materialização do inimigo que persegue o culto e discrimina o crente. A esquerda nas redes sociais fez-lhe esse enorme favor.

Como se antes houvesse evangélicos que são homofóbicos, machistas ou racistas; e não que haja homofóbicos, machistas ou racistas que são, além disso, evangélicos. Mas bem poderiam ser católicos, ateus ou judeus. A diferença não é sutil e não depende de ponto de vista. Com o episódio, foi reforçada a identidade “evangélico”, cimentando um sentimento de pertencimento e uma interioridade social, exatamente sobre o que se constroem as igrejas, seus sacerdotes e sistemas de autoridade moral.

A esquerda acha que sabe tudo mas tem muito a aprender com os evangélicos. Aliás, a expressão da esquerda nas redes sociais simplesmente não é párea, quantitativa ou qualitativamente, para o trabalho de base disseminado por todo o território, e majoritariamente entre os pobres, que os crentes realizam, e na sua grande maioria gratuitamente. Uma brutal diferença de práxis entre o sofá e a terra batida. Hoje, partidos e sindicatos não têm como competir com as igrejas em termos de mobilização e influência políticas.

Sim, é óbvio, existe a forma-empresa por dentro do neopentecostalismo, e é generalizada, e quem lucra fábulas no negócio da (má) fé. O problema está em direcionar o ataque aos evangélicos como grupo, num preconceito reverso. Ora, a mais antiga monarquia absolutista do planeta, a Igreja Católica conta dois mil anos construída em cima da aliança com a classe dominante, a exploração social e a violência contra pobres e minorias. Uma instituição muito mais hierárquica, dogmática e reacionária, sem falar na pedofilia institucional, do que qualquer igreja evangélica, que bem ou mal propicia maiores chances de mobilidade interna, alguma horizontalização teológica e, diga-se de passagem, posições frequentemente menos intransigentes com relação ao aborto, células-tronco, camisinha, direitos queer e drogas.

Atacar o deputado Feliciano com ênfase na questão evangélica — em vez de concentrar-se no problema real — não deixou de arregimentar estranhos aliados à causa. Aliados talvez nem assim tão distantes de uma esquerda que não sabe nem quer compreender o pobre que tanto defendem em falas, panfletos e teses acadêmicas. Aliados talvez na crença que os evangélicos sejam piores, mais fanáticos e reacionários do que os católicos, ou mesmo que os agnósticos e ateus. Eis aí mais um rosto do pobre: o crente, tanto mais ameaçador e discriminado quanto mais emerge socialmente. O pobre é sempre pior quando chega perto do rico. É o pobre brasileiro discriminado desde sempre por suas elites e sua alta sociologia (de bar ou da USP) que nunca deixou de imputar-lhe um déficit de espiritualidade, racionalidade ou “consciência de classe”.

Estou dizendo isso enquanto ateu até o osso, como um filho da classe média branca e ilustrada em cuja adolescência escarnecia febrilmente da religiosidade e delirava em esmagar todas as igrejas. Mas agora concordo com Marx, na Questão judaica, quando diz que o ateísmo é causa desfocada, senão insípida. É ineficaz combater religiões e igrejas, mas sim as condições de escassez e miséria que conduzem as pessoas a religiões e igrejas. Para que tenham bases materiais e subjetivas para dispensar o transcendente. E se elas quiserem religiões e igrejas, que seja pela abundância de vida e sentido que possam encontrar em religiões e igrejas, talvez noutros arranjos produtivos de subjetividade. Em qualquer caso, ideias não podem ser vencidas apenas com ideias, e por isso nunca depositei muita confiança em “humanismos seculares”, ateísmos e quejandos. As ideias detêm uma força interna que precisa ser bancada materialmente, entre outros, no plano ético.

O fato é que igrejas e pastores evangélicos têm sido bem sucedidos em se acoplar ao sonho de “subir na vida”. Isso as faz potentes e produtivas, todavia necessárias, seja no plano organizacional da composição, seja no plano estratégico das alianças. Os pobres sabem como é fundamental construir uma fortaleza existencial para enfrentar a adversidade. Como é fundamental apegar-se à sensação de não estar só na luta pelo futuro digno —por um futuro simplesmente. Apesar de, há várias gerações, tudo ao redor os limitar, constranger, diminuir e violentar; os pobres têm consciência e veem a esperança de viver melhor, finalmente, se concretizando. Essa consciência é uma organização de relações e práticas, em que muitas igrejas se inserem sem preconceitos e sem ódio de classe.

E a esquerda que vá fazer seu dever de casa, antes de se considerar superior e mais esclarecida.

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