Por Commonware, texto editorial de conclusão da enquete ao redor do tema anticorrupção, do ponto de vista das lutas, em 19/2 | Trad. UniNômade Brasil
Em janeiro, os companheiros do coletivo Commonware contataram vários elos das redes ativistas com quem mantêm relação, com a proposta de debate, ao redor do tema da corrupção. Uma tentativa de síntese das contribuições aparece no texto abaixo, traduzido pela UniNômade brasileira.
Questão genuinamente espinhosa, cheia de armadilhas, costuma ser encampada por forças mais à direita, geralmente a fim de neutralizar pautas materiais por meio de maniqueísmos morais. E assim substituir os dirigentes, sem mudar o sistema. Em vez de lutar contra a corrupção sedimentada no sistema político, preferem ver este como essencialmente incorrupto, que estaria viciado apenas por pessoas ou grupos particulares. Bastariam portanto alguns ajustes, nunca uma mudança estrutural. Com isso, é diagnosticada a corrupção como um mal na cabeça de pessoas corruptas, cabendo às pessoas de bem, sob a liderança moral dos grandes jornais e TVs, fiscalizar e combater.
Mas e se o capital for a corrupção sistematizada? E se a corrupção for o outro da democracia: a representação, o valor, a exploração, o racismo?
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Aprender uma nova língua
“Thiers, este anão monstruoso, fascinou a burguesia francesa por quase meio século, porque ele é a expressão intelectual mais perfeita da corrupção de classe da própria burguesia”. Quem está falando não é algum rancoroso ativista do movimento 5Stelle (Cinco Estrelas), mas Karl Marx. Estava em questão uma guerra civil em nada simulada, que levou à Comuna de Paris e, depois, a sua repressão. Em suma, diante da repulsa automática com que são vistas algumas categorias, gostaríamos de tentar tranquilizar a todos: em nossa patrística revolucionária, não faltam exemplos notáveis de insultos populares e palavras tão ambíguas quanto “corrupção”.
Para que não haja equívoco, não estamos defendendo aqui que tudo que é útil seja válido: por exemplo, não se pode transigir com qualquer tipo de ofensa sexista, racista, homofóbica. Esse tipo de ofensa é filha, infelizmente, não de certo caráter “populista” da política, mas de uma ideia de “povo” construída durante a contrarrevolução social e seus comportamentos, começados no final dos anos 70 [NT: o texto se refere à onda conservadora contemporânea ao governo da Democrazia Cristiana, um partido de centro-direita que se dizia representante do cidadão honesto e trabalhador médio]. Faz rir, portanto, que quem esteja se escandalizando hoje seja uma parte daquele “povo”, aquele antiberlusconiano de esquerda, que até ontem elogiava o show de Sabina Guzzanti sobre as presumidas prestações sexuais das ministras de centro-direita. Sobre os repasses aos bancos, contrariamente, a coerência dos representantes daquele “povo” era inquestionável: davam-lhes dinheiro ontem, continuam a dar-lhes hoje. A canção Bella Ciao, além de qualquer ironia fácil, deveria nos fazer refletir: quando as palavras a que somos afeiçoados não correspondam mais ao sentir comum que as produziu, é hora de trocar a música. É possível ficar afeiçoado a palavras, justo não as esquecer, e decerto reivindicar a continuidade delas; mas obstinar-se em usá-las como se nada tivesse acontecido serve não para falar, mas sim para gratificar a nossa vontade de identidade, dentro de um contexto que não entendemos e que, por causa disso, nos parece completamente hostil.
Existem momentos, de fato, quando é necessário repensar o próprio vocabulário, aprender uma nova língua, produzir léxicos inéditos. Os genes individuais não determinam esses momentos, mas as necessidades impostas pela composição da luta de classe — também aquela conduzida pelos patrões. Escutemos ainda Marx: “Assim, o principiante que aprendeu uma língua nova a retraduz continuamente em sua língua materna, mas não consegue possuir o espírito dessa língua e exprimir-se livremente, senão quando se mover nela sem reminiscências, esquecendo a própria língua de origem”. Eis aí a nossa hipótese: nos encontramos num desses momentos. E aprender uma nova língua, isto é, produzi-la em comum, é para nós tão difícil quanto esquecer certas reminiscências de nossa língua de origem. Fazê-lo, no entanto, nos parece hoje indispensável.
In partibus infidelium [NT: “Na terra dos infiéis”, em latim]
Se assim for, devemos nos debater ao redor do tema da corrupção. Não repetiremos aqui as considerações que nos fizeram abrir um debate sobre os “espinhos e as possibilidades da luta contra a corrupção“. Repetiremos somente o seu nó central, com que assinalamos a urgência da discussão política: nos últimos anos (na Itália, a partir da Onda [NT. Movimento pela renovação pela política, baseado principalmente nas universidades, em 2008]), registramos uma incapacidade nossa em se envolver com o tema da corrupção e similares. Ou ainda melhor: a nossa incapacidade é diretamente proporcional à relevância que o tema teve nos movimentos globais na crise. Na Itália, as relações prevalentes no meio dos militantes, das instâncias de organização e de acadêmicos radicais foram de dois tipos. De uma parte, foi simplesmente negada a relevância do tema, considerado como mera ideologia a desmascarar-se, a ser enfrentada sobre o plano retórico, ou melhor, substituindo-a por outra ideologia. De outra parte, atacou-se precisamente a ordem do discurso, sobre o plano conceitual, mostrando o grau de mistificação do tema da corrupção: centrar o fogo sobre os corruptos serve apenas para esconder os interesses reais de classe que suportam aquela ordem do discurso, terminando assim por absolver um sistema que produz continuamente, ele próprio, a corrupção. Essa operação sozinha, contudo, aparentemente não faz verão por si mesma, embora sirva pelo menos como uma bússola teórica.
No debate que abrimos sobre o tema, Marco Bascetta — repercorrendo a história do pensamento político — impecavelmente explicou a natureza fisiológica-naturalista do tema da corrupção, geralmente empregado para salvaguardar um sistema do que o possa fazer degenerar. A corrupção é uma ordem, e não a ausência de ordem; por isso, não pode haver luta contra a corrupção que não seja ao mesmo tempo luta contra o poder constituído. Assumindo a origem do termo corrupção, devemos lutar pela corrupção enquanto estratégia de desfazimento do sistema. Se quiséssemos fixar este discurso como ponto de partida e linha de chegada, teríamos um problema. Este discurso se situa no meio: em nosso caso, no meio da materialidade da crise, das especificidades concretas territoriais, e sobretudo das subjetividades. É nessa “meia distância”, politicamente decisiva, que o discurso encara os seus maiores limites, até girar em falso. O problema, então, é como a abstração conceitual pode ser tornar determinada. Se não forem determinados, os conceitos deixam de ser ferramentas de ação n realidade, para se reduzirem a categorias a priori, ao que a realidade deveria ser idealmente enquadrada.
À meia distancia, de fato, das insurgências no Norte da África às acampadas espanholas, do Occupy à Turquia, do Brasil à Bósnia e Herzegovina, o tema da corrupção esteve, de diversas formas, em primeiro plano nos movimentos e em sua percepção comum. Raffaele Ciortino coloca a questão em perspectiva teórica, identificando nela a peculiaridade da passagem do regime da subsunção formal à subsunção real. Tal perspectiva nos permite, por um lado, subtrair o tema da retórica antiberlusconiana e da presumida anomalia absoluta do contexto italiano; por outro lado, permite individuar as especificidades, evitando, por conseguinte, recair numa imagem lisa e homogênea do espaço global. Podemos assim ver a aglutinação de instâncias que aparecem emaranhadas na luta contra a corrupção: frustração diante dos processos de rebaixamento social, reação instintiva e não menos desesperada aos processos de financeirização e às promessas traídas de progresso, medo de perder os próprios privilégios, desejo de encontrar soluções individuais onde não se consigam ver possibilidades coletivas. E, simultaneamente, não podemos evitar de ver instâncias de classe que, de maneira confusa e talvez mistificada, vibram dentro desse emaranhado.
Ao manejar com cuidado as espinhas desta escorregadia questão, prestamos muita atenção ao que alertam as companheiros e companheiros em relação à América Latina e ao Leste Europeu, os ditos países “periféricos” (uma definição cada vez mais incerta e discutível, em que poderíamos incluir a Itália e os “piigs”). Eles têm razão ao enquadrar as lutas contra a corrupção “do alto”, como interna às elites e para aumentar ainda mais os níveis de espoliação. Aqui, a ordem do discurso contra os corruptos é imediatamente funcional para a preservação de um sistema em crise. Uma espécie de depuração através do que a classe capitalista mantém o seu domínio. Existe, porém, uma luta contra a corrupção “de baixo”, certamente não autônoma, e amiúde articulada — lexicalmente e concretamente — àquela “do alto”. O ponto é: existe um excedente que consinta numa transformação ou subversão verdadeira e própria da direção da luta contra a corrupção? Ou, para retomar os termos propostos por Bascetta: é possível que a luta contra os corruptos possa transformar-se numa luta pela corrupção do próprio sistema? Isto é, pelo desfazimento da ordem constituída? E, em sentido contrário, como é possível uma luta contra a corrupção sistêmica que não passe pela luta contra os indivíduos corruptos? E como, a partir da dimensão individual, seria possível torcê-la numa direção radicalmente diferente? Temos a impressão que, dado caráter tendencialmente permanente da crise, as “promessas” (por sinal, frequentemente inquietantes) contidas no expurgo dos corruptos e nas retóricas meritocráticas não podem ser estruturalmente mantidas. São apostas impagáveis. Nesse ponto decisivo, se abre a possibilidade de um reviravolta, de uma heterogênese dos fins: sem esquecer o risco de isso servir apenas para lubrificar a máquina, é possível que essas instâncias terminem por sabotar e rompê-larompendo-a. Navegando nos confins incertos e perigosos entre a luta contra a corrupção sistêmica e os corruptos individuais (cuja clareza se define somente numa escala abstrata), cremos de estar aqui vizinhos àquilo que Adrià Rodríguez — tomando por base o movimento espanhol — chama de “justicialismo tático”. A isto acrescentamos, escoltados pela contribuição de Gian Luca Pittavino e pela experiência do movimento No Tav, um elemento decisivo: esse engodo enovelado é atravessado continuamente por uma forte vontade de cooperação, o que podemos talvez chamar de desejo de comum. Aqui se derrete e se quebra a retórica do interesse geral (sobre o que se apoia o discurso contra a corrupção “de cima”) e irrompe a parcialidade dos interesses de classe.
Exatamente, a colocação do conceito de classe no tema traça então limites que transformam o seu significado. Na acusação contra os “políticos”, da parte de amplos setores proletários e empobrecidos, prevalece a dimensão “sistêmica” e não a “individual” da corrupção. Isto se dá exatamente devido a uma percepção difusa do naufrágio ocorrido das relações entre economia, política e sociedade: “vocês, políticos, são corruptos e enganam quem trabalha, paga os impostos e não chega ao fim do mês, porque vocês obedecem aos grandes poderes (finanças, bancos, corporações, patrões da mídia….)”. Estamos aqui muito distantes (sem que isto anuncie necessariamente cenários luminosos) da crítica anticorrupção funcional à liquidação de partes da classe política, burocrática e administrativa, em favor de outras, ou da eliminação tout court de intermediários entre a economia e a sociedade.
Por outro lado, não é nada fácil desenrolar o novelo, separando concretamente, de um modo claro, os interesses de classe da capacidade de captura. Talvez, arriscamos, o problema seja descolar o tema da corrupção de um problema restrito ao poder judiciário, isto é, subtraí-la do terreno jurídico da legalidade a fim de exercitá-la autonomamente. Nessa direção, se pode chegar a por em discussão o plano da decisão sobre o uso de recursos e da riqueza coletivamente produzida. Repetimos que o campo da corrupção é um campo discursivo que provavelmente não nos pertença, mas sobre o qual somos obrigados a medir-nos. Tememos, por isso, não ter outra escolha senão andarmos pelas terras dos infiéis, porque são terras materialmente habitadas pela subjetividade do trabalho vivo contemporâneo. E infelizmente as comunidades dos santos e dos puros, por mais gratificantes sejam, não nos farão ganhar o paraíso.
Por uma nova substância do discurso político
No primeiro ciclo de autoformação de Commonware, Christian Marazzi interpretava a financeirização em termos de um descolamento do dinheiro de qualquer referente substantivo. Segundo Marazzi, desde quando se libertou da substância, visando a destruir a classe operária, o capital não teve mais trégua, tendo construído um sistema monetário que se dobrou sobre si mesmo, com o risco de implodir na sua autorreferencialidade. Também o nó da corrupção está dentro deste processo de substantivação do valor. Temos, porém, a impressão que o desmanche daquela específica substância operária (“A classe que se contrapõe ao capital”, seguindo ainda Marazzi) nos havia exposto ao risco recorrente de uma dessubstancialização da teoria, isto é, a não poder mais referir-se a sujeitos de classe. Labutamos, por isso, em aliar a leitura da tendência com a tarefa de construção de relações de força que possam realizá-la ou virá-la ao contrário. Que fique claro: de consciência tranquila perante nostalgias paleo-operaístas recorrentes, pois não se pode voltar à substância da relação entre proletariado e capital, e seria ilusório pensar que aquela mistura antiga poderia reviver noutro lugar. Não pensamos sequer que se possa encontrar alguma nova mistura. O problema da substância do sujeito, porém, está em que, diante de nossos olhos, separando por exemplo o discurso da renda da força dos sujeitos de classe. Sem a força deles, corre-se o risco de transformar a tendência naquilo que não quer ser, isto é, num tecnicismo despolitizado que se resolve no espaço da mediação institucional. É o mesmo problema que apontamos no comum: sem uma nova substância de classe, corre-se o risco de nos achatarmos numa proposta gestionária, continuamente esmagada pela morsa do público-privado.
Falar das espinhas e possibilidades da luta contra a corrupção é, assim, um modo de por o problema da individuação do inimigo (como está acontecendo na Bósnia e Herzegovina e outras experiências de conflito mencionadas acima); não só afirmando a necessidade genérica da ruptura, mas fazendo a hipótese de pontos concretos e subjetivamente praticáveis. Neste ponto, sujar as mãos não basta mais: a questão tem sido posta em termos de um programa capaz de fundar-se sobre uma teoria dessubstancializada e, por isso, autorreferecial. É preciso repô-la sobre uma nova substância — porquanto espúria e confusa — de instâncias e expressões de classe, transformando-a e torcendo-a.
Começamos com uma citação histórica, concluímos com outra. Em 9 de janeiro de 1905, famílias de operários e trabalhadores de São Petersburgo, guiadas pelo padre G. Gapon (um comprovado X9 a serviço da brutal polícia política czarista, morto num justiçamento por ativistas, um ano depois), marcharam até o Palácio de Inverno para pedir ao czar, o pai da pátria, de expulsar os seus funcionários corruptos e escutar o povo. As tropas abriram fogo e o dia entrou pra histórica como “Domingo Sangrento”, iniciando o que seria mais tarde conhecido como primeira revolução russa. Retrospectivamente, tudo parece simples, porque nos livros de história os sujeitos são sempre puros e os processos lineares. Por sorte, então, alguns revolucionários não perderam muito tempo dando lições abstratas, explicando por que Gapon era um Casaleggio [NT.: O dito “guru” de Beppe Grillo, líder do movimento 5Stelle] ante litteram e as reivindicações puramente populistas. Se puseram a escutar, aprender e falar uma nova língua. E rapidamente os ícones sacros deram lugar ao soviete. É desta nova substância discursiva, plantada na materialidade suja do real, que sentimos uma maldita necessidade.